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A internacionalidade da arbitragem à luz do Direito brasileiro
A internacionalidade da arbitragem à luz do Direito brasileiro
A internacionalidade da arbitragem à luz do Direito brasileiro
E-book436 páginas5 horas

A internacionalidade da arbitragem à luz do Direito brasileiro

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Sobre este e-book

A arbitragem hoje é, indiscutivelmente, o método de resolução de disputas preferido na arena global, em especial no caso de litígios de natureza comercial. No Brasil, esse cenário não é diferente: no ano em que a Lei Brasileira de Arbitragem completa 25 anos, os avanços da arbitragem no Brasil são inúmeros e incontestáveis, e a jurisdição se destaca como uma das mais proeminentes na América Latina quando observado o desenvolvimento da arbitragem na região. No entanto, esses avanços abrangem tão somente a arbitragem doméstica, ou também se verificam quando analisada a arbitragem internacional? Esta obra convida o leitor a embarcar em uma jornada pelo desenvolvimento da arbitragem no Brasil e que busca, em última análise, identificar a existência e os contornos da arbitragem internacional no Brasil, suas particularidades e consequências práticas envolvendo a necessária distinção quando comparada à arbitragem doméstica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de nov. de 2021
ISBN9786556273365
A internacionalidade da arbitragem à luz do Direito brasileiro

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    A internacionalidade da arbitragem à luz do Direito brasileiro - Thiago Del Pozzo Zanelato

    1.

    Arbitragem: Conceitos e Noções Preliminares

    Arbitragem, de forma geral, pode ser conceituada como um método alternativo de solução de controvérsias por meio do qual as partes convencionam afastar a jurisdição estatal para julgar determinada demanda, nomeando para tanto um ou mais árbitros, que proferirão decisão final e vinculante às partes, a qual, via de regra, não comporta recurso¹.

    Para Gary B. Born, os seguintes elementos são os principais identificadores da arbitragem: (i) método consensual de solução de controvérsias; (ii) julgador(es) escolhido(s) pelas ou para as partes, desvinculado(s) da tutela do Estado; (iii) decisão final e vinculante às partes; e (iv) sistema adversarial adjudicatório, que permite às partes apresentarem suas respectivas posições acerca da controvérsia.²

    Lew, Mistelis e Kröll apresentam elementos similares ao caracterizarem o instituto: (i) alternativa ao Poder Judiciário (cortes estatais); (ii) mecanismo privado de resolução de controvérsias; (iii) eleição e controle feitos pelas partes; e (iv) decisão final e vinculante sobre os respectivos direitos e obrigações das partes.³

    No âmbito da doutrina brasileira, Selma Lemes define arbitragem como método extrajudiciário de solução de conflitos em que as partes, de comum acordo, submetem a questão litigiosa a uma terceira pessoa, ou várias pessoas, que constituirão um tribunal arbitral.⁴ Destaca-se, ainda, a definição apresentada por Leonardo de Faria Beraldo, que também traz em seu bojo diversos dos elementos citados pela doutrina internacional:

    Pode-se conceituar a arbitragem como sendo um processo no qual as partes, por meio do pacto privado, delegam a um árbitro, que nem mesmo precisa ser bacharel em Direito, bastando apenas que seja pessoa capaz, o poder de decidir a lide, dentro dos limites estabelecidos previamente na convenção, desde que verse sobre direitos disponíveis, sem a intervenção do Poder Judiciário, produzindo a sentença arbitral, os mesmos efeitos da sentença judicial.

    Sumarizando as posições acima, conclui-se que a arbitragem é um método alternativo de solução de controvérsias. Isso porque (i) é opção às cortes estatais para resolução, com caráter de definitividade, das disputas existentes entre determinadas partes, acerca de determinada(s) questão(ões); (ii) possui natureza privada, pois atribui-se a terceiros independentes (os árbitros), via de regra escolhidos pelas partes, o poder de decidir a disputa existente entre elas; e, (iii) ainda que apartada da jurisdição estatal, a decisão decorrente da arbitragem possui os mesmos efeitos de uma sentença judicial, caracterizando-se também pelo caráter final (uma vez que, de forma geral, a arbitragem não comporta recurso) e vinculante às partes.

