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Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos
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E-book250 páginas3 horas

Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos

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Sobre este e-book

Lima Barreto, como se sabe, era um pote até aqui de mágoa. Motivos, os tinha de sobra. Mais do que meros revezes biográficos, ressentimento e frustração tiveram papel estruturante na obra do negro despossuído que, ciente de seu formidável arsenal intelectual e estilístico, tentou em vão interromper o pesadelo bacharelesco do qual até hoje não conseguimos despertar completamente.



Neste livro pioneiro, Beatriz Resende restitui ao autor de Policarpo Quaresma o que lhe é próprio, ou seja, a enraizada força de insurreição contra os cânones, o literário e tantos outros que ainda produzem exclusões de toda ordem. Prosseguia assim o trabalho de Francisco Assis Barbosa, que como biógrafo e editor das obras completas de Lima, talhou para ele o figurino do "grande autor".



Este ensaio parte daí, do reconhecimento póstumo, para apontar seus limites. E lembrar que o princípio ativo de Lima Barreto está também, ou sobretudo, no acabamento provisório da crônica ou no jorro dos diários íntimos. Numa periferia de gêneros e classificações que pode ter contribuído para seu esquecimento mas que, paradoxalmente, cimentou sua impressionante resistência, uma vez passado o rolo compressor do modernismo.



Lima Barreto implodiu convenções e, com elas, as representações do Rio de Janeiro. Beatriz Resende soube reunir estes fragmentos e, mais do que isso, nos mostrar, na primeira hora, sua rigorosa arquitetura. Aquela que hoje temos o privilégio de contemplar como o desenho nítido e delicado de uma constelação.



Paulo Roberto Pires
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de mar. de 2016
ISBN9788582177952
Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos

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    Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos - Beatriz Resende

    Para Úrsula e para Débora.

    PREFÁCIO

    Antonio Arnoni Prado

    Sobre Lima Barreto cronista, poucos estudos avançaram tanto quanto este Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, de Beatriz Resende.

    Lendo-o, o leitor interessado na obra desse libertário itinerante que o destino apagou sob a barbárie dos trópicos, tem, diante de si, o retrato inédito de um narrador moldado nas ruas pela visão dilacerada dos que não têm voz.

    Talvez por isso, no centro da cena que o ensaio ilumina, sejam tantos os figurantes e tão fracionados os elos entre o marginal e a metrópole, cuja modernidade a cidadania testava em suas primeiras trincheiras. Através destas, mais do que o escritor empurrado pelos conflitos que se agravavam no cotidiano das classes subalternas, é a mobilidade do cronista que Beatriz Resende fotografa como um documento de verdade entre a ficção e a história, rompendo com a limitação dos gêneros e inaugurando um espaço de investigação livre sobre a realidade do país.

    O dado novo em sua leitura é que não se trata mais de uma retomada da trajetória de Lima Barreto a partir de um mero olhar contrastivo, interessado apenas no perfil literário ou na personalidade intelectual do autor, tantas vezes revisitados pelos seus críticos. O Lima Barreto que este estudo desvenda é o cronista tangido pelo povo no desespero de seu cotidiano, o jornalista que faz a crítica da imprensa e recupera, nos múltiplos registros de texto, o relato vivo da cidadania ameaçada, num Rio de Janeiro tumultuado com a presença cada vez maior dos pobres e desprotegidos.

    No curso do confronto aberto pelo desemprego, pela ameaça da imigração que fazia aumentar a massa circulante numa época de endividamento, de sublevações e de grandes reformas (lembremos o Encilhamento, o Bota-Abaixo de Pereira Passos, o Levante da Armada, a Revolta da Vacina), o foco que o ensaio persegue é o do exílio de Lima Barreto naquele mar de analfabetos visto pelas elites através do monóculo cívico de Olavo Bilac e recortado em dois tempos distintos – o tempo da truculência institucional da ordem em crise e o tempo da solidariedade dispersa dos figurantes anônimos que traçavam nas ruas um novo mapa da cidade.

    Se no percurso desta trajetória rebatem fundo alguns tantos vislumbres do anarquista romântico que o saudoso Francisco de Assis Barbosa, em sua magistral biografia, nos revelou no Lima Barreto da imprensa militante (recordo, além da Floreal, sua passagem pela Voz do Trabalhador, A Lanterna, Spartacus, A Patuleia, entre outros), agora o recorte é outro, e o leitor verá que o movimento particular do ensaio é justamente o de avaliar a modernidade latente das crônicas de Lima Barreto com vistas a enquadrá-la no movimento geral de reavaliação da cidadania e da cultura naquele ritmo vertiginoso que os novos tempos anunciavam.

