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Introdução ao Campo Aplicado dos Fatores Humanos na Aviação Civil: o Crew Resource Management -CRM- e desdobramentos
Introdução ao Campo Aplicado dos Fatores Humanos na Aviação Civil: o Crew Resource Management -CRM- e desdobramentos
Introdução ao Campo Aplicado dos Fatores Humanos na Aviação Civil: o Crew Resource Management -CRM- e desdobramentos
E-book802 páginas8 horas

Introdução ao Campo Aplicado dos Fatores Humanos na Aviação Civil: o Crew Resource Management -CRM- e desdobramentos

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Sobre este e-book

Mais do que atual em trazer pesquisas científicas relevantes e recentes, o livro vai além dos manuais tradicionais e nos instiga a pensar os fatores humanos sob a ótica da Nova Visão da Gestão da Segurança. Isso não é somente inovador na língua portuguesa, mas também em qualquer outra língua. A Nova Visão é um movimento internacional que procura resgatar a humanidade na gestão de segurança. Pilotos, comissários, mecânicos, agentes de solo, analistas, gerentes, diretores e presidentes de empresas são a solução a ser desenvolvida ao invés do elo mais fraco da corrente. E por meio dessas pessoas é que a aviação comercial é um dos sistemas mais seguros que existe na atualidade.

Com maestria, o autor nos conduz pela evolução do modo de pensar sobre a influência do fator humano na segurança da aviação, mostrando as diversas tradições, modelos e taxonomias. Ele então nos direciona para a definição e objetivo do CRM antes de explicar de modo bem simples as normas e diretrizes regulamentares que normatizam o treinamento de fatores humanos e CRM no Brasil e no mundo. No cerne do livro, o autor rege a melodia de cada uma das habilidades que compõem o treinamento de CRM, seja ele inicial ou recorrente. E como bônus, aplica os conceitos de fatores humanos na operação de aeronaves com apenas um piloto (Single Pilot Resource Management – sem) e na operação de drones e aeronaves não-tripuladas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de dez. de 2023
ISBN9786527000266
Introdução ao Campo Aplicado dos Fatores Humanos na Aviação Civil: o Crew Resource Management -CRM- e desdobramentos

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    Introdução ao Campo Aplicado dos Fatores Humanos na Aviação Civil - Edmundo A. Heuser

    1 O CAMPO APLICADO DOS FATORES HUMANOS

    O conceito de Fatores Humanos evoluiu de uma abordagem focada no projeto de equipamentos melhor adaptados ao homem, ao final da Segunda Guerra Mundial, ao conceito contemporâneo de campo multidisciplinar fundamentado em métodos e princípios das ciências sociais e comportamentais assim como da engenharia e psicologia, no intuito de melhorar o desempenho humano e diminuir a ocorrência do erro (HELMREICH; FOUSHEE, 2010).

    Meister define Fatores Humanos como o estudo de como os humanos realizam suas tarefas relacionadas ao trabalho no contexto da operação do sistema homem-máquina (MEISTER apud WICKENS; HOLLANDS, 1999, p. 2).

    Outra definição de Fatores Humanos foi dada por Edwards (apud ICAO, 1989, p. 4) nos seguintes termos: Fatores humanos dizem respeito a otimização do relacionamento entre pessoas e suas atividades, pela aplicação sistemática das ciências humanas, integradas dentro de uma estrutura de engenharia de sistemas.

    A preocupação com a criação de utensílios e ferramentas que pudessem ser manuseadas com maior eficácia e a adaptação do homem ao meio é antiga. No século I a.C, o arquiteto romano Marcus Vitruvius Pollio já estudava a relação homem-ambiente ao estabelecer certas dimensões tais como altura de portas em construções. No século XV, o gênio Leonardo da Vinci, além de esboçar projetos de máquinas voadoras, iniciou os primeiros estudos de Antropometria, conforme pode ser observado no Figura 1.

    Homem Vitruviano” de Da Vinci ganha versão em 3D | ASMETRO-SI

    Figura 1 – O Homem Vitruviano (LEONARDO DA VINCI, Século XV).

    A primeira definição científica de Ergonomia foi dada por Wojciech Jastrezebowski e data de 1857, durante a Revolução Industrial. O referido pesquisador polonês asseverou que a Ergonomia como uma ciência do trabalho requer que entendamos a atividade humana em termos de esforço, pensamento, relacionamento e dedicação (JASTREZEBOWSKI, apud MÁSCULO; VIDAL, 2011, p. 7).

    Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o conhecimento científico foi empregado no projeto e construção de equipamentos bélicos que demandavam determinadas habilidades de seus operadores em ambientes de combate. Erros que causavam acidentes se sucediam, motivando a pesquisa no intuito de melhor adaptar tais equipamentos ao ser humano. No período pós-guerra, a Ergonomia caracterizou-se como uma disciplina a partir da década de 50 na Inglaterra, quando foi fundada a Ergonomics Research Society. A denominação Ergonomia foi adotada na Europa, enquanto o termo Fatores Humanos foi difundido nos Estados Unidos da América, com a fundação da Human Factors Society em 1957 (IIDA, 2005).

    Na visão de Hawkins (1987), há uma pequena diferença entre as duas disciplinas no que se refere à ênfase, na medida em que o termo Fatores Humanos tem um significado mais abrangente pois engloba alguns aspectos do desempenho humano e interface com sistemas, porém, o mesmo autor considera que ambas as disciplinas tratam primariamente do desempenho e do comportamento humano, o que na prática determina o mesmo escopo.

    Christensen (1987, p. 8) afirma Nós preferimos utilizar o termo Fatores Humanos ou Ergonomia para cobrir ambas proteção/desempenho e pesquisa/aplicações (tradução nossa). De acordo com Lehto e Landry (2013, prefácio) Fatores Humanos, também chamados de Ergonomia, são amplamente relacionados ao projeto e análise de sistemas com respeito às capacidades dos humanos que interagem com os mesmos (tradução nossa).

    Em contrapartida, Dejours (2005) aprofunda esta discussão, ao estabelecer uma visão própria acerca do tema, asseverando:

    Fator Humano é a expressão usada por engenheiros, engenheiros de segurança de sistemas, projetistas, engenheiros de higiene e segurança do trabalho e especialistas em segurança das pessoas e instalações para designar o comportamento de homens e mulheres no trabalho. O fator humano é frequentemente invocado como nas análises de catástrofes industriais (Chernobil, Bopal...), acidentes com trens, petroleiros ou aviões, acidentes de trabalho etc.., bem como em processos em curso na justiça ou nas comissões de sindicância. Em geral, a noção de fator humano está associada a ideia de erro, falha, falta cometida pelos operadores.

