Lima Barreto: Cronista do Rio
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Lima Barreto - Lima Barreto
Com Lima Barreto, pelas ruas do Rio
Beatriz Resende
O isolamento faz-me mal à alma e ao pensamento. Mergulho no barulho dos outros, deixo de pensar em mim e nas fantasmagorias que eu mesmo criei para o meu padecer. A embriaguez que a multidão traz é a melhor e a mais inofensiva de todas que se tem até agora inventado. Nem o ópio, nem o álcool, nem o hachisch produzem a embriaguez que com a dela se assemelhe. Temos visões extranormais, sem estragar a saúde...
Lima Barreto, Sobre o carnaval
Uma bela maneira de conhecermos o Rio de Janeiro do início do século XX, das décadas de 1910 e 1920, é seguirmos os passos do escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto. Acompanharmos os passos, os olhos, o deslumbramento, o espanto, a indignação, os protestos e a ternura. Tudo isso aparece quando o escritor fala da cidade do Rio de Janeiro, cidade amada, por vezes, com ciúmes de apaixonado traído. Distrito Federal, termo que Lima Barreto detestava, centro da recente e autoritária República, cidade que fora capital de um império quando o Brasil ainda era colônia e por isso se pensou sempre tão cosmopolita. Cidade, desde sempre, de desigualdades, onde prazer e sofrimento pareciam partilhar tantas vezes o mesmo espaço. Cidade sedutora e injusta. Cidade de que é tão difícil se afastar e onde é tão difícil viver.
O Rio de Lima Barreto é o Rio de Janeiro tão maravilhosamente fotografado por Marc Ferrez, Augusto Malta e outros anônimos profissionais da imagem. Vaidosa de seus dotes naturais é a cidade que aparece em Marc Ferrez, que a fotografou de 1870 a 1915, criando seus famosos panoramas. O Rio de Janeiro em Ferrez é sobretudo a cidade monumental, entre o mar e as montanhas, uma cidade para ser vista, mais do que para ser vivida. São Vistas do Rio
, cartões postais em cujas imagens o que perturbaria a beleza precisa ser recortado, cortado. Largos espaços urbanos, ruas por onde circula a elegância, elementos da modernidade na cidade que quer copiar Paris e rivalizar com Buenos Aires.
A cidade de Malta é bem mais plural, mais desigual. Fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro, registrou imagens da cidade de 1903 a 1936. Contratado para documentar as intervenções urbanas de Pereira Passos no anseio do engenheiro por ser um Haussmann dos trópicos, Malta registra também, por dever de ofício, o casario derrubado no Bota-Abaixo
. Fotografa os próceres da República, os visitantes estrangeiros, mas também os miseráveis, os despossuídos, sem casa, sem sapatos. Malta deixou-nos imagens das elegantes que circulavam pela Rua do Ouvidor e pela recém-aberta Avenida Central e dos habitantes pobres dos morros; fixou alegrias carnavalizantes e a vaidade da Exposição Internacional do Centenário da Independência.
Tudo isso é cenário, espaço de circulação dos personagens de Lima Barreto em seus romances, do centro da cidade de Isaías Caminha ao subúrbio quase zona agrária de Clara dos Anjos. Neles estão o palacete em Botafogo do político corrupto de Numa e a ninfa, o hospício na Praia da Saudade, em frente ao mar da Urca, onde Policarpo Quaresma é recolhido. Em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá a cidade é mais que cenário, é personagem principal que vê o passado colonial ser destruído para que a submissão à metrópole seja para sempre esquecida e não se lembre que o Brasil foi colônia nem que teve, por tanto tempo, escravos.
É em sua intensa contribuição à imprensa como cronista, porém, que a cidade, como maior paixão, domina. Através desses textos podemos seguir o roteiro cumprido pelo escritor vindo do subúrbio de Todos os Santos, onde morava, de trem, até a Central do Brasil. De lá ao centro, em bonde, mas por vezes a pé. Por vezes, do centro ao Leme, ao Leblon, e até mesmo ao distante Jardim Botânico, em mania perambulatória, gastando os sapatos cambetas.
