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Rio, da Glória à Piedade
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Rio, da Glória à Piedade
E-book292 páginas3 horas

Rio, da Glória à Piedade

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Sobre este e-book

Obra coletiva, Rio, da Glória à Piedade é uma realização de amigos, todos ligados às letras, nascida espontaneamente, em almoços, jantares, tertúlias e conversas, conversas, sobretudo. Seus onze autores, aqui perfi lados por ordem de nascimento, cobrem uma razoável faixa etária, que vai da casa dos 90 à dos 50 anos.

Se a maioria deles é de cariocas, há no grupo um baiano, um alagoano, dois gaúchos e um português, amante da cidade e editor do volume. Os gêneros também são variáveis, nas crônicas e poemas de Helio Brasil; nos textos de Nireu Cavalcanti, um dos grandes conhecedores da história
carioca; nas crônicas sobre a vida literária e política de Rogério Marques; no levantamento da vida livreira da cidade por Gustavo Barbosa; nos textos espirituosos e no amoroso poema de Ivo Korytowski; nos marcantes versos cariocas de Suzana Vargas; no relato sentimental das viagens de Joaquim António Emídio ao Rio, especialmente ao bairro da Lapa; nos textos de memórias pessoais e urbanas de Eliezer Moreira; no retrato em prosa da lendária Cinelândia e nas duas sequências poéticas de Eduardo Mondolfo; na suíte de poemas, de épocas diversas, deste que vos fala, e cujo caráter parcialmente memorialístico explica o seu título geral; e, fi nalmente, na valiosa crônica de memórias pessoais e culturais de André Seffrin. Tal é, em resumo mínimo, o livro que o leitor tem em mãos.
(do prefácio de ALEXEI BUENO)
IdiomaPortuguês
EditoraRio Books
Data de lançamento15 de ago. de 2023
ISBN9788594970954
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    Rio, da Glória à Piedade - Helio Brasil

    HELIO BRASIL Corrêa da Silva, nascido em 1931, é carioca e autor de São Cristóvão, memória e esperança (Prefeitura do Rio de Janeiro/Relume-Dumará, 2004), Coleção Cantos do Rio; A última adolescência (romance, Editora Bom Texto, 2004); Pentagrama acidental (novelas, Editora Ponteio, 2014); Ladeira do Tempo-Foi (romance, 2017) e O perfume que roubam de ti (contos, 2018), ambos com a Editora Synergia; A pele do soldado (romance, 2022, Editora Mauad). Participou ainda em coletâneas de contos, com outros escritores, editados pela Bom Texto e pela 7LETRAS.

    UM IMORTAL SORRISO DE CARIOQUICE

    Ser CARIOCA não é nascer no Rio. Nem mesmo no Méier, Irajá ou, que seja, nos confins da Barra ou da Prainha. É ouvir o zumbido que fazem o fragor de ondas, as risadas e os sussurros dos generosos cantos da paisagem, o Pico da Tijuca, verdes encostas de um bem gentil Ja-ca-ré-pa-guá. É respirar Leblon, ver em Ipanema a garota que passará, por séculos, e deixar-se embalar na Princesinha do Mar. É ver praças Onze, Quinze e Mauá. É ver Tiradentes – entre putas e michês – em amável contradição com Pedro, hábil cavaleiro, sempre de espada erguida a nos mostrar em bronze a Lei. Ser carioca é ter o bumbum esfolado em ônibus ruidosos, mas, ao chegar no Sambódromo, vibrar na concretude de um alucinado Oscar que vislumbrava nas curvas montanhosas o sensual destino da caprichosa deusa que se fez cidade. É sentir saudades do Maraca, onde, aos domingos, aquecíamos a alma sobre o duro concreto, entre gritos e rugidos nos dribles de Zizinho, nas pernas anedóticas do Mané. É comover-se ao som de Cartola, Elton e Dona Ivone em procissão com Noel. É saber que o sol finge morrer na Tijuca para de novo raiar, sorridente, do lado de lá da baía, nas mãos erguidas de Arariboia. Ser carioca é ver as florescências do Aterro e a enseada que, ungidas por Lota, Burle e Reidy, nos legaram regaço onde se aninham gaivotas, veleiros e barquinhos. É sempre saber que da Olaria suburbana vai-se até a Penha onde a Virgem esmaga a serpente. E lembrar também que de Mangueira salta-se até Pavuna, chega-se à Baixada e vai-se à espichada restinga que aponta Sepetiba. Ser carioca é acreditar que o Cristo jamais nos negará seus braços redentores; que, sempre de olho, Sebastião, Jorge e Antônio expulsarão nossas lágrimas. E em defesa da urbe, a espada de Estácio estará para sempre erguida. Mais que a Fênix mitológica, o Rio renascerá num alvorecer saudado por bem-te-vis confiantes e colibris apressados. Festa do sol, dirão seus cantores, sorrisos do mar, dirão menestréis, amparados pela ginga dos pandeiros e cavaquinhos de perenes crioulos em seus terreiros de samba. E que os espíritos ancestrais nos tragam logo de volta, para sempre, o alegre SER CARIOCA. 