    Mas essa concepção pejorativa do homem apoia-se tanto em uma confiança absoluta na ciência e na técnica quanto em certo desconhecimento das ciências humanas e das ciências do trabalho (DEJOURS, 2005, prefácio).

    De qualquer forma, no presente trabalho, consideram-se os dois termos como muito aproximados (ou sinônimos), na medida em que o escopo será o desempenho humano, influenciado pelos fatores físicos, cognitivos e organizacionais presentes no ambiente de trabalho.

    No intuito de promover um melhor entendimento, de acordo com Iida, o campo dos Fatores Humanos divide-se em três domínios especializados:

    a) Ergonomia Física – Ocupa-se das características da anatomia humana, antropometria, fisiologia e biomecânica, relacionados com a atividade física. Os tópicos relevantes incluem a postura no trabalho, manuseio de materiais, movimentos repetitivos, distúrbios músculo-esqueléticos relacionados ao trabalho, projeto de postos de trabalho, segurança e saúde do trabalhador.

    b) Ergonomia Cognitiva – Ocupa-se dos processos mentais, como a percepção, memória, raciocínio e resposta motora, relacionados com as interações entre as pessoas e outros elementos de um sistema. Os tópicos relevantes incluem carga mental, tomada de decisões, interação homem-computador, estresse e treinamento.

    c) Ergonomia Organizacional – Ocupa-se da otimização dos sistemas sociotécnicos, abrangendo as estruturas organizacionais, políticas e processos. Os tópicos relevantes incluem comunicações, projeto de trabalho, programação do trabalho em grupo, projeto participativo, trabalho cooperativo, cultura organizacional, organizações em rede, teletrabalho e gestão da qualidade. (IIDA, 2005, p. 3)

    Da análise dos três domínios evidencia-se o caráter multidisciplinar da matéria em questão na medida em que várias disciplinas, tais como, engenharia, psicologia, medicina, sociologia e antropometria estão incluídas no campo dos Fatores Humanos (ICAO, 1998).

    1.1 O CAMPO DOS FATORES HUMANOS NA AVIAÇÃO CIVIL

    As primeiras pesquisas dedicadas aos Fatores Humanos na aviação foram realizadas ainda durante a Primeira Guerra Mundial, em 1917. Tais estudos, conduzidos por Ferry, tiveram como escopo descrever o efeito da altitude sobre o corpo humano. Em 1919 o Exército Brasileiro emitiu as primeiras instruções relativas ao reconhecimento de aptidões físicas para o Serviço Aéreo Militar (TEIXEIRA, 2005).

    Cabe salientar que a preocupação inicial acerca de Fatores Humanos estava voltada à fisiologia de voo. As pesquisas relacionadas aos fatores psicossociais e de adaptação do projeto à anatomia humana iniciaram-se posteriormente.

    De acordo com Anderson (2002), durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), houve um incremento no que se refere ao desempenho das aeronaves militares, motivado pelo desenvolvimento da tecnologia aeronáutica.

    O referido aumento de desempenho pode ser visualizado no gráfico representado pela Figura 2, a seguir exposto.

    Figura 2 – O grande aumento do desempenho de aeronaves (ANDERSON, 2002).

    Másculo e Vidal (2011) asseveram que o aumento das referidas grandezas físicas, como velocidade, aceleração e altitude expôs de forma significativa a limitação humana, tanto no que tange à fisiologia quanto aos aspectos psicológicos envolvidos em tais ambientes. Ocorreram vários acidentes envolvendo aeronaves engajadas em operações militares no referido período, ocasionados muitas vezes por erros primários cometidos por pilotos experientes.

    Não se tratava somente de erro do piloto, mas também de deficiências de projetos de sistemas as quais criavam condições indutoras de erros (CHAPANIS apud HARRIS, 2011).

    Exemplo disso foram vários acidentes envolvendo aviões de bombardeio Boeing B-17, a Fortaleza Voadora. Estas aeronaves, a partir de 1942 até o final da Segunda Guerra Mundial foram utilizadas em missões de bombardeio estratégico sobre o continente europeu, mais especificamente sobre alvos industriais da Alemanha nazista.

    Alguns acidentes ocorriam logo após o pouso quando, inadvertidamente, os pilotos recolhiam os trens de aterrissagem ao invés dos flapes.

    Os relatórios de investigação de acidentes apontavam o erro do piloto como a principal causa destas ocorrências. Chapanis (1999) analisou o projeto do cockpit do Boeing B-17 e constatou que os interruptores que comandavam o recolhimento dos trens de aterrissagem e dos flapes eram idênticos e para piorar a situação, eram instalados lado a lado...

    É compreensível que após uma missão de combate, tendo sobrevivido a vários agentes estressores poderosos (a aviação de caça inimiga, o fogo das baterias antiaéreas etc.) as tripulações estivessem mais suscetíveis a cometer erros.

    Chapanis classificou o projeto inadequado de tais controles como erro do projetista e propôs modificações que tornassem tais controles mais facilmente percebíveis.

    O interruptor de comando do trem de aterrissagem foi substituído por uma alavanca com uma roda na extremidade, o que associou tal comando ao sistema de trem de pouso das aeronaves, como pode ser observado na figura 3, que mostra o referido comando em uma aeronave comercial moderna.

    Imagem de vídeo gameDescrição gerada automaticamente com confiança baixa

    Figura 3 – Alavanca do trem de aterrissagem.

    Já o interruptor do comando de acionamento dos flapes foi substituído por uma alavanca que lembra uma superfície aerodinâmica, fazendo uma associação natural com as superfícies hipersustentadoras em questão (os flapes), como pode ser observado na figura 4, de um cockpit moderno.

    Moto preta estacionadaDescrição gerada automaticamente com confiança média

    Figura 4 – Alavanca do flape.

    Além desta abordagem ergonômica, um sensor foi instalado nos trens de pouso, de modo a impedir o recolhimento inadvertido destes, quando as aeronaves estivessem no solo, com os amortecedores dos trens de aterrissagem comprimidos (CHAPANIS, 1999).