Findo o expediente na repartição pública, no meio da tarde naqueles anos, iniciava-se o circuito dos cafés com discussões políticas, trocas de informações entre jornalistas, provocações entre turmas, espaços de grandes amizades e várias rivalidades.
Andando pela Rua do Ouvidor, observava as mulheres de chapéus, com seus figurinos estranhos, os vestidos ousados das melindrosas que mereciam a defesa do cronista para afrontar a Liga da Moralidade
. Políticos e escritores da Academia Brasileira de Letras são homens em elegância binocular
a contrastar com seu esbodegado vestuário
.
Destronada a Rua do Ouvidor, é pela Avenida Central que é preciso circular quem quiser ser visto ou desejar visitar as grandiosas construções erguidas pela reforma Pereira Passos, como a Biblioteca Nacional, com escadaria que lembrava Versalhes, e o Theatro Municipal, impossível de frequentar pelo custo e pelo figurino exigido.
A cidade cartão-postal, no entanto, continuava a sofrer com as enchentes, inundações que suspendiam o tráfego
, a falta d’água, o transporte insuficiente. Tudo tão próximo a padecimentos da cidade de hoje!
Aposentado, as livrarias – as menores, em especial a Schettino na Travessa do Ouvidor, nunca a Garnier – são ponto de encontro, servem para deixar e receber recados, pedir algum empréstimo nos momentos difíceis. A Galeria Cruzeiro, o Largo de São Francisco e o Largo da Carioca são passagem obrigatória para observar a vida republicana, comentar os arbítrios dos governantes, defender anarquistas perseguidos.
Entre os anos 1920 e 1922, pelo entorno da revista Careta, na Sete de Setembro, onde vai entregar suas crônicas, estende a permanência no Centro.
Acabado o movimento, sem nenhuma vontade de voltar para casa, o caminho dos bares é forçoso. Na Cidade Nova há divertimento, nos pequenos bares à volta da Estação Ferroviária Central do Brasil o parati é barato.
E, finalmente, a volta para a casa em Inhaúma.
Nos fins de semana, o divertimento era pouco, no Méier talvez, onde começam a surgir cinemas e os bares eram simpáticos.
O atravessar constante da cidade dá a Lima Barreto uma intimidade com as ruas, o comércio, os estabelecimentos públicos que lhe permite falar de cada prédio, de cada casa, com o interesse que lhe provocaria uma propriedade sua, se a tivesse.
Em defesa de sua cidade, protesta contra os sofrimentos a que é submetida, o desrespeito de poderosos que a ultrajam com demolições e intervenções que pretendem até domar o oceano que a cerca.
Em época em que não havia ainda poder público a proteger patrimônios históricos, o jornalista serve-se de seu espaço da imprensa para condenar os que querem dividir a cidade em duas, que destroem a história urbana da capital, que favorecem, desde aquele momento, a especulação imobiliária. São conventos que vêm abaixo e skyscrapers que são construídos, apontando para a por ele detestada influência americana.
Pela leitura de suas crônicas, não é difícil perceber que a cidade sacrificada é sobretudo a cidade dos pobres, como acontece com o Morro do Castelo. Carlos Sampaio, prefeito do Rio de Janeiro de 1920 a 1922, os últimos anos de vida de nosso escritor, teve como objetivo principal de sua administração preparar a cidade para a comemoração do Centenário da Independência. Mesmo atrasado em relação à grande moda das Exposições Internacionais, o Rio de Janeiro não poderia ficar de fora de tal exibição de modernidade e cosmopolitismo. Para abrir espaço para a grande feira, justifica-se a derrubada do Morro do Castelo, no centro do Rio de Janeiro. Sítio histórico, local de fundação da cidade, lá estavam duas igrejas e um convento do século XVI, o túmulo do fundador da cidade, Estácio de Sá, calçamento dos anos quinhentos e outras tantas construções coloniais. A derrubada a jatos d’água, novidade propagada pelo Presidente Epitácio Pessoa, foi, segundo Brasil Gerson, especialista nas ruas do Rio, um exemplo sem paralelo nos anais da destruição histórica
. Junto com a história das origens do Rio de Janeiro, ia, convenientemente, todo o casario pobre que se formara no sopé do morro. Inconformado, Lima Barreto tudo registrou em suas publicações em jornais.