    Cumpre decompor cada um desses elementos de forma a apresentar uma noção mais precisa da maneira com que cada um deles contribui para o conceito de arbitragem proposto.

    O caráter alternativo da arbitragem pressupõe a ideia de que, por muito tempo, o Estado foi o detentor da atividade jurisdicional e de administração da justiça. Tal pensamento está intimamente ligado à própria história de como a justiça foi e é enxergada pela sociedade, que, em linhas gerais, pode ser traçada como a evolução que compreende a justiça privada e feita pelas próprias mãos (autotutela), passando pelas ordálias e juízos de Deus, culminando com a consolidação do Estado de Direito e a internalização, nos Estados, da função de administrar a justiça.⁶ A arbitragem, pela sua própria natureza, apresenta-se às partes como uma alternativa ao sistema estatal de solução de controvérsias. Por outro lado, não se ignora que, especificamente com relação à arbitragem internacional, voltada a resolver os interesses do comércio internacional, esta não seria opção, mas a verdadeira solução primária para disputas originadas nesse âmbito.⁷

    A arbitragem busca solucionar controvérsias com aspecto adjudicatório, com definitividade. É método adversarial que pressupõe seja assegurada às partes envolvidas a garantia de apresentarem suas pretensões e defesas de forma igualitária e justa, em respeito ao princípio do devido processo legal e a todos os princípios a ele correlatos (contraditório, ampla defesa, direito de ação, acesso à Justiça, direito de petição, igualdade entre as partes, paridade de armas etc.).

    A natureza privada da arbitragem está intimamente ligada ao seu aspecto contratual. Conforme será visto no item 1.2 quando abordada a natureza jurídica da arbitragem, independentemente da teoria adotada, fato é que a arbitragem possui elementos contratuais a relacionar as partes e os poderes conferidos aos árbitros – terceiros independentes – para decidir a controvérsia. Essa característica é o que muitas vezes leva a arbitragem a ser denominada justiça privada.

    Também relacionados às teorias que explicam a natureza da arbitragem estão os elementos jurisdicionais que caracterizam o instituto. Em que pese apartada da jurisdição estatal, a arbitragem pressupõe-se a resolver controvérsias com grau de definitividade e em busca da pacificação social (resolução do litígio),⁹ sendo a sentença arbitral equiparada à sentença judicial para todos os fins.

    1.1. Origem e evolução

    É difícil estabelecer, com certo grau de precisão, como surgiu a arbitragem tal como hoje conhecida. Em que pese na atualidade a arbitragem seja comumente utilizada no setor privado, em especial no âmbito do comércio internacional e nos sistemas convencionais envolvendo investimentos estrangeiros, fato é que nem sempre foi assim, e o uso da arbitragem já foi muito mais amplo, antecedendo a existência do próprio juiz estatal.

    A história da arbitragem, em verdade, está diretamente relacionada com a evolução do convívio humano em sociedade e a formação dos primeiros Estados nacionais. Sobre o tema, Pedro A. Batista Martins destaca que, uma vez superada a fase primitiva da autotutela (justiça privada, feita pelas próprias mãos e com o império da força), a figura dos anciãos das primeiras tribos e agrupamentos humanos organizados trouxe consigo um primeiro tipo de representação da arbitragem:

    Indivíduo sábio, com vasta experiência, era ele indicado para atuar, como terceiro imparcial, na solução da lide, cabendo às partes acatarem a decisão bona fide.

    Na ausência de uma legislação positiva, cabia ao ancião-árbitro aplicar à controvérsia, não regras de direito expresso, mas, sim, o costume e os princípios da moral e da ética que predominavam à época.

    Daí a afirmativa de a arbitragem ser instituto que precede o legislador e o juiz estatal, pois, sem dúvida, não estava o Estado, nos seus primórdios, devidamente aparelhado para administrar a justiça.¹⁰

    É interessante notar que, em que pese hoje a arbitragem seja precipuamente caracterizada como método de solução de controvérsias alternativo ao Poder Judiciário (o que pressupõe a ideia do Estado enquanto administrador da justiça), sua origem precede a própria organização do Estado e das figuras que classicamente são entendidas como administradores da justiça (primordialmente, o juiz e, em certa escala e de forma secundária, o legislador)¹¹. Existem autores que contestam essa concepção¹², mas parece ter razão Martim Della Valle ao afirmar que o fato de se encontrarem os tribunais estatais em estágios muito primitivos da evolução humana não altera tal conclusão¹³ sendo que a coexistência de jurisdições em tal período não exclui a possibilidade de que a arbitragem seja, de fato, anterior à própria jurisdição estatal.

