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Formação Integral - Por Uma Cultura do Cuidado
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E-book281 páginas3 horas

Formação Integral - Por Uma Cultura do Cuidado

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Sobre este e-book

As autoras e os autores convidados estão comprometidos com o bem da Igreja e, por muitos anos, têm se dedicado à formação para a vida sacerdotal e consagrada como docentes e psicoterapeutas. São profissionais que estão colaborando para a formação de pessoas chamadas a ser, para os outros, expressão do rosto terno e do coração misericordioso de Deus [...] eles apontam elementos que podem ajudar não apenas no processo de amadurecimento dos vocacionados, mas também no processo de cura e libertação de tudo aquilo que contradiz o que os ministros consagrados e as pessoas consagradas são chamados a ser na Igreja e no mundo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de set. de 2023
ISBN9788534952163
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    Formação Integral - Por Uma Cultura do Cuidado - Ronaldo Zacarias

    1

    OS DESAFIOS DA INTEGRIDADE DA PESSOA NUM CONTEXTO DE CRISE DE IDENTIDADE E CREDIBILIDADE

    Ricardo Hoepers1

    O evangelista Lucas narra que Jesus, estando na sinagoga, recebeu o livro do profeta Isaías para proclamar a leitura. Ao abri-lo, ele encontrou o lugar da seguinte passagem:

    O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar o Evangelho aos pobres: enviou-me para proclamar a liberdade aos presos e, aos cegos, a visão; para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar um ano do agrado do Senhor. Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Os olhos de todos na sinagoga estavam fixos nele. Então, começou a dizer-lhes: Hoje cumpriu-se esta palavra da Escritura que acabais de ouvir (Lc 4,18-21).

    Esse trecho é lido na missa do crisma, em que os presbíteros também renovam suas promessas sacerdotais. É na perspectiva da conexão entre fé e vida que podemos falar sobre integridade, identidade e credibilidade na missão que é confiada aos ministros ordenados e aos consagrados. Na reflexão que segue, utilizaremos o termo vocacionados para nos referir a todos os homens e mulheres que sentiram o chamado e respondem continuamente aos apelos de Deus.

    Se, de fato, vivemos uma mudança de época, de busca de sentido, de valores, de novos conhecimentos, somos também interpelados pela múltipla variedade de ressignificações que exigem uma tomada de consciência sobre nossa identidade de vocacionados. O papa Francisco fala em poliedro;² outros, em sociedade líquida ou sentimento oceânico;³ outros, ainda, em hiperculturalidade ou sociedade do cansaço;⁴ outros chamam simplesmente de globalização, com as devidas críticas ao que ela significa.⁵ O fato é que toda crise gera um desassossego,⁶ que pode comprometer as estruturas sociais e seus vínculos, mas, ao mesmo tempo, gerar novas perspectivas, novas tomadas de decisão e atitudes corajosas. Todo vocacionado é atingido diretamente por esse contexto, até porque a resposta ao chamado exige total imersão na vida do povo e nas suas culturas.

    De todas essas perspectivas, parece que a visão do poliedro nos permite avançar, sem medo, diante dos pessimismos que prometem uma guerra de valores e contravalores, dividindo o mundo em dois polos, e das pseudoeclesiologias que minam o caminho do Concílio Vaticano II e da Sinodalidade.

    Aqui, o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes, e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com sua cultura, seus projetos e suas próprias potencialidades. Até mesmo as pessoas que possam ser criticadas por seus erros têm algo a oferecer que não se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.

    Na visão poliédrica, podemos encarar os processos de conflitos de interesse como oportunidades de amadurecimento e de tomada de consciência do que devemos escolher, priorizar e assumir como sentido para a vida.

    O universal não deve ser o domínio homogêneo, uniforme e padronizado duma única forma cultural imperante, que perderá as cores do poliedro e ficará enfadonha. É a tentação manifestada na antiga narração da Torre de Babel: a construção daquela torre que chegasse até o céu não expressava a unidade entre vários povos capazes de se comunicar segundo a própria diversidade; antes, pelo contrário, foi uma tentativa, nascida do orgulho e da ambição humana, que visava criar uma unidade diferente da desejada por Deus em seu plano providencial para as nações (cf. Gn 11,1-11).

    No poliedro, não há dois lados opostos, em constante conflito, mas uma busca incessante de exercício de perdão, reconciliação e misericórdia. Olhando para o texto bíblico citado, Jesus estava em sua terra, no meio dos seus e, mesmo assim, não se omitiu em trazer à tona valores que até então eram conhecidos, mas não vividos. No encontro do saber com o fazer está a ética vocacional, primeira experiência poliédrica de confronto consigo, com Deus, com a realidade que nos cerca e com o sentido que conecta tudo isso, isto é, com a verdade que integra o que somos com o que cremos, o que vivemos com aquilo que Deus espera de nós.