    Na mesma época em que Chapanis dedicava-se ao estudo das deficiências na interface homem-máquina em projetos aeronáuticos, Fitts e Jones (1947) propuseram a eliminação de um grande número do que se convencionou chamar de erros humanos por meio de aperfeiçoamentos nos projetos de controles e comandos instalados em aeronaves.

    Da análise dos erros mais frequentes cometidos por pilotos em aeronaves militares resultou um documento que continha sugestões de melhorias nos cockpits que iam desde a padronização dos controles de voo, de comando de potência dos motores, de recolhimento dos trens de pouso e de retração dos flapes até a adoção de alarmes visuais e sonoros que alertassem os pilotos sobre determinadas falhas críticas de sistemas (FITTS; JONES, 1947).

    Os avanços tecnológicos e de Ergonomia migraram para a indústria da aviação comercial no período pós-guerra. A introdução da tecnologia de aeronaves de transporte a reação ao final dos anos 50 trouxe uma diminuição significativa do número de acidentes aeronáuticos vinculados à aerodinâmica da aeronave. Problemas relacionados com as estruturas e motores diminuíram sensivelmente com a melhoria da tecnologia aeronáutica (HELMREICH; FOUSHEE, 2010).

    Apesar dos citados avanços, os acidentes continuaram a ocorrer. Na verdade, o desenvolvimento da tecnologia aeronáutica expôs o fator humano, com as ações perpetradas pelos tripulantes de tais aeronaves como sendo um fator contribuinte na maioria dos acidentes aeronáuticos. Observa-se, conforme o gráfico representado na Figura 5, que as deficiências inerentes ao projeto de aeronaves nos primórdios da aviação escondiam o fator humano na cadeia de eventos que levaram aos acidentes aeronáuticos.

    Figura 5 – Causas humanas versus causas materiais (WELLS, 2001).

    Conforme a tecnologia evoluiu, o fator humano emergiu como a principal causa do referido tipo de ocorrência (WELLS, 2001).

    Analisando dados provenientes das investigações de acidentes que provocaram a perda de aeronaves a jato empregadas no transporte de passageiros, no período de 1959 a 1989, constatou-se que as ações das tripulações foram preponderantes em mais de 70% das referidas ocorrências de acordo com o gráfico representado pela Figura 6 (HELMREICH; FOUSHEE, 2010).

    Figura 6 – Causas de acidentes aeronáuticos (HELMREICH; FOUSHEE, 2010).

    Conforme dados estatísticos da época, as ações das tripulações foram responsáveis pela maioria dos acidentes aeronáuticos. O Centro Nacional de Investigação e Prevenção de Acidentes, CENIPA, assume o mesmo ponto de vista no que se refere ao percentual atribuído às ações humanas contribuintes em tais ocorrências. O documento que fundamenta a investigação de acidentes e incidentes aeronáuticos em nosso país, o Manual do Comando da Aeronáutica Nº 3-6 (BRASIL, 2012, p. 60), afirma que as estatísticas mundiais sobre transporte aéreo apontam que Mais de 80% dos acidentes aeronáuticos tiveram contribuição de aspectos relacionados ao desempenho humano, disseminado pelos meios de comunicação social como erro humano.

    Dados provenientes de gravadores de voo, Flight Data Recorder (FDR) e Cockpit Voice Recorder (CVR), fornecem informações acerca de como as tripulações envolvidas em acidentes aeronáuticos agiram ou se omitiram, sendo tais informações relevantes em investigações (DISMUKES, 2010). O erro do operador terminou por dominar as estatísticas de acidentes, na medida em que os sistemas técnicos se tornaram mais confiáveis.

    Uma imagem contendo laranjaDescrição gerada automaticamente

    Figura 7 – Gravadores de dados e voz (FDR e CVR).

    De acordo com o conceito de acidente organizacional (REASON, 1997), erros são considerados mais como sintomas do que como causas, uma vez que o desempenho humano é afetado por diversos aspectos sistêmicos, entre eles a carga de trabalho, fadiga, procedimentos, treinamento e cultura.

    Devido à complexidade do tema, a expressão erro humano por si só é de pouca valia para o entendimento de ocorrências aeronáuticas, o que demanda uma análise sob a luz da psicologia para o entendimento dos atos inseguros cometidos pelo ser humano (o operador de sistemas) que podem ter como resultado o acidente aeronáutico.

    Na esteira de vários acidentes aeronáuticos causados preponderantemente pelas tripulações envolvidas nestas ocorrências, ao final dos anos 1970, restou óbvia a necessidade de entender como tais erros ocorriam e como poderiam ser mitigados.

    O número crescente de causalidades (algumas delas envolvendo aeronaves de grande porte e inúmeras fatalidades tais como o acidente ocorrido em Tenerife, em 1977, que causou a morte de 583 pessoas devido à colisão em solo de duas aeronaves Boeing 747) tornaram urgentes os esforços em se buscar uma resposta ao erro humano.

    A pergunta era: Como tripulações bem treinadas, em aeronaves modernas (e muitas vezes sem qualquer problema técnico), poderiam cometer tais erros catastróficos?

    Destarte, treinamentos visando a melhoria das aptidões em gerenciamento foram concebidos, porém, antes de descrevê-los em detalhes urge que se faça uma análise acerca do que é constituído o erro humano e como modelos de Fatores Humanos podem contextualizá-lo.

    1.2 ATOS INSEGUROS DO OPERADOR

    Atos inseguros do operador são classificados em duas categorias, sendo estas erros e violações. A consequência de um ato inseguro do operador poderá ser o acidente (REASON, 1990 apud WIEGMANN; SHAPELL, 2003), caso venha a progredir sem identificação e subsequente gerenciamento.

    1.2.1 ERROS

    Sobre o erro, o orador romano Cícero sentenciou, há mais de dois mil anos é da natureza do homem errar. De acordo com esta assertiva, ao longo do tempo há uma aceitação do erro como um elemento comportamental, inerente ao ser humano.

    O erro é inevitável, sendo sua eliminação total algo impossível de se levar a efeito.

    Na visão de Hawkins (1987), as consequências do erro em uma sociedade tecnológica são muito mais graves pois estão inseridas em sistemas de larga escala, infinitamente mais complexos do que na antiguidade.

    De acordo com Rigby, o erro humano é qualquer integrante de um conjunto de ações humanas que excedam certos limites de aceitabilidade (RIGBY, 1970 apud MILLER; SWAIN, 1987, p. 220).

