Pés vermelhos sob o céu azul: vida que segue
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Pés vermelhos sob o céu azul - Ademir Baldon
PÉS VERMELHOS
"Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo
que irás tomar.
Presta atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó."
Cartola
Em 22 de setembro de 1959, na roça da pequena cidade de Sertanópolis no Estado do Paraná, nascia o filho mais novo de uma família de oito irmãos, sendo os outros seis: Antonio, Adelino, Valdomiro, Vacir, João e Pedro, e o mais novo dos meninos, narrador dessa história, Ademir. Sete filhos homens e uma única menina, Hélia. Oito filhos do senhor Geraldo Baldon, o pai, falecido em 1986 aos 73 anos de idade, e Benedita Pacola Baldon, a mãe, falecida em 1995 aos 83 anos.
Sertanópolis caracteriza-se como as pequenas cidades brasileiras do interior, geralmente cortadas por um ou mais rios, nesse caso o Taboca, um pequeno riacho às margens do qual eu nasci e que ainda lá continua, firme e forte. Taboca é bambu ou taquara em tupi-guarani. Eu nasci numa casa de sítio agraciada pelo Taboca, distando cinco quilômetros da cidade e a sete da escola onde eu estudava.
Penso que o primeiro momento de que me lembro e me vem à cabeça para escrever essas memórias é o dia de 22 de setembro de 1965, dia do meu aniversário de seis anos. Lembro-me que meu pai deu-me um dinheiro - comparando com o dinheiro de hoje acho que seria uns cinco reais - o que daria para comprar uns três ou quatro doces, esse doces caipiras de mercearia, de padaria, de bar, de boteco, que se come nas festas juninas, ou quem sabe tomar uma ou duas coca-colas.
Estava tirando água do poço de forma manual e, na subida com o balde cheio, pesando uns 15 quilos, o sarilho de madeira escapou da minha mão e acertou em cheio na minha testa, e com o meu grito de dor e o barulho do balde cheio d’água batendo lá no fundo do poço, meu pai foi ver o que tinha acontecido, e, nessa conversa que tivemos, ele me presenteou com aquele dinheirinho. Bem, aquela pancada do sarilho na minha testa deixou uma marca frontal que carrego até hoje, e que contei pra mim mesmo como a causa para o início da memória sobre a sequência da minha vida.
Modelo de poço que tinha no sítio no Paraná
E por que me lembro disso? Porque lá no sítio, que não era nosso, nós trabalhávamos com aquele sistema de renda chamado de meeiro, ou seja, do total do que produzíamos entregávamos metade para o dono da terra e a outra metade ficava com a família do produtor.
Plantávamos café, milho, feijão, girassol, mamona, vassoura, banana e um pouco de cana de açúcar para ajudar na alimentação de algumas vaquinhas de leite que tínhamos; enfim, era uma agricultura de subsistência, então todos trabalhavam na roça e ninguém ganhava nada por isso, a não ser os irmãos casados, quando das vendas da safra. Esses irmãos tinham um percentual que era a forma como eles sobreviviam com suas famílias; os solteiros como eu, e no auge dos seis anos de idade, não ganhavam nada não, ou melhor, ganhavam comida. Quer dizer, não é que ganhávamos, trabalhávamos para reforçar o direito a comer e a vestir-se. Além disso, os dois irmãos mais velhos eram os únicos que tinham bicicleta, e conforme iam se casando, as bicicletas iam ficando com os mais novos. De vez em quando o nosso pai entregava cinco ou dez reais para gastar quando fôssemos à cidade nos finais-de-semana para participar da missa e depois dar umas voltas pela praça da igreja matriz de Santa Terezinha. Então com essa idade eu já trabalhava com meus irmãos.
Entrei para o ensino fundamental com sete anos no horário da tarde. Naquela época o ensino primário era composto de cinco anos, e juntamente com o quinto ano, fazia-se à noite o curso de admissão para então obter o direito de avançar para o ginásio onde se cursava mais quatro anos, somando-se aos nove anos que corresponderiam ao modelo de agora, em que voltou o nono ano.