Acompanhando o roteiro pessoal do cronista pela cidade fotografada com tanto esmero por seus contemporâneos, restam as imagens de um Rio de Janeiro na Primeira República que só ele nos deixou, as do subúrbio, quase zona rural, em que viveu, onde ficou recluso em momentos difíceis da vida, para onde sempre precisava voltar quando a madrugada chegava. Subúrbios da sua família, dos seus afilhados, com suas feiras e seus mafuás.
A cidade que existia para lá da estação São Francisco Xavier não interessava aos que documentaram as belezas da Capital, os melhoramentos, a urbe afrancesada.
Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/Letras/UFRJ). Pesquisadora do CNPq, é também Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ. Entre os livros que publicou, estão: Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI (Casa da Palavra/Biblioteca Nacional, 2008) e Apontamentos de crítica cultural (Aeroplano, 2000). Organizou Possibilidades da nova escrita literária no Brasil, com Ettore Finazzi-Agró (Revan, 2014); Cocaína, literatura e outros companheiros de ilusão (Casa da Palavra, 2006); Rio Literário: um guia apaixonado da cidade do Rio de Janeiro (Casa da Palavra, 2005), Toda Crônica: uma reunião das crônicas de Lima Barreto, com Rachel Valença (Agir, 2004), e Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos (Autêntica, 2016).
Uma coisa puxa a outra... II
A Estação Teatral | 22-4-1911
OTheatro Municipal! É inviável. A razão é simples: é muito grande e luxuoso. Supondo que uma peça do mais acatado dos nossos autores provoque uma enchente, repercuta sobre a opinião, haverá no Rio de Janeiro e arredores, inclusive o Méier e Petrópolis, gente suficientemente encasacada para enchê-lo dez, vinte ou trinta vezes? Decerto, não. Se ele não se encher pelo menos dez vezes, por peça, a receita dará para custear a montagem, pagar o pessoal, etc.? Também não.
De antemão, portanto, pode-se afirmar, deixando de apelar para números exatos, que aquilo não é muito prático, é inviável. Bem: há adianto à educação artística da população em representações para plateias vazias? Isso estimula autores que não são nem pateados nem aplaudidos? Até os próprios atores quando olham as plateias vazias e indiferentes, perderão o passo, o gesto, o entusiasmo, ao declamarem lindas tiradas e tiverem de jogar um diálogo vivo.
Hão de concordar, pois, que isso de representar para duas dúzias de cadeiras simplesmente ocupadas e três camarotes abarrotados, não constitui coisa alguma e não merece sacrifício nenhum dos poderes públicos.
Armaram um teatro, cheio de mármores, de complicações luxuosas, um teatro que exige casaca, altas toilettes, decotes, penteados, diademas, adereços, e querem com ele levantar a arte dramática, apelando para o povo do Rio de Janeiro.
Não se tratava bem de povo, que sempre entra nisso tudo como Pilatos no Credo. Eternamente ele vive longe desses tentamens e não é mesmo nele que os governantes pensam quando cogitam dessas cousas; mas vá lá; não foi bem para o povo; foi para o chefe da seção, o médico da higiene, o engenheiro da prefeitura, gente entre seiscentos mil-réis e cento e pouco. Pelo amor de Deus! Os senhores veem logo que essa gente não tem casaca e não pode dar todo o mês uma toilette a cada filha, e também à mulher!
Para que o tal teatro se pudesse manter era preciso que tivéssemos vinte mil pessoas ricas, verdadeiramente ricas, e magníficas, interessadas por cousas do teatro em português, revezando-se anualmente em representações sucessivas de cinco ou seis peças nacionais.
Ora, isso não há. Não vejo que haja vinte mil pessoas ricas; mas há ricos e ricos.
Não me convém, entretanto, alongar tais considerações, porque entraria no campo do