    "NÃO PERMITA DEUS QUE EU CANTE

    O OCASO DA MINHA TERRA!"

    ...e era outra vez Carnaval, quando tomamos o bonde pertinho de casa e nele viajamos cercados de fantasias, rememorando jardineiras – por que estamos tão tristes? –, o que nos aconteceu foi que alemães, tão lindos e inteligentes, invadiram tudo; mesmo assim, em nosso bonde, ‘seu’ condutor dim dim corta a nova artéria sem que o sangue jorre; afinal, Getúlio era o progresso iluminado pela aurora, veja só que bom que era, do Estado Novo, e por isso demos adeus à Praça Onze: adeus, já sabemos que vais desaparecer, então olhamos os estribos cobertos de homens-mulheres, caveiras e pierrôs, colocando entre parênteses as princesas e uma odalisca, vem para o meu harém, mas não vinha, e o bonde chegou à Praça Tiradentes arredando recatadas putas e delicados travestis, naqueles tempos de timidez e recato; era outra vez Carnaval, a transgressão do bonde São Januário que não levava o otário, mas sim o operário; sou eu que não vou trabalhar, apenas ver o movimento, vestido de caubói, sem meu cavalinho alazão, não faz assim comigo não, que da rua Carioca se chega no Largo e que, lá de cima, Santo Antônio não nos olhe arrastando a sandália aí, morena, até o romper do dia, mas se alguém diz que o Carnaval de rua está morrendo, ao mirar em volta vemos a Cinelândia e seus templos de insuspeitado paganismo cercando Momo e sua corte, em grotescas saudações nazistas; quem é que usa cabelinho na testa e um bigodinho que parece mosca, para lembrar as ânsias dos Cabedelo, Bagé, Baependi, agora no fundo do mar, quando quebra na praia é bonito, é bonito, no entanto não serve para a alegria do Carnaval, correndo atrás dos blocos de sujo, a não ser nos banhos de mar à fantasia, pois você sabe de onde eu venho, porém não sabe que percorro a Rio Branco singrando suores e gritos na Galeria Cruzeiro, na Rua Sete com Avenida, a ardência do Rodo Metálico nos olhos espantados, e que há nas esquinas um verdor nada igual ao do meu Periquitinho Verde, tira a sorte por favor, mas, por favor, sinistros caminhões verde-oliva apontam para o céu canhões antiaéreos diante de um grande e aceso olho de vidro e cara de mau pincelando a escuridão que se derrama do Cristo e do relógio da Mesbla, apagados enquanto a cidade se esconde, maravilhosa, cheia de encantos mil, para que o Eixo não nos destrua, assim seremos coração do meu Brasil, matadores da própria memória fingindo ignorar o espectro rotundo de São Pedro na derrubada impiedosa, pedra sobre pedra, atire a primeira pedra, Iaiá, aquele que não sofreu por amor a uma cidade que já não vemos daqui; a Candelária nos dá as costas e chegamos aos flancos da noite à Praça Mauá, onde se concentram tropas de ranchos convocadas pela batida lenta dos surdos e, se Tio Sam já dançou batucada com Ioiô e Iaiá, sua armada loura que por ali vagueia, nem liga, pois a lua anda tonta com tamanho esplendor, uma saudade de trinta e tantas pastorinhas ou do século dezoito, quando homens e mulheres de pele escura trajavam-se qual Luízes e Antonietas, melancólicos mulatos nobres, cabeleiras de algodão, a erguer lampiões trêmulos no velório antecipado ao som da marcha-rancho, que pra consolo da lua vai dizer pelas ruas tristes versos de dor, porque pouco a pouco morrem sonhos entrincheirados nas distantes vertentes do front.

    E assim se passaram dez anos, ou bem mais, muitos mais, quase o século. Rio, não vais partir deixando a noite em teu lugar, pois um sol brilhará, fazendo mais lindas as rosas, de cartola nos saudará e, sem piedade dos maldosos, nos aquecerá a glória que os assis, bragas e braguinhas, irônicos ou valentes, jamais nos deixarão perder. 