    Martin Domke também dá conta da existência de escritos cuneiformes de Ur mencionando o uso da arbitragem que datam de 2.500 a.C. Ao mesmo tempo, também aponta o Código de Hamurabi como outra fonte histórica que cita a arbitragem na antiguidade e sua ampla utilização no Egito (apesar da pouca documentação histórica, indicativo de que seu registro era realizado fora do sistema oficial de resolução de disputas)¹⁴.

    A situação torna-se ainda mais interessante quando verificado que a organização das primeiras formas de Estado não extinguiu a existência ou buscou substituir a arbitragem enquanto mecanismo para solução de controvérsias. Reforçando sua natureza alternativa enquanto método de resolução de disputas, os sistemas de justiça administrados pelos Estados passaram a conviver com a arbitragem.

    Na Grécia antiga, o uso da arbitragem era comum para resolver disputas, tanto entre cidadãos como entre as próprias cidades-estado. Luiz Olavo Baptista explica que na organização das cidades gregas, não havia justiça estatal estruturada na forma como hoje verificada, sendo que tal realidade abrangia a existência da arbitragem para resolver disputas de natureza privada:

    A ordem jurídica, por isso, não atribuía a arbitragem o papel moderno de modo voluntário de resolução de conflitos, muito menos a possibilidade de recurso último aos juízes para fazer valer o teor da decisão arbitral. Conforme a matéria, era o povo que decidia, reunido na ágora. A alternativa era a arbitragem, limitada a questões de direito privado.¹⁵

    O mesmo pode ser dito com relação à Roma antiga, cabendo especial destaque à expansão do Império Romano – momento em que a arbitragem ganhou especial relevância, sendo amplamente difundida.

    Os romanos criaram seu próprio sistema de resolução extrajudicial de conflitos através do estabelecimento do iudicium privado que pressupunha uma lista de cidadãos idôneos (os judex) que seriam responsáveis por resolver questões decorrentes de negócios jurídicos entre nacionais romanos – vê-se, aqui, que o poder e competência dos judex decorria de determinação estatal, e não da vontade das partes em submeter-lhes determinada disputa.¹⁶ De forma similar ao verificado na atualidade, não possuindo os judex poderes executórios, suas decisões eram finais e vinculavam as partes, tendo seu cumprimento garantido pelo Estado, que as executava caso não acatadas pela parte vencida.¹⁷

    Esse sistema coexistia, em Roma, com o sistema estatal de justiça, que pressupunha o poder revestido de império dos magistrados (cônsules, pretores, precônsules, edis etc.). Pedro A. Batista Martins menciona ainda a figura do arbiter, que também tinha seu poder outorgado pelo Estado (e não pelas partes), mas possuía uma parcela maior de ingredientes para aplicar o direito e julgar a demanda¹⁸.

    Com a invasão do Império Romano pelos bárbaros, a arbitragem experimenta novo crescimento. Isso ocorre pois os habitantes dos locais dominados optavam por dirimir seus litígios através de arbitragem como forma de escolher as regras aplicáveis à resolução do litígio, evitando a aplicação do direito dos povos dominadores – outro elemento que caracteriza o instituto na atualidade.