    Já na visão de Dekker (2014a, prefácio), O erro humano é um sintoma de um problema mais profundo dentro de um sistema, refere-se a uma visão acerca do erro no qual a busca de uma explicação para a falha do operador não se limita ao esclarecimento de onde o elemento humano falhou, mas, sim, como em dadas circunstâncias o entendimento e as ações tomadas pelas tripulações fizeram certo sentido para estas, porém não evitaram acidentes.

    Na investigação científica de acidentes aeronáuticos, o erro é apenas um dos fatores causais, sendo que sua identificação é o ponto de partida na busca das causas e não o fim da investigação propriamente dita (REASON, 1997).

    Nominar, equivocadamente, como causa de um evento o chamado erro humano nada mais é do que realizar um julgamento em retrospectiva, um processo de julgamento social, não técnico e carente de uma análise objetiva (WOODS, et al., 1994).

    Assim, a expressão erro humano contém suposições que não elucidam os motivos por que determinados acidentes ocorreram pois pressupõem a existência de algum ato falho ou ainda um culpado pelo ocorrido.

    O ser humano trabalha sob determinada pressão exercida por administradores e estratos mais altos da organização, sendo fundamental que se entenda tal contexto (BESNARD; HOLLNAGEL, 2012).

    Desta forma, o problema de se atribuir a causa de um acidente aeronáutico ao erro humano é o de desvincular a ação humana do contexto organizacional à qual está sujeita. Ao analisar o homem no contexto organizacional surge a necessidade de compreensão do desempenho humano sob a ótica da cognição humana (HOLLNAGEL, 1998).

    Trata-se de como o ser humano responde a determinado estímulo, passando primeiramente por uma etapa na qual sua atenção é despertada, logo em seguida percebe a situação, processa a informação e fundamenta uma decisão que irá desencadear uma resposta ou ação (EYSENCK; KEANE, 2017).

    Segundo Jensen (1995 apud RIBEIRO, 2001), o processamento de informações se inicia quando os estímulos são capturados em alta velocidade do ambiente através dos órgãos dos sentidos e são processados pelo cérebro que dispõe de mecanismos denominados filtros, que devido à limitação do sistema nervoso em lidar com as informações, as reduzem a um tamanho gerenciável, conforme pode ser observado na Figura 8.

    O primeiro filtro ocorre em cada um dos órgãos dos sentidos, sendo a primeira fonte de erro, pois, ao se situar em uma área periférica reduz, perde as informações que deixam de chegar ao cérebro.

    Uma segunda fonte de erros poderá ocorrer ao nível do filtro de percepção, que opera a memória de curta duração, durante uma tentativa de recuperação de uma informação. Neste caso, o sistema perceptivo tentará preencher a lacuna com uma informação que julga estar completa.

    O canal de decisão é o local onde ocorre a terceira fonte de erros, devido à sua severa limitação ao realizar duas tarefas: a primeira consiste na escolha, dentre vários itens que despertam a atenção, de uma informação prioritária.

    A segunda tarefa desempenhada pelo canal de decisão refere-se a como a informação será tratada. Este estágio desempenha a atividade predominantemente cognitiva que envolve a combinação da informação recém processada com a memória de longo prazo, sendo a última responsável por uma vasta fonte de erros, pois esta memória armazena todo sortimento de motivações, atitudes, emoções, predisposições e distrações.

    O último estágio é o estágio de resposta, no qual há algum potencial para a ocorrência de erros, pois, quando as atividades se tornam assimiladas ou automáticas, respostas poderão ocorrer sem que os filtros trabalhem ou, ainda, sem que ocorram os processos decisórios já mencionados.

    Todavia, respostas motoras se constituem em padrões aprendidos, sendo costumeiramente precisas desde que o padrão a ser seguido seja correto.

    Figura 8 – Sistema humano de processamento da informação (RIBEIRO, 2001, adaptado de JENSEN, 1995).

    Pelo afirmado trata-se de uma abordagem cognitiva no sentido de compreender como o ser humano responde a um estímulo, após um complexo processamento de informações.

    Rasmussen (1982 apud REASON, 1997) propôs uma taxonomia que apresenta como o ser humano transita por níveis diferentes de controle cognitivo ao ser confrontado com diferentes situações.

    A Figura 9 sumariza os três níveis de desempenho cognitivo, distinguidos por variáveis psicológicas e situacionais. Na referida taxonomia, o acrônimo no idioma inglês SRK (Skill-based, Rule-based, Knowleged-based) sintetiza o comportamento baseado em habilidades, o comportamento baseado em regras e o comportamento baseado em conhecimento respectivamente e como estes se relacionam com o nível de controle exercido por um indivíduo realizando uma determinada tarefa (REASON, 1997).

    Da análise da mencionada figura se observa que, quando se opera em um modo de desempenho baseado em conhecimento, o indivíduo realiza a tarefa em um modo de controle consciente. Tal modo demanda mais atenção e um esforço mental maior para resolver um determinado problema. Há uma limitada capacidade de retenção de informações, o que exige a revisão dos efeitos causados por diferentes ações antes de executar ações suplementares, demandando mais tempo para responder a determinadas situações. Trata-se de um tipo de controle flexível que dispõe de uma grande capacidade de processamento de informações, porém, é cansativo, limitado e suscetível a erros (REASON, 2008).

    No extremo oposto do referido gráfico, observa-se o modo de desempenho baseado em habilidade. Neste modo ocorre a execução de uma tarefa de forma automática, fundamentada na prática. Ao invés de desenvolver as atividades de uma forma desgastante há um desenvolvimento de ações em uma sequência pré-estabelecida. Esta é a essência de um hábito. A face negativa do referido modo repousa no fato de que comportamentos automáticos são mais suscetíveis a erros (REASON, 2008).

    De forma intermediária aos dois modos de desempenho já analisados, há o modo de desempenho baseado em regras, que emerge na necessidade de quebra de uma sequência orientada por ações automatizadas, que são aquelas desenvolvidas em modos de desempenho baseados em habilidades. Ocorre também quando há a necessidade de mudança de comportamento para promover uma acomodação circunstancial, se processando na forma de soluções pré-concebidas, algo que se adquire por meio de treinamento, experiência ou pela elaboração de procedimentos escritos. Os regulamentos buscam soluções para determinados problemas e são o resultado da experiência e do treinamento. Mesmo na ineficácia das regras, o ser humano reluta em mover-se de um modo de desempenho baseado em regulamentos para um modo de desempenho baseado em conhecimento, e assim permanecendo, eventualmente a execução de uma tarefa tornar-se-á mais suscetível a erros (REASON, 2008).