    A segunda experiência vocacional poliédrica tem a ver com o confronto dessas verdades, num mundo plural, diferente e indiferente. Como compreender a vocação, o chamado, a missão a partir do plano de Deus e do seu projeto (leitura que Jesus fez do profeta Isaías) que confronta e desafia nosso modus vivendi? A credibilidade que sustenta nossa fé jamais poderá ser separada da credibilidade que sustenta nossas relações com o outro. Nesse sentido, a Igreja olha para si mesma e reconhece suas fraquezas e, nos percalços e quedas dos seus vocacionados, é chamada a rever seus métodos e corrigir seus caminhos. Quando os vocacionados se afastam da missão a eles confiada, é mais fácil que sejam vitimizados por ambições e desvios que ferem e maculam o corpo místico de Cristo. Por isso, Jesus cita, como essência de sua missão, a experiência de encontro com o outro: os pobres, os presos, os cegos, os oprimidos. Como diz o papa Francisco: É o poliedro, onde ao mesmo tempo que cada um é respeitado no seu valor, ‘o todo é mais que a parte, sendo também mais que a simples soma delas’.

    1. Integridade da vida humana

    A referência que ilumina nossa reflexão está na Gaudium et Spes:

    Com efeito, é a pessoa do homem que deve ser salva, e a sociedade humana que deve ser renovada. Por isso, o eixo de nossa exposição será o homem, em sua unidade e integridade de corpo e alma, de coração e consciência, de mente e vontade. Por essa razão, proclamando a altíssima vocação do homem e afirmando que nele está depositada uma semente divina, o Sagrado Sínodo oferece ao gênero humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de estabelecer uma fraternidade universal que corresponda a essa vocação.¹⁰

    A integridade da vida humana está fundamentada na obra do Criador: Façamos um ser humano, à nossa imagem e segundo nossa semelhança (Gn 1,26), e, na plenitude dos tempos, quando o próprio Cristo revela a verdade sobre nós:

    Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes dei a glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um, eu neles e tu em mim. Sejam, assim, consumados na unidade, e o mundo reconheça que tu me enviaste e os amaste, como amaste a mim (Jo 17,21-23).

    À imagem de Deus, fomos criados para experienciar o mesmo amor que vem da unidade trinitária que nos criou. Assim, nossa integridade advém da irresistível experiência de unidade, no mesmo amor pelo qual fomos criados. O mandamento do amor a Deus e ao próximo extrapola o mero formalismo moral para revelar nossa essência. Pelo batismo, nos tornamos filhos e filhas amados, constituindo, assim, o fator primordial de unidade que nos mantém conectados com a natureza humano-divina, revelada no Filho, e, pelo Espírito Santo, recebemos a consciência de que só em Deus alcançaremos a plenitude do que realmente fomos chamados a ser.

    A obra da criação e da redenção revela a fidelidade do amor trinitário por cada ser humano e por toda a humanidade. No mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo, restaurou-se completamente o vínculo perdido pelo pecado original, e cada pessoa foi salva integralmente, de corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade. Por Cristo, com Cristo e em Cristo, recuperamos não somente nossa identidade pessoal que revela nossa origem e nosso destino, mas, também, recompomos a compreensão da nossa identidade vocacional, comunitária e fraterna, que restaura toda a sociedade humana em vista da mesma missão: [...] sob a orientação do Espírito Santo, a obra do próprio Cristo, que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar, e não para julgar (Jo 18,37), para servir, e não para ser servido (Jo 3,17; Mt 20,38; Mc 10,45).¹¹

    Portanto, falar em integridade humana é reconhecer nossa vocação inserida no contexto da missão, da cooperação com a Igreja e da fraternidade e amizade universal. Quando nos desconectamos dessa perspectiva para um sentimentalismo religioso, instrumentalizamos a narrativa de uma espiritualidade autorreferencial e, sem a unidade com a semente divina, nos tornamos reféns de um senso pseudorreligioso e nocivo, isto é, passamos a querer dominar o outro, em vez de amar como Jesus nos amou. Vejamos alguns perigos que atentam contra a semente divina em nós e colocam em risco a integridade humana.

    1.1 Quando a semente divina é maculada

    São muitas as transgressões sexuais que vêm minando e destruindo famílias, comunidades religiosas e eclesiais, instituições educacionais públicas e privadas, profissões das mais diversas, atingindo todos os níveis da sociedade. Infelizmente, há uma exploração comercial que se retroalimenta com o culto ao hedonismo – culto esse acompanhado, não raras vezes, de outras transgressões, como o uso e abuso da pornografia e de substâncias químicas –, aniquilador da dignidade humana. Com isso, as bases do respeito e da conduta ética e sexual são ameaçadas, favorecendo uma série de desvios e patologias nas relações humanas e sociais.