    Essa tendência também explica a utilização da arbitragem durante a Idade Média. Conforme anota Luiz Olavo Baptista, diversos motivos podem ser elencados para explicar a difusão do instituto em tal período:

    A principal foi a vontade de escapar às justiças senhoriais, cuja imparcialidade era duvidosa aos procedimentos mais complicados e, sobretudo, custosos; outras causas foram a aspiração das corporações e cidades (notadamente na Baixa Idade Média) de se autoafirmarem como independentes, o desejo dos nobres de manter sob sigilo algumas de suas contendas e, finalmente, o interesse dos comerciantes de resolver as questões ligadas à sua atividade no seio das corporações, evitando a interferência do clero e do direito canônico que vedava os juros e os tratava como forma de usura.¹⁹

    A vocação da arbitragem enquanto método de resolução de disputas destinado ao comércio já despontava na Idade Média. Realmente, com a aceleração do intercâmbio entre os povos e desenvolvimento das relações comerciais, associados ao declínio do feudalismo, o que se verifica a partir do século XI é uma nova expansão da arbitragem justamente por parte dos negócios desenvolvidos pelos comerciantes, que emergem no período da Baixa Idade Média como precursores do mercantilismo.

    De toda forma, em tal período, a arbitragem não experimentou uma sistematização ou codificação que mereça destaque. A fragmentação político-estatal – elemento marcante da Idade Média – relegava a arbitragem justamente aos anseios e necessidades dos comerciantes, desvinculados do poder feudal que então imperava, organizados por suas próprias práticas, dentro de suas corporações.²⁰ Essa característica é interessante, pois marca os primórdios da visão de parcela da doutrina que defende a existência de uma ordem jurídica arbitral autônoma não-estatal – objeto de análise no item 2.2.2. do Capítulo 2.

    Ainda assim, o desenvolvimento e a codificação da arbitragem parecem ter sido pontualmente verificados no século XVI e início do século XVII. Merece destaque especial a França, onde as Ordenanças de 1510, 1535, 1560 e 1629 regulamentaram a matéria.²¹ No entanto, segundo anota Pedro A. Batista Martins, a arbitragem experimenta um certo declínio no início do século XIX, em razão das reformas napoleônicas e consequente melhoria da administração da justiça por parte dos Estados²².

    Foi a partir das normas acima mencionadas que se sedimentou, no final do século XIX e início do século XX, a arbitragem como hoje conhecida.²³

    No âmbito internacional, a arbitragem passou a experimentar importantes desenvolvimentos já em decorrência do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A necessidade de que os Estados buscassem soluções pacíficas para as controvérsias entre eles existentes levou à criação, em 1919, da Liga das Nações. No mesmo ano, foi criada a Câmara de Comércio Internacional (CCI), com a intenção de possibilitar melhores condições para o avanço do comércio internacional, seguida da criação de sua Corte Internacional de Arbitragem em 1923, que visava conferir reforço a um sistema imparcial para a solução de litígios de natureza comercial no âmbito internacional.

    Sob os auspícios da Liga das Nações, datam deste período os primeiros tratados sobre a eficácia da convenção de arbitragem e o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras. São estes os chamados Tratados de Genebra: o Protocolo sobre Cláusulas Arbitrais, de 1923 (Protocolo de Genebra), e a Convenção sobre Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 1927 (Convenção de Genebra)²⁴.

    Os esforços visando à solução pacífica de disputas entre Estados não foram o bastante para impedir o surgimento de um novo conflito bélico, traduzido na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cujas proporções foram muito mais devastadoras do que aquelas observadas no primeiro grande confronto mundial. Diante do insucesso observado na constituição da Liga das Nações, foi criada, em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU), cujo principal objetivo, ao menos naquele momento, era o de impedir a repetição de tais tragédias.

    Com o passar das décadas, a ONU consolidou-se como o principal organismo internacional em temas como direitos humanos, desenvolvimento econômico, comércio internacional, unificação de legislações em matéria de direito internacional etc.²⁵

    Em paralelo, com o final da Segunda Guerra Mundial, a economia voltou a despontar em outros setores não relacionados à lógica do conflito. Nos anos que se seguiram, a polarização verificada na Guerra Fria também incentivou o avanço do comércio entre países capitalistas, o qual, por consequência, voltou a florescer²⁶.

    A retomada do crescimento e a progressiva dinamização de relações comerciais complexas demandava a consolidação de um sistema verdadeiramente internacional de solução de disputas, desvinculado o quanto possível das particularidades afeitas às jurisdições estatais²⁷. A arbitragem, em razão de suas diversas vantagens para fins de resolver disputas referentes a relações comerciais, especialmente no âmbito internacional, despontava como a solução mais recomendada. Dados apontam que foi justamente no cenário pós Segunda Guerra Mundial que a arbitragem experimentou uma ascensão vertiginosa²⁸.