    DiagramaDescrição gerada automaticamente

    Figura 9 – Os três níveis de desempenho (REASON, 1997).

    Reason (1997) assevera que os três modos de desempenho aqui analisados podem coexistir simultaneamente e a compreensão dos referidos modos auxilia a classificação dos atos inseguros.

    Há três tipos primários de erro os quais se relacionam com a origem presumida de um erro dentro dos estágios que abarcam a concepção e em seguida a execução de uma ação.

    Os referidos estágios consubstanciam-se nos estágios de Planejamento (que têm como escopo os processos relacionados à identificação de um objetivo e decisão quanto aos meios para atingi-lo), Armazenagem (no qual os planos não são usualmente levados a efeito imediatamente, havendo, portanto, um período de tempo em que algumas variáveis irão intervir no processo entre a formulação de ações pretendidas e a execução das mesmas) e Execução (que abrange os processos na implementação real do plano armazenado).

    No que se refere aos tipos primários de erros (NORMAN, 1981, apud REASON, 1990) estes dividem-se em:

    a) Deslizes (slips) ou erros por comissão: são erros cuja intenção é correta, porém, ocorrem na fase de execução, sendo por este motivo facilmente observáveis. Podem ser citados deslizes de fala, de escrita ou de ação. São erros que envolvem a falta de atenção. De acordo com Harris (2011), deslizes apresentam-se divididos em quatro subcategorias: erros de sequência (as ações são corretas, porém em uma sequência incorreta), erros de seleção (a tentativa de realizar uma tarefa incorreta, como um dos passos em uma sequência), erros qualitativos (ao realizar todos os passos requeridos, um ou mais destes passos não atendem a um determinado padrão por estarem incompletos) e erros de tempo de execução (a tarefa é executada fora de um tempo cronológico para realizar todas as ações exigidas).

    b) Lapsos (lapses) ou esquecimentos, ou ainda, erros por omissão: são erros cuja intenção também é correta, porém, envolvem falhas de memória, dificilmente observáveis, pois são percebidos somente por quem os está experimentando (REASON, 1990). Tais falhas se subdividem em falhas de codificação que abrangem processos envolvidos na percepção, motivadas pela insuficiência de atenção a quesitos dos quais é necessário que sejam relembrados e neste caso serão perdidos na memória de trabalho que é uma memória de curta duração. Falhas de armazenagem (a perda ou diminuição da informação na memória de longa duração e as falhas de recuperação) que ocorrem quando o indivíduo está impossibilitado de resgatar ou extrair determinada informação do sistema da memória em tempo hábil para executar uma determinada tarefa (EYSENCK; KEANE, 2017).

    c) Equívocos (mistakes) ou enganos: são erros de julgamento ou de seleção de um objetivo ou ainda na escolha dos meios para atingir tal objetivo na fase de planejamento. Assim sendo, a intenção é incorreta. Por sua natureza, são muito mais complexos, pois são difíceis de serem detectadas e normalmente só se manifestam por um resultado posterior não almejado. Subdividem-se em dois tipos secundários de erros, quais sejam, falhas de competência (failures of expertise) nas quais um plano ou uma solução de um problema são aplicados de forma inapropriada ou faltas de competência (lack of expertise), que se consubstanciam na lacuna de conhecimentos mínimos necessários para a elaboração de um planejamento. Segundo Reason (1990, p. 12-13), Estes dois tipos de falhas correspondem proximamente aos erros que têm relação com os modos de desempenho baseados em regras e em conhecimentos, respectivamente, como descritos por Rasmussen.

    A Tabela 1 relaciona os três tipos de erros de acordo com o estágio cognitivo nos quais ocorrem.

    Tabela 1 – Tipos primários de erro e estágios cognitivos em que ocorrem (REASON, 1990).

    Reason (1990) propõe a taxonomia GEMS, cujo acrônimo no idioma inglês significa Generic Error-modelling System (Sistema Genérico de Modelagem de Erro). Trata-se de uma abordagem no intuito de integrar em uma estrutura comum os três tipos básicos de erros e em quais dos três níveis de desempenho (abordados na taxonomia SRK de Rasmussen) estes ocorrem, de acordo com a Tabela 2.

    Tabela 2 – Relação entre os três tipos básicos de erros e os níveis de desempenho do SRK (REASON, 1990).

    Além do entendimento acerca dos três tipos básicos de erros e suas relações com os níveis de desempenho, certas definições operacionais de alguns conceitos relevantes, no que se refere ao cometimento de erros, algumas abordagens psicossociológicas que estão elencadas de acordo com a visão de Reason (1990), destacadas por Simmon (1998), em um estudo publicado pela FSF – Flight Safety Foundation, são apresentadas na sequência:

    a) Comportamento automático: uma ação de rota realizada sem reconhecimento ou intenção. Embora o comportamento automático permita que uma pessoa realize uma tarefa enquanto pense em outra coisa, o comportamento automático pode induzir a não atenção e erro. Quando uma habilidade é altamente aprendida – provavelmente porque tem sido praticada por anos – a habilidade se torna automática e exige uma mínima consciência situacional e uma aplicação mínima de esforço mental.

    b) Heurística da disponibilidade: um mecanismo de resolução de problemas pelo qual um indivíduo é influenciado e baseia suas decisões não apenas no que ele experimentou no passado, mas também nas situações que mais prontamente lhe vêm à mente.

    c) Mudança de conceito: uma situação na qual um ou mais parâmetros de um problema mudam, exigindo que uma pessoa encontre uma nova solução. Esta condição pode causar confusão e atrasar uma tomada de decisão apropriada se a pessoa não estiver consciente acerca da mudança de parâmetro.

    d) Viés de confirmação: a expectativa em perceber certas características, evidências ou pistas ambientais e a tendência em procurá-los mais ativamente do que outras características. O viés de confirmação pode fazer com que uma pessoa procure seletivamente por evidências para confirmar uma crença subjacente, desconsidere evidências contraditórias e pare de procurar uma vez que a evidência de confirmação seja encontrada.

    e) Modelo Mental: um entendimento individual dos elementos de um sistema, operação ou situação e as regras de interação entre estes.

    f) Metacognitivo: um tipo elevado de pensamento; é pensar sobre como se pensa. Metacognição refere-se ao monitoramento e controle dos próprios processos de pensamento e padrões de hábitos.

    g) Viés de recência: a tendência de uma pessoa encontrar uma nova situação ou evento e ser influenciada e basear decisões em informações similares provenientes de outras situações ou em eventos recentemente ocorridos.

    h) Padrão de pensamento: expectativas que predispõem uma pessoa a um certo curso de ação e/ou pensamento, independentemente das evidências percebidas. Atitude e mentalidade são termos relacionados que frequentemente são utilizados como sinônimos (SIMMON, 1998, p. 3. Tradução nossa).