    Instituições seculares foram atingidas diretamente e, por causa dos escândalos decorrentes dos crimes praticados, precisaram rever seus protocolos de ação e definir tolerância zero nos assuntos de transgressões e crimes sexuais, como no caso da pedofilia. Na Igreja, essa mácula em relação à semente divina se torna mais profunda e mais dolorosa. A sexualidade humana sempre foi e sempre será o sinal da fidelidade e do amor verdadeiro, tendo, no matrimônio, o lugar sagrado para expressar seu mais alto grau de entrega e de harmonia desse amor. A sexualidade, na Igreja, é vista como dom de Deus e expressa o sublime sinal de doação mútua para a abertura para a vida. Desde os primórdios das comunidades cristãs, a castidade e a virgindade foram se tornando os sinais da entrega e do amor total pela causa do Reino e pela missão.

    A sexualidade, enfim, quando vivida dentro do plano de Deus, é o tesouro precioso de que a Igreja sempre se esmerou em cuidar, para que os cristãos pudessem testemunhar, em suas vidas, o equilíbrio e as virtudes que dele advém. Por isso, é tão sofrido e marcante na vida da Igreja o fato de um vocacionado macular sua conduta sexual, desviando-se do sentido positivo da sexualidade ou cometendo crimes hediondos, como é o caso da pedofilia.

    Diante dessa tragédia que fere o corpo místico de Cristo, os últimos papas têm atuado com rigor, até chegar à tolerância zero, no pontificado de Francisco. A definição de protocolos de prevenção, a criação de comissões de escuta e acompanhamento das vítimas, o enfrentamento honesto dos processos, a colaboração com a Justiça, a demissão do estado clerical, especialmente em relação aos crimes cometidos contra menores e pessoas vulneráveis, tem sido a resposta concreta da Igreja para superar uma mentalidade de silêncio, conivência e impunidade que aos poucos foi se consolidando. Mas ainda há muita coisa a ser feita. Os crimes dentro da Igreja nos fazem refletir quanto esse mal atingiu todas as instâncias sociais, provocando enorme sofrimento. Quanto mais perversa é a cultura que alimenta tais desvios e patologias na área da sexualidade, maior é o número de vítimas que vão se somando às novas gerações.

    Há uma urgência e um clamor para que toda a sociedade se organize no combate aos crimes sexuais que atingem crianças, jovens, famílias e idosos de todos os níveis sociais. Esses crimes estão, muitas vezes, invisivelmente presentes em todas as instituições e profissões, mas principalmente no silêncio amordaçado de muitos lares. É difícil e complexo tratar desse tema, mas ninguém mais pode omitir-se em colaborar no combate tanto aos crimes sexuais quanto à cultura que investe na pornografia como referência de liberdade sexual e cultua desvios e perversidades na esfera da sexualidade.

    É urgente formar a consciência para uma nova cultura, mais atenta e vigilante na busca de salvaguardar as pessoas desse mal e das perversidades que destroem a credibilidade das instituições e, sobretudo, a dignidade das pessoas vitimadas.

    A tutela dos menores e das pessoas vulneráveis faz parte integrante da mensagem evangélica que a Igreja e todos os seus membros são chamados a espalhar pelo mundo. De fato, o próprio Cristo confiou-nos o cuidado e a proteção dos mais pequeninos e indefesos: Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe (Mt 18,5). Por isso, todos temos o dever de acolher, com generosidade, os menores e as pessoas vulneráveis e criar para eles um ambiente seguro, atendendo de maneira prioritária aos seus interesses. Isso requer uma conversão contínua e profunda, em que a santidade pessoal e o desvelo moral possam concorrer para promover a credibilidade do anúncio evangélico e renovar a missão educativa da Igreja.¹²

    1.2 Quando a semente divina é obscurecida

    Um forte individualismo está se tornando o modo predominante de viver, sob a bandeira da liberdade e do direito de expressão. O bem comum é visto com desconfiança, a experiência humana da partilha e da solidariedade se torna área institucionalizada e profissionalizada. Os valores universais começam a se tornar escolhas subjetivas, e a vida passa a ser relativizada para dar espaço a interesses obscuros. Obscurecer significa tornar menos claro, apagar, tirar a luz que lhe é própria, mas, acima de tudo, confundir.