    As referências, como é natural, são outras e as fontes teóricas recuperam de um novo ângulo a resistência e o não lugar do demônio social que blasfema sob o olhar atarantado dos grã-finos. O resultado é um Lima Barreto repensado como um dos sinais da escrita viva que reaparece, a cada passo, por entre os impasses da modernização, num contexto que Beatriz rastreia meticulosamente, vindo das distinções de Walter Benjamin, sobre o lugar social do narrador, para o Roland Barthes do prazer do texto, ou mesmo das anotações de Hannah Arendt sobre a dupla face da cidadania, sem esquecer as restrições de Marshall Berman sobre o artificialismo sustentado das grandes metrópoles.

    Tudo mediado, como o leitor verá, pela convicção de que, já em Lima Barreto, o tema da modernidade em arte se constituiu sempre na recusa

    [...] da forma fixa, entendendo-se o arcaísmo não apenas como adoção de uma linguagem e de uma gramática que não dão conta do discurso que a nova ordem pressupõe, mas sobretudo como uma tenaz resistência à incorporação dos novos personagens da vida pública, do chauffeur ao favelado expulso do cortiço demolido, do flâneur ao morador do subúrbio, da aborteira à divorciada.¹

    Na mobilidade crítica desse cronista que funde a alusão ficcional, o registro histórico e a notação biográfica, Beatriz Resende descobre um "gramsciano avant la lettre", dilacerado pela convulsão da cidade, mas sem deixar de amar com sofreguidão cada minuto vivido num Rio de Janeiro cuja identidade ajudou a construir.

    Lendo-o sob essa ótica, o leitor como que atravessa o espaço da comuna ideal para reviver, colado à cena, a miragem da modernidade desfigurante que Ángel Rama nos descreveu em sua cidade das letras.

    Como sabemos, é dentro de seus limites que se multiplicam, ad infinitum, os sonhos dos figurantes que contracenam à margem em busca da dignidade que lhes é negada. Por ela marchou Baudelaire fustigando a miséria dos trapeiros para que se convertessem em homens. A ela retornamos para refazer os passos de um Lima Barreto que interroga a fugacidade do novo, sacudindo o amor-próprio dos párias e canalizando as amarguras do povo.


    ¹ Conferir p. 48 desta edição.

    INTRODUÇÃO

    Dentes negros e cabelos azuis

    A arte de escrever livros ainda não foi inventada. Está

    porém a ponto de ser inventada. Fragmentos desta espécie

    são sementes literárias. Pode haver muito grão mouco

    entre eles: mas contanto que alguns brotem!

    F. Novalis, Pólen, p. 92.

    Dentes negros e cabelos azuis, esta alegoria tomamos de empréstimo ao próprio Afonso Henriques de Lima Barreto, carioca, pardo, nascido em 1881, num 13 de maio. Trata-se do título de um de seus contos menos conhecidos, parte de um grupo de narrativas esparsas incluídas postumamente na segunda edição de Histórias e sonhos.² A primeira edição foi o último livro publicado ainda em vida do autor, em 1920.

    O conto, ao mesmo tempo em que se constitui num momento à parte da prosa do autor, por se afastar de uma representação realista ou satírica do cotidiano, tem a propriedade de remeter-nos ao conjunto de sua produção literária, ao seu processo de criação e às condições de vida deste cidadão do Rio de Janeiro. Em Dentes negros e cabelos azuis, o que há de realmente provocante é o quanto a própria narrativa transita pelos três planos que constituem o conjunto da obra de Lima Barreto: o plano ficcional, o plano histórico e o plano autobiográfico. Movendo-se do conto à crônica, da crônica ao depoimento pessoal, daí à narrativa sobre uma narrativa e desta ao registro social, o texto é produto de um autor que diz de si mesmo: Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível.³ Mas é este mesmo autor que constrói uma antropologia do cotidiano, o etnógrafo Lima Barreto, a literatura dos temas não sacralizados, a dramaturgia dos atores secundários.

    No texto, o narrador, duplo do autor, relata a história que outro narrador-personagem, num labirinto borgiano, conta. Gabriel é o jovem personagem-narrador muito inteligente para amar a sociedade de que saíra, e muito finamente delicado para se contentar de tolerado em outra qualquer. A esse jovem que possui uma natureza assim dual, bifronte, os que o encontram, os que passam na rua, não hesitam em perguntar: Olá, tingiste a cabeça no céu; mas onde enlameaste a boca?. Num jogo de ambiguidades, em que não se sabe bem quem conta a história de quem, o personagem, interpelado na madrugada erma do subúrbio, entrega ao assaltante noturno o pouco dinheiro que possui, mas causa tal espanto ao que o domina que acaba entregando ao estranho não o dinheiro, mas a sua grande mágoa fatal.

    A citação longa justifica-se pela pouca divulgação até hoje recebida pelo texto, pela sua riqueza, que o faz merecer o espaço que também ele sabe roubar, e pelo quanto é emblemático.