    Salienta-se que há uma estreita relação entre memória e cognição, conceitos relevantes no que se refere ao processo de aprendizagem e, portanto, podem impactar em processos relacionados à tomada de decisão, eventualmente induzindo uma tripulação ao cometimento de erros.

    Na visão de Sousa e Salgado (2015, p. 144), o aprendizado e a aquisição de memória podem ser vistos como sinônimos, pois só se pode gravar aquilo que foi aprendido. Da mesma forma, só podemos gravar e posteriormente lembrar aquilo que aprendemos.

    Destarte, é oportuno tecer algumas considerações acerca dos tipos de memórias, que no presente trabalho têm relevância no que se refere ao tempo que estarão disponíveis, se deixarão algum resquício ou não e assim, serão classificadas em:

    a) Memórias de curta duração: são extremamente voláteis por permanecerem no cérebro por um período muito curto de tempo, aproximadamente um minuto, frequentemente sendo esquecidas ou dando lugar, em alguns casos, às memórias de média duração. As referidas memórias armazenam as informações de forma passiva. Trata-se de uma memória que retém um número máximo de nove itens dissociados, sendo normalmente capaz de reter sete itens (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002). Como exemplo, pode ser citada a memorização rápida de um número de telefone no intuito de realizar uma ligação sem que se decore tal informação para utilização futura.

    b) Memória de trabalho: proporciona a realização de atos da vida cotidiana, facilitando certas atividades tais como o aprendizado, a compreensão e o raciocínio, por meio do armazenamento de informações em um período curto de tempo, promovendo o gerenciamento do que será ou não descartado, não sendo, portanto, uma memória ativa (IZQUIERDO, 2011; BADDELEY, HITCH, 1974 apud SOUSA, SALGADO, 2015). A memória de trabalho utiliza informações provenientes tanto da memória de longo prazo quanto da de curta duração na tarefa de dar significado para certas palavras na integração de ações cognitivas e físicas. Um exemplo disso é a utilização de checklists e outros procedimentos operacionais contidos em publicações para determinar certas configurações da aeronave em função de seu desempenho (qual flape utilizar para decolar em determinada pista com um certo peso de decolagem). Esta memória, que também tem certa limitação de retenção de informações, pode ser aprimorada pela utilização de mnemônicos (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002). Como exemplo, cita-se o CIGEMAC (acrônimo utilizado em tempos passados para a memorização de determinados itens que deveriam ser checados antes da decolagem em aeronaves de instrução primária, sendo estes: Comandos, Instrumentos, Gasolina, Estabilizador, Magnetos, Ar quente, Cabine, para alunos-pilotos) ou outros mais avançados como o FORDEC (uma metodologia prescritiva de tomada de decisão em ambiente operacional de voo de linha aérea), que será oportunamente descrito.

    c) Memórias de longo prazo: são as memórias que são armazenadas por períodos longos, variando de horas até uma vida inteira. Modificações funcionais e estruturais nos tecidos nervosos permitem a formação destes tipos de memórias, que, embora tenham certas limitações, ainda são bem superiores às memórias de curto prazo no que se refere a capacidade de armazenamento de informações. São memórias que necessitam de uso contínuo para que não sejam esquecidas e, portanto, o desuso ou a aquisição de novos aprendizados poderá levar ao apagamento de uma memória de longo prazo (BADDELEY, ANDERSON, EYSENCK, 2011, apud SOUSA, SALGADO, 2015). A memória de longo prazo se divide em memória semântica (armazenada tanto pela repetição quanto pela lembrança constante) e memória episódica (originada por uma vivência). Uma forma de melhorar a memória de longo prazo é por meio da realização de exercícios. Daí a importância das atividades relacionadas ao aprendizado, que requer um nível de treinamento maior do que seria requerido para atingir um padrão aceitável de desempenho em uma certa ocasião (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002).

    d) Memória motora: também referida como controle pré-cognitivo, relaciona-se com a habilidade motora, a destreza em manusear os comandos da aeronave de forma coordenada, suave e natural. Tal memória pode ser aperfeiçoada por meio de treinamento, habilitando o piloto a adquirir familiaridade com os comandos da aeronave e suas características/qualidades de controle e voo. O refinamento da pilotagem, oriundo do desenvolvimento das habilidades de pilotagem, faz com que ações motoras precisas sejam desempenhadas quase que inconscientemente (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002).

    Ainda no que se refere ao sistema humano de processamento de informações, cabe tecer alguns comentários acerca de alguns conceitos que guardam estreita relação com o assunto erro humano, que produzem efeitos sobre o processo decisório, de acordo com Campbell e Bagshaw (2002), na sequência relacionados:

    a) Atenção: proveniente de estímulos, rotineiramente relacionados a determinadas fontes de informação, que no ambiente operacional de voo poderão ser fisicamente representadas por alarmes, ou psicologicamente por pensamentos elaborados no sentido de processar certas informações e chegar a uma conclusão sobre um aspecto particular, por exemplo, deduzir que se uma determinada situação não for gerenciada adequadamente , poderá se consubstanciar em uma ocorrência aeronáutica (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002). A atenção ainda pode ser dividida em dois subtipos a saber:

    • Atenção Seletiva: também denominada atenção focalizada, trata-se de uma atenção dirigida a uma fonte de informação, descartando voluntariamente outros estímulos, considerados menos importantes no referido contexto;

    • Atenção Dividida: também conhecida como atenção multitarefa, ocorre quando duas ou mais tarefas são realizadas simultaneamente (EYSENCK; KEANE, 2017).