    No entanto, o pleno avanço da arbitragem ainda encontrava certa resistência em razão de alguns problemas advindos da aplicação da Convenção de Genebra. O primeiro problema dizia respeito a algo que não se encontrava expressamente contido no texto da Convenção de Genebra, mas que decorria de sua interpretação: a necessidade do duplo exequatur para que a sentença arbitral pudesse ser reconhecida em outro local (ou seja, além da homologação no país em que se pretendia a execução, também era necessário o reconhecimento da sentença arbitral pelas Cortes do local em que proferida a sentença)²⁹. O segundo problema estava relacionado ao ônus probatório da parte que pretendia a homologação em demonstrar que a sentença arbitral era final no local em que proferida, não sujeita a recurso, oposição, cassação ou a ter sua validade contestada³⁰. Por fim, destaca-se um terceiro problema, envolvendo as hipóteses meramente exemplificativas trazidas pela Convenção de Genebra para que o reconhecimento da sentença arbitral fosse negado, bem como a ampla discricionariedade conferida às Cortes do local da homologação na aplicação do disposto no tratado, o que acabava por gerar extrema insegurança jurídica³¹.

    Assim, apesar da propensão natural da arbitragem para resolver questões ligadas ao comércio internacional, estes óbices relacionados à circulação de sentenças arbitrais estrangeiras impactavam negativamente sua adoção. É nesse contexto que, em um esforço multilateral, surgiu a ideia de se criar uma nova convenção internacional que regulasse a questão de forma segura e, sobretudo, uniformizasse o procedimento de homologação e execução de sentenças arbitrais estrangeiras.

    Tal esforço resultou em um dos instrumentos jurídicos internacionais basilares para a consolidação da arbitragem enquanto método alternativo de resolução de controvérsias na arena global: a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958 (Convenção de Nova Iorque).

    Após a apresentação de um rascunho preliminar de uma nova convenção pela CCI em 1953 e a elaboração de uma nova proposta de texto por um comitê ad hoc designado pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU, foi convocada uma conferência diplomática a realizar-se em Nova Iorque, em 1958, para discussão do novo tratado. A Conferência ocorreu entre os dias 20 de maio e 10 de junho de 1958, na sede da ONU, contando com a participação de delegados de mais de quarenta Estados Membros.

    Sem adentrar nos detalhes do texto final da Convenção de Nova Iorque – tema riquíssimo e complexo, o qual escapa ao objeto deste estudo³² –, cumpre destacar tratar-se do tratado ONU de maior sucesso desde a sua gênese³³, ao menos se considerado o número de Estados aderentes³⁴. O processo de sua aprovação reflete um esforço multilateral da comunidade internacional para que a Convenção de Nova Iorque se tornasse uma realidade.

    Além disso, vale mencionar que, ao final, o escopo da Convenção de Nova Iorque acabou por também abranger o conteúdo do Protocolo de Genebra. Isso porquê, embora muitas vezes ignorado pelo público em geral, o art. 2º da Convenção de Nova Iorque trata do reconhecimento, por parte dos Estados contratantes, da possibilidade de se estatuir uma convenção de arbitragem e o estabelecimento da obrigação das Cortes dos Estados contratantes de conferir plena eficácia a tais convenções e determinar o envio das partes à arbitragem. Assim, apesar do seu nome, a Convenção de Nova Iorque não visa a apenas resguardar a segurança jurídica envolvendo as sentenças arbitrais consideradas estrangeiras, mas também garantir que as Cortes Estatais procedam de forma correta quando se depararem com a existência de convenção de arbitragem em processos que, porventura, venham a analisar.

    A base criada pela Convenção de Nova Iorque rapidamente passou a demandar uma regulamentação processual e procedimental mais uniforme, onde os conceitos trazidos nas legislações arbitrais dos Estados e as regras procedimentais escolhidas pelas partes estivessem em consonância com o que dispunha o texto convencional. Nesse contexto, dois outros instrumentos normativos devem ser mencionados a nível internacional, ambos expedidos pela UNCITRAL: as Regras de Arbitragem e a Lei Modelo de Arbitragem Comercial Internacional.