    DO CASTELO AO CORCOVADO

    Quando Estácio, guerreiro do clã dos Sá, em meados dos 1500 subiu o morro do Castelo, nem sonhava que passadas poucas centenas de anos não mais teria a seus pés ladeiras e pedregulhos para a defesa da nova urbe, infestada de invasores. Logo a Deus legou a alma, rosto sangrando, missão cumprida, terra e nação paridas!

    Cruzando a nado a Guanabara, não supôs Arariboia que, em menos de cinco séculos, a olímpica proeza poderia se dar a seco. Um elegante traço, serpente de pedra falsa, com pernas longas fincadas na água, riscaria o espaço emoldurando as montanhas ao fundo da baía. Nem mesmo as velhas barcas, fazendo oscilar  balancins, imaginariam suas filhas e netas rugindo velozes, conduzindo viajantes afobados. Mas o guerreiro, braços fortes, venceu correntes gélidas seguindo honesto papel e, na pia batismal, fingiu renegar Tupã.

    Nosso Joãozinho Bragança, antes de ser o Sexto, tão aflito com os gritos da mãezinha, não imaginava o Paço a abrigar um bistrô e, no mesmo espaço, mostrar cores e formas de insanos modernistas. Sentiria as coxinhas de frango sem sabor e os babados da camisa conspurcados pela má fama que lhe deram os avessos a lusitanos. A pança, mesmo tão grande, não superou os miolos e o coração, e entre lágrimas e suspiros ele veria secos e olvidados os seus pródigos jardins coloridos.  

    O afoito Pedrinho, nestas plagas dito o Primeiro, ao sair da Quinta fugindo de Leopoldina, não imaginava desfrutar, da janela da Marquesa, a visão de Genoveva a crescer tão Santa em São Cristóvão. E por certo choraria ao ver a bela casa, doada à bem-amada, suja e mal lavada, elegância corrompida, lembranças desperdiçadas, entregues às ratazanas. 

    Do frustrado mestre-escola os cândidos olhos azuis, ao passear pelas encostas Tijucanas, vendo o reflorescer saído das mãos de Archer e o erguido queixo do Corcovado, tão visionário aquele segundo Pedro, não pensaria que em menos de meio século ali baixaria gigantesco filho de Deus, abrindo os braços para uma quase esquecida benção. Pedro filho de Pedro, abjurando ao paterno lusitanismo, buscava um auriverde pendão da nossa terra, que lhe tiraram das mãos. O Alcântara, deixaria as lágrimas imersas nas águas do rio Joana.

    Machado, na rua do Ouvidor ou na saída do Lírico, ajeitaria o pince-nez para ver secos braços morenos portando tabuletas em ofertas de ouro, de joias e, aqui e acolá, nos mais altos páramos, fácil sexo com mocinhas de rugas coloridas. Ficaria surpreso, olhos cansados, se visse as crateras em calçadas antes lisas, da Avenida Central. E lamentaria que o mancebo, ao fazer corte à melindrosa, levasse um tiro no peito e, olhos vítreos, perdesse a manhã ensolarada. Negrinhos – antes portadores de recados e convites para um jantar em família – ainda abandonados, fugiriam sob o fogo cerrado da Lei. E o Passeio Público, de Valentim e Glaziou, desprovido de imagens, lagos secos, bosque olvidado, não mais se ofereceria a seus passos, tudo tão transformado em crônicas amarguradas.   

    Passos e Alves, companheiros de sonhos – o primeiro era Pereira e, o segundo, Rodrigues –, olhavam as cercanias da ampla Avenida e, da galeria em cruzeiro, encaravam os séculos do Convento. Não dariam conta de que, sob ele, a partir das sumidas margens da lagoa, onde cresceram à viela do Caminho do Egito, Rua do Piolho, dita depois Carioca, se abrigariam salas de magias luminosas, chamadas Iris e Ideal. Não provariam o chopp do Adolfo e o strudel do Luiz. Mas veriam, sob o nome de um poeta, as coquetes da Colombo que jamais tapavam seus narizinhos ao passar, entre esgotos, vindas da matrona Ouvidor.

    Nos anos 20 do século XX, Carlos Sampaio com eficientes máquinas à sua disposição criaria uma planície para Getúlio, adiante, plantar seus ministérios. Quem ganhou, quem perdeu? Os edis da época gostariam que aves metálicas descessem naquelas praias? E modernistas, gloriosos, imaginaram sepultar o ecletismo com um belo Ministério, implante do futuro no presente? 

    De Getúlio, a clava erguida baixou pelas mãos de um Dodsworth sobre as ruas do Sabão, de São Pedro e a Praça Onze, para ligar esquecidos dos deuses e dandys e chegar mais veloz a São Cristóvão, Tijuca e consequências.