    É importante salientar que no ambiente operacional de voo (cockpit), dada sua complexidade e especialmente em situações de alta carga de trabalho, é extremamente difícil manter a atenção concentrada na realização de determinadas tarefas quando houver uma proliferação de estímulos tais como conversações com outros tripulantes ou qualquer outro tipo de distrações. A capacidade de manter o foco na operação, em lidar com vários estímulos ou informações, varia de acordo com a individualidade, especialmente em situações nas quais os indivíduos são submetidos a alta carga de trabalho. Daí, uma sobrecarga poderá ocorrer, resultante de um excesso de informações (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002).

    • Vigilância: trata-se do estado de alerta em relação a um estímulo externo, consubstanciado pelo grau de ativação do sistema nervoso central. Produz efeitos sobre a atenção, variando em função do aumento ou da diminuição da carga de trabalho. Um nível baixo de vigilância (hipovigilância) pode ser o resultado de uma alta carga de trabalho, um processo de estresse ou fadiga. Os sinais de redução do estado de vigilância podem ser percebidos pela concentração em tarefas simples em detrimento de outras demandas relacionadas a estímulos sensoriais, uma comunicação de baixa qualidade no cockpit, ou ainda, pela demonstração de irritabilidade (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002).

    b) Percepção: trata-se de uma derivação do sistema sensorial (olhos, sistema vestibular e terminações nervosas da pele, músculos e juntas) que capta estímulos do ambiente e envia sinais para que o cérebro formule um modelo mental que proporcione uma orientação espacial ao indivíduo. Com base em conhecimento e experiências prévias, agregadas à percepção, uma resposta adequada aos estímulos poderá ser dada.

    Um significado de percepção é dado por Sekuler e Blake (2002, apud EYSENCK; KEANE, 2017, p. 35), que assim a definem como a aquisição e o processamento da informação sensorial para ver, ouvir, provar ou sentir os objetos do mundo; também guia as ações de um organismo no que diz respeito a esses objetos. A percepção visual é extremamente complexa devido à variedade de processos envolvidos na transformação e na interpretação da informação sensorial, que em última análise é responsável pela formação de modelos mentais (EYSENCK; KEANE, 2017). Tais modelos são fundamentados em experiências passadas, o que faz com que o processamento das informações seja realizado utilizando hipóteses já existentes, que serão utilizadas no processamento de dados novos. Este mecanismo termina por acessar informações previamente armazenadas na memória, gerando uma expectativa que muitas vezes não é condizente com a realidade, gerando uma falha cognitiva que poderá causar um incidente ou acidente. Tal falha cognitiva trata-se de uma ilusão de percepção. A Figura 10 representa a ilusão de Müller-Lyer, que tem sido objeto de centenas de trabalhos acadêmicos desde sua formulação, no século 19 (PURVES; HOWE, 2004). Um olhar rápido faz com que se deduza que a linha horizontal inferior seja maior do que a superior. Porém, trata-se de uma ilusão pois se forem medidas com uma régua apresentarão o mesmo comprimento (KAHNEMAN, 2012). Este tipo de ilusão é particularmente perigosa durante a fase de aproximação para pouso.

    Forma, RetânguloDescrição gerada automaticamente

    Figura 10 – A ilusão de Müller-Lyer (adaptado de KAHNEMAN, 2012).

    A subjetividade perceptiva refere-se à ocorrência de diferentes percepções sobre um mesmo estímulo, por indivíduos que tenham experiências, conhecimentos e treinamento diferentes. Este é um dos motivos que fazem com que a padronização de procedimentos e de treinamento sejam primordiais para a segurança operacional. Uma base fundamentada em conhecimento e experiência, assegurados por meio de treinamento, pode minimizar os efeitos da subjetividade ao estabelecer um filtro eficaz de informações. Esta espécie de filtro tem o poder de garantir o estabelecimento de um conceito correto de realidade, por meio de experiências pretéritas e de aprendizado (CAMPBELL; BAGSHAW, 2002).

    As definições até aqui apresentadas, elementares sob o ponto de vista dos Fatores Humanos e intimamente relacionadas à gênese dos três tipos primários de erros, serão relevantes no estudo dos conceitos fundamentais do treinamento em habilidades de CRM, (que serão tratados na presente obra, em um momento oportuno), na medida em que produzem desdobramentos relevantes em vários aspectos relacionados ao gerenciamento de ambientes complexos, no caso em tela, o ambiente operacional de voo.

    1.2.2 VIOLAÇÕES

    Enquanto os erros são ocasionados por algum tipo de problema no processamento de informações, nas violações há uma deliberada inobservância do regramento organizacional. Destaca-se que há um caráter motivacional, de atitude, grupo e fatores culturais (REASON, 1997).

    Assim como nos erros, as violações também são classificadas em consonância com os níveis de desempenho em que ocorrem e, de acordo com Reason (2008), os atos inseguros em análise dividem-se em três tipos básicos:

    a) Violações Rotineiras: são violações que se estabelecem no nível de desempenho baseado em habilidades e se traduzem em encurtamento de procedimentos, no intuito de poupar tempo ou evitar a execução de tarefas que aparentemente são desnecessariamente trabalhosas. Ocorrem tipicamente em ambientes não punitivos e nos quais as regras não são costumeiramente cumpridas.

    b) Violações Situacionais: são violações que se estabelecem no nível de desempenho baseado em regras e são consequências de situações de trabalho dissonantes com os procedimentos. Assim como os erros, são ações intencionais levadas a efeito na crença de que irão atingir os fins desejados. Há uma contradição no sentido de que o indivíduo que é encorajado por seus superiores hierárquicos a cumprir regras é concomitantemente pressionado para que cumpra determinados prazos e metas, o que poderá acentuar tais violações.

    c) Violações Excepcionais: são violações que se estabelecem no nível de desempenho baseado em conhecimento. Ocorrem em situações atípicas, especialmente em emergências, quando provavelmente não haja um treinamento específico ou orientações específicas quanto ao procedimento a ser adotado. Salienta-se que os responsáveis por treinamentos ou por redigir regras estão limitados a situações que envolvam uma certa previsibilidade e que dificilmente irão criar um novo procedimento sem que haja um fato anterior que o justifique.

    A Figura 11, retirada de uma publicação (de um importante fabricante de aeronaves) dedicada à segurança operacional ilustra de forma sintética os citados níveis de desempenho e a incidência de erros e violações.

    Figura 11 – Níveis de desempenho e incidência de erros e violações (AIRBUS, 2005).