    Apenas para fins de contextualização, a UNCITRAL é uma comissão de Estados junto à ONU criada pela Resolução nº 2.205 da Assembleia Geral de 17 de dezembro de 1968, cujo propósito é promover a progressiva harmonização do direito do comércio internacional. Conforme bem asseverado por Guido Fernando da Silva Soares, longe de criar ou buscar unificar uma parcela do direito internacional público voltado às relações do comércio internacional, seu papel está muito mais ligado à elaboração do que denomina jus gentium mercatorum: "o direito que regula as relações dos agentes do comércio internacional, e que tendem a ser uniformizados no mundo, não por força de constarem em tratados internacionais, mas pela sua própria vocação de ultrapassarem as fronteiras dos Estados"³⁵. É exatamente nesse papel que se inserem as Regras de Arbitragem e a Lei Modelo da UNCITRAL.

    Logo após sua criação, em sua primeira sessão, a UNCITRAL incluiu a arbitragem comercial internacional dentre os itens prioritários de sua agenda.³⁶ Em sua segunda sessão, apontou o Sr. Ion Nestor (Romênia) como Relator Especial para preparar um relatório endereçando as problemáticas envolvendo a aplicação e a interpretação das convenções internacionais em matéria de arbitragem comercial internacional então existentes e outros problemas relacionados.³⁷

    O relatório foi apresentado na quinta sessão da UNCITRAL, que solicitou aos Estados-membros que trouxessem comentários às propostas contidas no relatório para enfrentamento dos problemas elencados.³⁸ Uma das propostas envolvia a criação de um grupo de estudos para estabelecimento de regras básicas de arbitragem capazes de unificar as regras de arbitragem existentes, possibilitando sua adoção por diversas instituições arbitrais.

    Não é necessário dizer que a proposta encontrou forte resistência dentre diversos Estados – algo justificável em razão de uma questão de natureza bastante prática, visto que seria virtualmente impossível a unificação de regras de arbitragem criadas por inúmeras instituições arbitrais localizadas em Estados com tradição e prática arbitral completamente diferentes. Foi citada, até mesmo, a dificuldade em implementar-se a ratificação da Convenção Europeia estabelecendo uma Lei Uniforme de Arbitragem, estabelecida pelo Conselho Europeu em 1966, como um indicativo de que uma iniciativa envolvendo a uniformização de regras de arbitragem seria bastante desafiadora.³⁹

    A solução encontrada foi inspirada nas experiências envolvendo duas regras de arbitragem estabelecidas por comissões econômicas regionais em 1966: as Regras de Arbitragem Europeias, elaboradas pela Comissão Econômica da Europa e as Regras de Arbitragem da ECAFE, elaboradas pela Comissão Econômica da Ásia e Extremo Oriente.⁴⁰ Ambas as regras não pretendiam substituir as regras de arbitragem adotadas pelas instituições arbitrais então existentes, mas poderiam ser aplicáveis a arbitragens ad hoc, quando livremente escolhidas pelas partes para reger o procedimento.

    A proposta para criação de regras de arbitragem a serem utilizadas em arbitragens ad hoc parecia mais atrativa no sentido de garantir, de forma imediata, uma uniformização de procedimentos e práticas, sem necessidade de implementação por instituições de arbitragem autônomas, elevando o nível de uniformização da própria arbitragem comercial internacional naquele momento.⁴¹ Também poderia ser utilizada posteriormente, caso fosse decidido seguir adiante com a proposta de uniformização das regras utilizadas pelas instituições arbitrais.

    Após um extenso processo envolvendo a elaboração de um corpo de regras que promovesse o uso da arbitragem na resolução de disputas de natureza comercial, a Assembleia Geral da ONU, em sessão realizada em 1976, deliberou pela recomendação do uso das Regras de Arbitragem da UNCITRAL.⁴² Além dos pontos já elencados pela UNCITRAL nos diversos estágios envolvendo a elaboração das regras, entendeu-se que o estabelecimento de um corpo normativo destinado a reger arbitragens que fosse aceitável em Estados com diferentes sistemas legais, sociais e econômicos contribuiria significativamente para o desenvolvimento de relações econômicas internacionais harmoniosas⁴³.