    Não percebes que não me é dado oferecer batalha; que sou como um exército que tem sempre um flanco aberto ao inimigo? A derrota é fatal. Se ainda me houvesse curvado ao estatuído, podia... Agora... não posso mais. No entanto tenho que ir na vida pela senda estreita da prudência e da humildade, não me afastarei dela uma linha, porque à direita há os espeques dos imbecis, e à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata ameaça triturar-me. Tenho que avançar como um acrobata no arame. Inclino-me daqui; inclino-me dali; e em torno recebo a carícia do ilimitado, do vago, do imenso. Se a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mira me surge recordado pelo berreiro que vem de baixo, em redor aos gritos: homem de cabelos azuis, monstro, neurastênico. E entre todos os gritos soa mais alto o de um senhor de cartola, parece oco, assemelhando-se a um grande corvo, não voa, anda chumbado à terra, segue um trilho certo cravado ao solo com firmeza.

    Quando a confissão se encerra, o subúrbio ia despertar. Na ruptura com o velho, com o estatuído, na tentativa de instaurar o novo andando sobre a corda bamba, o equilíbrio é difícil. O estatuído ameaça com seu poder os divergentes, os mandarins repudiam a marginália. Diante dos senhores de cartola, a derrota parece inevitável, e o ilimitado, uma carícia impossível. Mesmo assim, a palavra que surge por entre os dentes negros é a tentativa de criar um discurso próprio. Para as aves de rapina que seguem presas ao chão, os cabelos tingidos no céu caracterizam o diferente, portanto desprezível, como afirma o senhor de cartola na continuação do conto: Posso lhe afirmar que é um degenerado, um inferior, as modificações que ele apresenta correspondem a diferenças bastardas.

    É neste enfrentamento da diferença que o conto de nome feroz remete para a obra, para o autor e para seu tempo.

    Em 1915, Lima Barreto escreve a Gilka Machado saudando-a pela publicação de seu primeiro e já corajoso livro de poemas Cristais partidos. E faz sobre a autora observação que merece destaque:

    Foi por compreendê-lo bem [seu temperamento], que admirei muito de sua inspiração, a sua completa independência de moldes, dos velhos cânons, e a sua audácia verdadeiramente feminina.

    É sob esta ótica da ruptura com cânones diversos que pretendemos olhar os escritos de Lima Barreto. Por isso mesmo escolhemos justamente textos não canonizados, pertencentes aos gêneros que só recentemente vêm merecendo da crítica um tratamento com o status que cabe aos textos literários: crônicas jornalísticas e escritos da intimidade. Mas não é o cânone que rege ainda as classificações teóricas, organizando a literatura em gêneros hierarquizados, o mais rigoroso. Realizada a grande renovação dos movimentos vanguardistas, estabelecido o rompimento necessário com uma estética passadista, foi-se, aos poucos, instaurando um novo cânone, o cânone modernista que faria da Semana de Arte Moderna um implacável e patrulhador divisor de águas, perdendo-se, muitas vezes, com a preocupação modernista, a perspectiva de uma crítica dessa mesma modernidade. No momento, porém, em que se põe em discussão o significado do projeto moderno, sua continuidade ou exaustão, evidencia-se a necessidade de revitalização do conceito de modernismo e o próprio questionamento do conceito de novo com o valor que recebe num país de origens coloniais, antes receptor do que produtor de cultura.

    O cânone modernista terminou por se fazer responsável pelo esquecimento, pela desvalorização ou mesmo pelo desaparecimento de obras e autores que, já desvinculados do academicismo, do beletrismo, não chegaram, porém, às vezes por mera questão de calendário, a fazer parte do que se consagrou como Movimento Modernista. Irônicos e irreverentes cronistas do Rio de Janeiro republicano, como João do Rio e Álvaro Moreyra, viram-se atirados na vala comum dos tradicionalistas. Só mesmo a severa instituição do cânone poderia fazer com que autores de grande público como Théo Filho e Benjamin Costallat desaparecessem das memórias e das bibliotecas, o que não terá sido trabalho fácil se lembrarmos que as edições dos livros de Benjamin Costallat eram lançadas com uma tiragem de 5 milheiros e se repetiam várias vezes num ano.

    Pesquisadores como Nicolau Sevcenko, Antonio Arnoni Prado, Francisco Foot Hardman, Flora Süssekind vêm mostrando que o modernismo é um processo originado bem antes dos movimentos vanguardistas dos anos 1920 e que o estudo da modernidade na literatura brasileira não pode se fazer sem a formulação simultânea de sua crítica.

    Dedicando-se ao estudo do movimento literário da virada do século, Flora Süssekind adverte para o empobrecimento que a diluição de tendências estéticas anteriores ou posteriores traz para a compreensão do momento que antecede a 1922.