    JK em valsa rápida, em cinco passos levou a nobreza daqui, porém deixou nas praias o sol, o verde das montanhas, as águas azuladas, e jovens cavalheiros enfeitiçados pela princesa do mar e do corpo dourado, novinha de bossa. E, firmando os pés no Estácio, na Lapa e onde tiver espaço, o samba – sempre de cartola – disse: Daqui não saio! Daqui ninguém me tira! 

    Lacerda tonitruante, ouvindo as rezas de um grego, usou as cores nas vias, rasgando Catumbi, cigano velho. Depois, perfurou as montanhas antes galgadas por bestas e burros. Recorreu às rochas do Santo Antônio e expulsou da orla as águas guanabarinas. Roncaram sinistros motores, acelerados senhores sonharam com altas torres. Mas a lanterna de Lota acendeu-se no caminho e a baía, antes conspurcada, recebeu a redenção na forma de alamedas esculpidas em flores e arvoredos. Mas hoje, tristes dias de hoje, Burle Marx e Reydi sentiriam constrangimento ao ver, do Paraíso que lhes cabe, o belo Aterro, sob o qual a Guanabara sufocou praias raquíticas, ter suas florações esquecidas e as sinuosas trilhas conspurcadas pelo desleixo da cidadania esquecida.  

    Filhos de Deus somos nós, de Alá e Jeová, de Buda e seus incensos. Xangô, Ogum, Oxalá, sabe-se lá de quem mais? Vale sempre pedir a eles: Não deixem que esta terra, tão bela, se transforme em cidadela. 

    Pra quem mais, então, apelar? 

    Aos Santos, padroeiros que cuidam de altares belos: Voltem a nós pios olhos e tragam de volta a vontade de gritar:

    SOU CARIOCA! SOU, E NÃO ABRO!

    O SÓBRIO OLHAR DOS SOBRADOS

    Velhos, honestos sobrados,

    sobrados no Rio 

    saudosos tão sólidos

    em sacadas de ferro fundido,  

    metal forjado e batido. 

    Desenhos caprichados, 

    olhos sinceros,  

    tristes faces envelhecidas, 

    sempre sóbrios sobrados, 

    elegantes, amados por velhos 

    singelos mandantes 

    ou poetas passantes 

    em poesias serenas.

    À noite, sonolentos, 

    cerram os olhos os sobrados. 

    Pela manhã, arregalam 

    perplexas janelas vazias 

    cada vez mais solitárias 

    cada vez mais enrugadas 

    por asperezas, ingratidões

    dos séculos, ímpias ações 

    das intempéries cruéis. 

    LADEIRAS

    Eram tantas as ladeiras...

    Algumas, o tempo levou. Outras, deixaram lembranças. Poucas nos fazem sonhar.

    Do Castelo, sobrou a Misericórdia, sugerindo elevar o caminhante para o nada, e o faz descer apressado, supondo-se próximo ao abismo. De lá, Mem de Sá – espada da governança erguida – homenageou Estácio, o sobrinho morto, fundador da lusitana urbe no Cara de Cão. Tanto bugre, tanto negro, tantos náufragos, tantas terras que do Castelo sobraram, para inundar orlas e orlas, redesenhando perfis.

    Santa Teresa emerge do êxtase e, altiva, comanda o bairro que de lá só fala à cidade por declives, curvas, vielas. Degraus, rampas em pedra, argila ou asfalto são rios que desaguam do norte ao sul carioca. No Centro, encontra a Santa as orgias da Lapa e, discreta, sobe os degraus Selarón. Mantém-se serena no alto, faz descer os bondinhos, cruza altiva os arcos e com misericórdia caminha no plano de Santo Antônio.

    Do Senado, nada resta senão o Passeio, tão ameno, que das mãos de Valentim e, logo depois, do francês Glaziou oferece sombra e silêncio, pra que se contemplem os ilustres que nos legaram cultura em brônzea serenidade. Um angélico menininho faz xixi no chafariz, quebrando-lhes a sisudez. Em ruas bem traçadas, planas, acolhedoras, assentaram-se nas cercanias um Antônio para os pobres e um Jorge para os guerreiros.

    Santo Antônio acolhe os ricos ao lado de São Francisco, em Penitências, do cimo de sua montanha roída por sonhos afoitos de urbanistas a buscar planícies de asfalto. Do alto de seus poderes, restou-lhe a visão da rua da Carioca com seus sobrados vetustos. Lá longe, quem busca o Norte no Rio encontra São Bento, em retábulos de ouro, barroco anunciado no vozerio dos frades. Do alto vê a prainha ampliada, suas ladeiras grimpadas por autos e pecadores.