    Existe um elemento volitivo em ambos os atos inseguros no sentido de atingir determinado resultado, entretanto, o que diferencia erros de violações é que o erro por si só não se constitui em um ato deliberado.

    Pelo exposto, no que se refere a atos inseguros, erros são atos não intencionais.

    Nos deslizes, a ação é incorreta e nos lapsos, um esquecimento comprometerá a execução da tarefa. Em ambos, o plano está correto, porém, as ações subsequentes não são executadas conforme o planejado.

    Equívocos diferem de deslizes e lapsos pelo fato de que o plano não é adequado para que se atinja determinada meta. Neste caso, o plano poderá ser deficiente, errado, perigoso ou ineficaz.

    Referente às violações, estas sempre serão intencionais, onde sempre haverá um descumprimento deliberado de determinada norma, regramento ou procedimento, visando a uma determinada meta.

    1.2.3 ERROS E VIOLAÇÕES SÃO SEMPRE FACILMENTE DISTINGUÍVEIS?

    Uma distinção clara entre erros e violações no ambiente operacional de voo nem sempre é tão facilmente observável. Na visão de Dekker (2005), ações que aparentemente consistem em violações, quando analisadas de um ponto de vista externo, não raras vezes, são atos que fazem algum sentido no ambiente interno da organização em função das demandas existentes.

    Tais demandas em um ambiente organizacional complexo são propícias ao surgimento de violações rotineiras e situacionais.

    Outra possibilidade de ocorrência de atos inseguros surge na esteira de algum acidente ou incidente, quando são introduzidas novas regras que têm como objetivo melhorar os índices de segurança operacional. A introdução de uma nova regra ou procedimento não traz em seu bojo a garantia de que acidentes não mais ocorrerão e nem tampouco a incompatibilidade entre um procedimento e a prática será por si só a única causa de um sinistro (DEKKER, 2005).

    De acordo com Reason (2008), é um engano julgar que a maioria das violações sejam propositalmente cometidas na medida em que a não aderência aos procedimentos por fatores motivacionais explicam apenas uma parte do problema.

    Segundo o mesmo autor, a adoção de um mau procedimento pode fazer emergir a ocorrência de violações na medida em que não há uma aderência a procedimentos mal estruturados, desatualizados ou que sejam simplesmente inexequíveis.

    Da mesma forma que procedimentos mal construídos podem se tornar indutores de violações, procedimentos inadequados, quando seguidos, podem expor uma tripulação a situações potencialmente perigosas, especialmente em situações não usuais.

    Nesse sentido, Dekker (2005) assevera que em certas circunstâncias, quando determinado procedimento (especialmente em situações de emergência) é inadequado para fazer frente a situações inusitadas, a adaptação de procedimentos é cabível, o que demanda uma atividade cognitiva substancial. Uma inflexibilidade do operador ao adaptar procedimentos poderá torná-lo responsável legalmente caso ocorra um acidente.

    De forma análoga, a adaptação de um procedimento, caso a condição assim o exija, sem que haja um conhecimento completo das circunstâncias, também poderá tornar o operador responsável em caso de sinistro causado por esta atitude.

    Pelo exposto, a linha que separa um erro de uma violação excepcional é muito tênue e o ser humano pode cometer um ato inseguro ao tentar adaptar um procedimento no intuito de resolver determinada situação caso o procedimento escrito seja inadequado ou em determinadas situações, inexequível.

    Tal ato inseguro poderá, em conjunto com outros fatores, levar o sistema a um estado indesejável, com o consequente comprometimento da segurança operacional.

    1.3 MODELOS DE FATORES HUMANOS/ACIDENTES, SISTEMAS DE TAXONOMIAS DAS CAUSAS DE EVENTOS, MÉTODOS DE ANÁLISE DE EVENTOS E PROGRAMAS

    Segundo Moreira (2001), modelos conceituais são construídos para buscar diferentes enfoques que auxiliem na análise e entendimento de informações, objetivando a identificação de elementos contribuintes em acidentes aeronáuticos.

    Já na visão de Levenson (2001), modelos conceituais procuram: compreender e investigar acidentes já ocorridos (fatos pretéritos), prevenir ocorrências futuras (acidentes e incidentes) e prover uma análise do risco inerente a uma determinada atividade ou, ainda, a operação de um sistema (LEVENSON, 2001 apud PRIORI; SAURIN, 2019).

    Um dos primeiros modelos conceituais foi a Teoria dos Dominós de Heinrich, em 1931.

    O referido modelo buscava, de forma linear, demonstrar ações que nem sempre estavam relacionadas e que desencadeariam eventos causadores de um acidente.

    Era simplesmente uma sequência de causa e efeitos. Trazia em seu bojo uma noção de falhas/condições latentes e erros ativos que seriam absorvidos e expandidos em outros modelos posteriores. Ao se retirar uma peça do dominó, o acidente seria evitado pois a queda da peça anterior à que foi retirada não derrubaria a subsequente.

    Modelos representados por correntes, nos quais a quebra de um elo representaria um ponto de ruptura onde se evitaria um acidente, são desdobramentos da teoria de Heinrich. Estes modelos, muito simples, lineares, não conseguem demonstrar a complexidade dos sistemas sociotécnicos atuais.

    O maior desafio imposto a um modelo que se proponha a analisar Fatores Humanos é ir além da ideia básica de erro humano e evoluir para um entendimento robusto acerca de desempenho humano, além de tentar explicar a complexidade que se tornou uma característica de grandes sistemas industriais nos quais, desafortunadamente, eventos catastróficos pareçam normais (PERROW, 1999).

    No que se refere às taxonomias dos erros de pilotos, na visão de Stolzer et al (2008, p. 170. Tradução nossa) estas têm, como principal objetivo apoiar a identificação de classificações significativas em um conjunto de informações.

    Houve uma evolução no que se refere a modelos de Fatores Humanos/taxonomias, que acompanhou o desenvolvimento da engenharia e das ciências sociais e comportamentais.

    Esta evolução é observável na medida em que, além de tentar identificar certos elementos presentes em ocorrências, os modelos mais recentes passaram a propor defesas e monitorar o desempenho dos sistemas sociotécnicos.

    Acerca de sistemas sociotécnicos, urge que se façam algumas distinções.

    Um sistema é dito sociotécnico quando for composto por dois subsistemas a saber:

    • Subsistema técnico: composto por máquinas,

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