    Tratam-se de regras de arbitragem que podem ser aplicadas autônoma e diretamente em arbitragens ad hoc, assim como em procedimentos arbitrais administrados por instituições.

    A aceitação das Regras de Arbitragem da UNCITRAL foi tamanha que convenções e leis nacionais passaram a incluir previsões no sentido de que, na ausência de escolha pelas partes da utilização de outras regras, as Regras de Arbitragem da UNCITRAL seriam aplicáveis. Podem ser citados, como exemplos, a Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional de 1975 (Convenção do Panamá)⁴⁴, que será analisada com maior vagar no Capítulo 3, e o Decreto nº 64.356, de 31.7.2019 do Estado de São Paulo, que regulamenta o uso da arbitragem pela administração pública naquele estado.⁴⁵

    Além disso, diversas instituições passaram a prever de forma expressa em seus regulamentos e regras de arbitragem que a condução de procedimentos arbitrais regidos pelas Regras de Arbitragem da UNCITRAL seria possível no âmbito daquela instituição.⁴⁶

    As Regras de Arbitragem da UNCITRAL foram revisadas em 2010 para, conforme estabelecido pela própria Assembleia Geral da ONU que aprovou a nova versão das regras, adaptar-se as práticas atuais do comércio internacional e alterações da prática arbitral ocorridas nos últimos 30 (trinta) anos.⁴⁷ A nova versão incluiu procedimentos revisados para substituição de árbitros, novo requisito de razoabilidade envolvendo os custos da arbitragem e um mecanismo de revisão para custos, também incluindo disposições mais detalhadas sobre tutelas provisórias. Em 2013, uma nova versão foi editada, a qual incorporou as Regras de Transparência para Arbitragens Investidor-Estado Baseadas em Tratados.⁴⁸

    Já com relação à Lei Modelo da UNCITRAL, de forma bastante resumida, a ideia de uma legislação modelo que pudesse ser adotada por diversos Estados para regular a arbitragem comercial internacional surgiu em decorrência de diversas solicitações recebidas pela UNCITRAL para que trabalhasse em prol do desenvolvimento do corpo normativo que rege a arbitragem a nível internacional.⁴⁹ A principal justificativa para tanto fundamentava-se na preocupação em evitar que as legislações locais impedissem as partes de conduzirem procedimentos arbitrais de acordo com as regras que haviam livremente pactuado.

    O Secretariado da UNCITRAL realizou a primeira reunião de um extenso processo de consulta e debates junto à comunidade arbitral internacional em Paris, em 1978. O resultado de tal reunião foi justamente a recomendação de que fosse elaborada uma lei modelo como forma de evitar que sentenças arbitrais fossem anuladas pelas cortes nacionais.⁵⁰

    A questão foi reportada na sessão da UNCITRAL realizada em 1979, que concluiu ser recomendável adotar uma lei modelo em matéria de arbitragem internacional de forma a auxiliar os Estados a modernizar e uniformizar suas legislações, propiciando-lhes os benefícios inerentes ao instituto.

    A UNCITRAL entendeu que uma lei modelo não seria suficiente, por si só, para garantir a modernização e o desenvolvimento pretendidos, expressamente consignando que o instrumento normativo a ser produzido deveria considerar tanto a Convenção de Nova Iorque como as Regras de Arbitragem da UNCITRAL⁵¹. Ficou estabelecido que o Secretariado preparasse uma lei modelo em consulta às organizações internacionais interessadas, destinada a regular arbitragens comerciais internacionais, compatibilizando normas e princípios que permitissem sua aplicação por virtualmente todos os sistemas jurídicos e políticos, mas sem endereçar procedimentos domésticos.⁵²

    Conforme destacam Holtzmann e Neuhauss, a resolução da Assembleia Geral da ONU que recomendou a adoção da Lei Modelo da UNCITRAL trouxe consigo menção a diversos pontos essenciais à compreensão do contexto em que o documento foi elaborado, bem como seus objetivos⁵³:

    The General Assembly,

    Recognizing the value of arbitration as a method of settling disputes arising in international commercial relations,