    Do outro lado do asfalto, Conceição exibe a ladeira salgada onde sambistas celebram as musas de um povo negro ensinando a quem é branco como se dança o sambão.

    Quem corre pra Zona Norte, arrisca-se noutras ladeiras. Amáveis ou perigosas: do Pinto, São Carlos, Formiga, Borel e Macaco. Mangueira, Penha, Alemão. 

    Se escolhe correr à Tijuca, despreza as ladeiras comuns e galga as sombrias trilhas da Floresta que o século XIX nos legou. Do Pico da Tijuca, vemos premiada beleza verde nos sonhos de nossos antigos.  

    Contudo, eis que nuvens sinistras descem as encostas após coroarem os picos. Ruas, becos e lindas praças empalidecem e seus monumentos ganham rabiscos de fúria, manchas de desprezo e desamor à cidade. Perplexos, cariocas seguram as lágrimas e erguem os olhos ao Criador, em muda prece.

    O que sobrou da glória, agora nos dá piedade.  

    AO MARQUÊS DO LAVRADIO *

    Em que lavravas, marquês?

    Primeiro, nas terras d’África 

    e pouco tempo depois

    nas águas guanabarinas?

    Deixaste ruas aqui

    muitas direitas, outras curtas.

    Por lá deixaste ruelas, 

    impuras tal qual as de cá.

    E ganhaste rua banhada 

    de velhas grades floridas

    sobrados emoldurados

    portadas escurecidas

    um vice vago perfume 

    de reis e tantas marquesas

    calçadas de pedras solenes

    aguardando as portuguesas.

    Belas ações praticaste

    respeito ao uso do erário

    chicote pro salafrário.

    * MARQUÊS DO LAVRADIO – D. António de Almeida Soares Portugal (1699-1760), 4º Conde de Avintes, filho do anterior. Foi feito Conde do Lavradio e, mais tarde, Marquês. Foi Vice-rei do Brasil.

    NIREU CAVALCANTI, alagoano nascido em 1944 e que migrou para o Rio de Janeiro, em 1962. Arquiteto, artista plástico e historiador (doutorado em 1997 – UFRJ). Autor de vários livros e artigos sobre a história da cidade do Rio e de Niterói. Escreveu artigos e capítulos de livros e revistas sobre arquitetura, urbanismo e história geral do Brasil. Em destaque as seguintes obras: Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Reedição especial pela Prefeitura do Rio/Zahar, em comemoração dos 450 anos da fundação da cidade, 2015. Rio de Janeiro: centro histórico colonial 1567-2015. Andrea Jakobsson Estúdio/Faperj, 2016. Crônicas históricas do Rio colonial. Civilização Brasileira/Faperj, 2004 e História de conflitos no Rio de Janeiro colonial. Civilização Brasileira, 2014. Na área de arquitetura e urbanismo: Construindo a violência urbana. Rio de Janeiro, Madana, 1986; Arquitetos e Engenheiros: sonho de entidade desde 1798. Rio de Janeiro: CREA, 2007 e Veredas da Arquitetura Modernista no Rio de Janeiro. In: Revista do IHGRJ, n. 27, 2020, pp.117 a 157. Na área de História: A Farsa do Grito do Ipiranga, provando, documentalmente, que não houve o acontecimento. Apresentado em vários eventos durante as comemorações dos duzentos anos da Independência.

    MEU AMIGO BERNARDELI

    Na Rua do Hospital, em Maceió, perto da Praça Deodoro, bem no Centro, morava minha família – dona de uma bodega que vendia fiado a todo mundo, com exceção de pinguços. Na casa vizinha morava o amigo Bernardeli, o Brocha, cujo pai era pintor de paredes, exímio caiador, mas sonhava ser pintor de quadros famosos e passou para o filho essa sua idealização.

    Formávamos uma turma maravilhosa de amigos: Alberto, o Bagre – seu pai era pescador, mas teve um ancestral riquíssimo em Penedo, dono de navio mercante que afundou e ele ficou pobre. Alexei, o Brigão – seu pai era cabo da Polícia Militar e passou para o filho a gana de brigar. Certa vez ele e o Pitiguirra bateram em um menino da turma da Levada, bairro afastado de gente pobre e de pescadores. A reação foi imediata e a turma nos atacou com pedaços de pau e, parece, com faca, no início da noite, quando estávamos conversando na esquina da rua. Felizmente deu tempo de todos entrarem na casa do Bernardeli.

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