    A confusão acerca do que somos e do valor sagrado da vida começa nos conceitos e nas narrativas que se constroem. Palavras e expressões como interrupção terapêutica, interrupção voluntária, interrupção legal da gravidez, direitos reprodutivos, saúde reprodutiva são maneiras eufemísticas de falar sobre o aborto, isto é, sobre o homicídio intrauterino, e, com isso, afirmam-se como substitutivas da verdade. Morte digna, morte assistida são expressões que muitas vezes manipulam o conceito de eutanásia, que não deixa de ser um homicídio. Precisamos tomar muito cuidado, portanto, com as novas ideias sobre o valor e o sentido da vida, pois elas podem estar envenenando a sacralidade do dom de Deus: A vida humana deve ser respeitada e protegida, de maneira absoluta, a partir do momento da concepção.¹³

    Em nível social, não é diferente. Há muitas narrativas que pretendem justificar a todo custo o desenvolvimento, o progresso, o bem-estar social, as tecnologias. Podem estar por detrás desses temas grandes projetos de exclusão, de empoderamento econômico e financeiro de poucos, de instrumentalização do social para interesse de commodities, de elã do mercado tecnológico que cria dependência e financia guerras. O critério para o discernimento ético é que em nenhum desses projetos a prioridade é dada ao ser humano. Muito pelo contrário, ele se torna meio para o alcance dos mais variados fins.

    Outro nível de obscurantismo está nos discursos pseudorreligiosos que tentam explicar e justificar a crise atual com narrativas apocalípticas, desde a difusão do terraplanismo até a condenação de todos ao fogo do inferno. São grupos fanáticos que surgem nos tempos de crise, para confundir e fundamentar, na narrativa espiritual, o contraponto da crise antropológica, recuperando o perigoso dualismo que separa tudo em dois mundos, em inimizades e violências. Como diz o papa Francisco, na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate:

    Neste contexto, desejo chamar a atenção para duas falsificações da santidade que poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o pelagianismo. São duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do cristianismo, mas continuam a ser de alarmante atualidade. Ainda hoje os corações de muitos cristãos, talvez inconscientemente, deixam-se seduzir por essas propostas enganadoras. Nelas aparece expresso um imanentismo antropocêntrico disfarçado de verdade católica. Vejamos estas duas formas de segurança doutrinária ou disciplinar, que dão origem a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais, e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente.¹⁴

    Os neognosticismos e neopelagianismos que vemos hoje são chamados pelo papa Francisco de falsificações da santidade.¹⁵ Essas linhas obscurantistas da fé precisam ser superadas, pois não podemos admitir qualquer instrumentalização ou desvio da mensagem do Evangelho que desfigure a revelação que nos foi dada por Cristo.

    1.3 Quando a semente divina é menosprezada

    Podemos observar que a consequência direta da ausência de Deus é o menosprezo pela vida. Para alguns que cultivam o ódio contra a religião, ao desqualificar a Igreja, a fé e o projeto do Reino de Deus, resolve-se o problema da liberdade humana, que, segundo eles, sempre foi oprimida e cerceada pelas exigências morais da religião. Como se a Igreja fosse culpada de todos os tormentos sociais! A tática é menosprezar o que a Igreja preza. Isso é um instrumento eficaz para desqualificar a integridade e diluir a identidade cristã (imagem e semelhança de Deus) na história ocidental. Depreciar a cultura, desqualificar as identidades, desconsiderar a história são modos de enfraquecer aquilo que o ser humano tem de mais belo e mais precioso:

    De fato, assim como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo. De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num só Espírito, para formarmos um só corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito (1Cor 12,12-13).

    Quando a sociedade começa a se acostumar com o que é nocivo à vida, por causa da lógica do mercado, do jogo financeiro e das estratégias de interesse do capital, o corpo de Cristo é dilacerado por meio do uso de drogas, da prostituição, do tráfico de pessoas e de órgãos, do trabalho escravizado, da pobreza e da miséria, da corrupção, do racismo, do ódio e da violência, da discriminação e da prática eugênica. Todo desrespeito à dignidade da vida humana deve ser denunciado como um mal e jamais ser aceito por uma consciência reta: A vida e a saúde física são bens preciosos doados por Deus. Devemos cuidar delas com equilíbrio, levando em conta as necessidades alheias e o bem comum.¹⁶

    A pior consequência dessa mentalidade de menosprezo é o descarte. O termo descarte é muito utilizado, em nossa sociedade, para expressar aquilo que não tem mais serventia, que não tem mais utilidade, que precisa ser eliminado. Imaginemos as toneladas diárias de lixo que produzimos no mundo, o acúmulo de coisas que sobram do consumo doentio e os resíduos poluidores da produção industrial e agrícola. Entrar nessa discussão já seria o suficiente para mostrar o estrago que o descarte provoca à saúde da humanidade.

    O papa Francisco, no entanto, vai além e fala do pecado da cultura do descarte e da globalização da indiferença. A mentalidade sobre o lixo foi projetada para o humano. As relações humanas se tornaram descartáveis, desprezíveis. As relações sociais se tornaram excludentes e viciadas no desprezo do mais fraco, do mais vulnerável e do mais pobre. Eis o que Francisco denuncia na Fratelli Tutti:

    Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção

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