    Being convinced that the establishment of a model law on arbitration that is acceptable to States with different legal, social and economic systems contributes to the development of harmonious international economic relations,

    Noting that the Model Law on International Commercial Arbitration was adopted by the United Nations Commission on International Trade Law at its eighteenth session, after due deliberation and extensive consultation with arbitral institutions and individual experts on international commercial arbitration,

    Being convinced that the Model Law, together with the Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards and the Arbitration Rules of the United Nations Commission on International Trade Law recommended by the General Assembly in its resolution 31/98 of 15 December 1976, significantly contributes to the establishment of a unified legal framework for the fair and efficient settlement of disputes arising in international commercial relations,

    1. Requests the Secretary–General to transmit the text of the Model Law on International Commercial Arbitration of the United Nations Commission on International Trade Law, together with the travaux préparatories from the eighteenth session of the Commission, to Governments and to arbitral institutions and other interested bodies, such as chambers of commerce;

    2. Recommends that all States give due consideration to the Model Law on International Commercial Arbitration, in view of the desirability of uniformity of the law of arbitral procedures and the specific needs of international commercial arbitration practice.⁵⁴

    Ao passo que a adoção da Resolução acima representou, com sucesso, o fim da fase de elaboração da Lei Modelo da UNCITRAL, também marcou o início de uma outra importante fase, a qual ainda se encontra em expansão. Trata-se do incentivo para que os Estados reformem suas legislações em matéria de arbitragem, adotando um arcabouço normativo moderno e uniforme baseado na Lei Modelo da UNCITRAL.

    A Lei Modelo da UNCITRAL veio a ser emendada de forma que duas questões principais fossem endereçadas: o requisito de que a convenção de arbitragem seja escrita (especialmente em razão do impacto da tecnologia na disciplina dos contratos) e a concessão de tutelas provisórias (tema não tratado na versão anterior). Em 18 de dezembro de 2006, a Assembleia Geral da ONU aprovou as emendas, incluindo a aprovação de um instrumento normativo de interpretação do requisito escrito da convenção de arbitragem previsto na Convenção de Nova Iorque de forma que as novas disposições da Lei Modelo da UNCITRAL não conflitassem com o disposto no tratado.⁵⁵

    A Lei Modelo da UNCITRAL, somada à Convenção de Nova Iorque e às Regras de Arbitragem da UNCITRAL, representa a terceira maior contribuição da ONU voltada ao desenvolvimento de sistemas de resolução de disputas.

    Desde sua edição em 1985, 80 (oitenta) países alteraram suas legislações de forma a adotar integralmente o texto sugerido ou utilizá-lo como base para novas leis por si editadas.⁵⁶ Diversos outros Estados, tal como o Brasil, reformaram ou editaram suas legislações locais para, em maior ou menor grau, conformá-las aos princípios e preceitos trazidos pela Lei Modelo da UNCITRAL.

    Outros inúmeros instrumentos foram editados por organizações internacionais visando a uniformização do direito arbitral no decorrer das últimas décadas – sejam eles propostas de legislação modelo, regras de soft law ou novas propostas de convenções internacionais. Tal fenômeno está diretamente ligado ao desenvolvimento da prática da arbitragem internacional e o surgimento de novas discussões a permear o instituto, trazendo ao debate ao menos a necessidade ou não de regulação.

    Sumarizando o histórico mencionado acima é a colocação de Sir William Searle Holdsworth, conforme citado por Luiz Olavo Baptista:

    [A] prática da arbitragem deriva, por assim dizer, naturalmente de organismos primitivos do direito; e depois que os tribunais foram estabelecidos pelos Estado e o recurso a eles tornou-se o método natural de resolver disputas, a prática continua porque as partes em disputa desejam resolvê-la com menos formalidade e despesa que as envolvidas com o recurso aos tribunais.⁵⁷

    Não por outra razão a arbitragem tem sido considerada o método de resolução de disputas mais lógico e acertado para resolver disputas comerciais. Cláudio Finkelstein sintetiza com precisão:

    Aos operadores do comércio internacional, a arbitragem se afigura, certamente, o meio mais propício para solucionar as demandas. Muito embora alguns deles ainda se

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