    É como se desde a última década do século XIX aos anos 20 deste século a literatura brasileira apresentasse uma estranha suspensão de sentido por três decênios. Ou melhor: como se só fosse possível compreendê-la, neste período, enquanto pré ou pós alguma coisa. Enquanto vampirização diluidora de marcas e estilos anteriores ou embrião de traços modernistas futuros.

    No caso de Lima Barreto, a tarefa da crítica contemporânea é, sobretudo, de resgate de uma obra cuja importância nem os ocos senhores de cartola de seu tempo nem os eufóricos modernistas conseguiram perceber. Essa revalorização da crítica teve início com a publicação de suas obras completas por seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, mas muito lhe deve ainda a intelectualidade brasileira.

    Desde o primeiro livro publicado por Lima Barreto, estabeleceu-se um conflito definitivo entre sua produção literária e os detentores do poder cultural na cidade letrada, capital da República Velha. Se a ruptura com os mandarins da literatura faz com que lhe seja negado o discurso legitimador da crítica oficial, a situação à margem garante à sua produção a preservação da independência. Diante das dificuldades de edição dos romances e contos que segue escrevendo, Lima Barreto busca na imprensa a forma de veiculação de sua escrita. Apartado dos grandes jornais, atuará em revistas, publicações de oposição ao regime, de associações de cunho político-corporativo, em periódicos de pequena circulação, frequentemente empastelados pela censura. Essa colaboração constante na pequena imprensa será definidora do perfil de grande parte de sua produção literária: as crônicas.

    O processo de exclusão que sua obra cedo sofrerá irá se estender ao cidadão Lima Barreto. Excluído do serviço público pelo estigma provocado por sucessivas internações, a aposentadoria o libertará dos últimos compromissos com o estatuído. Mas a esta se seguirá uma forma mais radical de exclusão, a internação pela força no Hospício Nacional dos Alienados. Também a essa violência Lima Barreto responderá pela escritura, criando um depoimento que se transforma em denúncia do sistema coercitivo de um Estado que se utiliza da medicina da mesma forma que o fazia com o mito do progresso, como instrumento de intervenção política para instaurar sua ordem e controlar os indivíduos, sob o aval da ciência.

    Estabelece-se, portanto, entre a vida do autor e sua produção, um vínculo que tem a ver com a própria temática de sua obra: a defesa incondicional do direito do cidadão, o acesso à informação e a valorização do nacional. Como diz nosso autor, a arte e a literatura são cousas sérias, pelas quais podemos enlouquecer.

    Lima Barreto aparece no horizonte cultural da Primeira República como intelectual independente, num momento em que a cooptação dos intelectuais pelo poder é mais do que frequente, é praticamente a única situação existente numa cidade onde o saber autêntico não se constitui, por si só, em valor ou forma de ascensão social. O desprestígio que o ideário da sociedade vota ao saber corresponde à emulação devotada aos doutores. Os bacharéis não são gratuitamente alvo constante da crítica de Lima Barreto. Na República que se instaura, cabe-lhes um papel político, como intelectuais do Estado, na organização pelo alto da sociedade em que tudo se opõe ao papel que a si mesmo atribui Lima Barreto como articulador da opinião pública. Werneck Vianna, analisando a relação dos intelectuais com a modernidade, mostra que serão obra dos intelectuais políticos da Primeira República a gestão do Estado, da economia e a reelaboração do urbano:

    Uma filosofia política na cabeça e os instrumentos de poder nas mãos, ideal da modernidade, estranheza em relação à sociedade concreta, mestiça, tropical, hostil ao éthos do trabalho, que lhe cabia controlar e disciplinar.

    A primeira recusa de qualquer compromisso com a elite intelectual se fez em Lima Barreto pela denúncia da escrita academicista, velha, coelhonetista, antecipando a instauração do novo que vai se dar na escrita modernista. A opção de nosso autor é por uma retórica despojada do ornamental, uma retórica de bagatelas, representante das feiras e mafuás: Não posso compreender que a literatura consista no culto ao dicionário.¹⁰ O academicismo recusado significa uma aproximação do elemento popular ao autenticamente nacional, na construção de uma literatura que reflete um ideal num autor que tenta executar esse ideal em uma língua inteligível a todos, para que todos possam chegar facilmente à compreensão daquilo a que cheguei através de tantas angústias,¹¹ como declara em Amplius, prefácio do citado Histórias e sonhos.

    Na verdade, o antagonismo que Lima Barreto estabelece entre sua escrita e aquela coelhonetista para fazer brindes de sobremesa, para satisfação dos ricaços¹² corresponde ao antagonismo que cresce entre bairros aristocráticos, civilizados, de gente fina e os subúrbios com sua burguesia e operariado que a sociedade clânica, clientelista, onde o favor¹³ predomina, expulsou em nome do progresso de seu cenário de cartão-postal para uma periferia desatendida pelo Estado. Neste quadro, os

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