Então, com apenas sete anos eu estudava à tarde e trabalhava pela manhã na roça com meus pais, naquilo que eu conseguia fazer que era carpir e puxar os animais para passar o arado na plantação - diminuindo assim a capinação na enxada, limpar tronco de café, derriçar café e cuidar do café no terreiro - tipo amontoar e cobrir no final do dia, para no dia seguinte esparramar tudo novamente, inclusive nos finais-de-semana, até que o café ficasse seco e em condições de ser armazenado para venda futura.
Curso de terreiro de café - YouTubeManuseio da secagem do café logo após a colheita
Lembro-me também que eu ajudava muito em casa lavando louça, limpando toda a casa, e com os joelhos no chão, encerava com as mãos o assoalho da casa usando cera parquetina, dando lustro em seguida
com o uso de um escovão e flanela. Naquela época existia uma mania, um costume, uma cultura: todos os sábados ou a cada 15 dias, pegava todo o alumínio da casa e lavava com Bombril, colocava no sol para secar e pegar brilho, uma coisa tão besta, mas feita de modo a impressionar uma possível visita, mostrando que a casa era bem pobre, mas havia limpeza e arrumação. E esse trabalho sobrava para mim, então eu ajudava muito minha mãe, porque eu só tinha uma irmã e ela também se casou ainda bem nova.
Como eu disse, eu ia para escola à tarde, a pé, sete quilômetros pra ir e mais sete para voltar; se estivesse chovendo tinha que ir do mesmo jeito, com sol mesma coisa, com frio, calor e com um detalhe importante e interessante: quando estava chovendo eu ia descalço porque era muito barro, nessa época a cidade começava a ser asfaltada, então eu ia descalço, levando um sapatão em uma sacolinha plástica, literalmente um sapatão de roça e, na entrada da cidade, eu usava a enxurrada para lavar os pés, calçava o sapatão e escondia a sacolinha no meio do capim para que na volta, quando chegasse no mesmo lugar, eu tirava novamente o sapatão, pegava a mesma sacolinha, colocava o sapatão, e voltava com os pés no chão para casa. Fazia isso para não estragar o calçado com o barro ou molhando-o com a chuva, por não ter dinheiro para comprar outro, sem contar que seu solado era pregado com as tachinhas.
Assim se deram os cinco anos das aulas no primário, nessa batida, além de, no quinto ano na escola normal à tarde, eu fazer o curso chamado de admissão. Tínhamos que fazer mais um ano de admissão, como se fosse um cursinho pra você ir para o 1º ano ginasial, e esse curso terminava às 22 horas, e na maioria das vezes eu vinha sozinho para casa, com ou sem chuva, com frio ou calor, com ou sem brilho da lua... Mas confesso que nas noites em que a lua brilhava, ela me trazia muito mais segurança e menor apreensão. Os trechos dessas minhas pequenas andanças entre a escola e a casa talvez tenham gravado em mim a memória das minhas queridas professoras do chamado ensino primário das quais nunca esqueço, personagens centrais que começaram a moldar esse ser narrador. São elas:
Primeira série – Profa. Antonia Barreto Giglio
Segunda série – Profa. Elisa do Prado Suprum
Terceira série – Profa. Loide Balzanelo Soriani e Profa. Virginia Vilele Zanin
Quarta série – Profa. Roseli de Almeida Scaloni
Quinta série – Profa. – Sara Miranda Amâncio
Que Deus as abençoe sempre.
Grupo escolar do ensino fundamental – do primeiro ao quinto ano
Trabalhando no período da manhã e estudando no período da tarde, como fazer para brincar? Afinal, como uma criança normal, eu gostava muito de brincar, sobretudo de jogar bola, geralmente com meus outros três irmãos solteiros, já que os outros três já eram casados, além de também minha irmã.
Era muito legal porque a gente fazia as famosas duplas, tudo que a gente inventava para brincar e passar o tempo era feito em duplas, por exemplo, brincar com bola nas famosas rebatidas, a gente fazia sempre em duplas, além do futebol, duplas para jogar bolinha de gude, jogar ou rodar pião, empinar pipas e jogar raquetes. Mas futebol era o que mais a gente praticava, geralmente quando eu voltava da escola e meus irmãos voltavam da roça, batendo uma bolinha ali na poeira do quintal ou muitas vezes no barro... E, depois, aquele trabalho para tomar banho.
Essa foi a época em que muitas crianças brasileiras, não apenas eu, passaram parte da infância a tirar água do poço com o balde, dentre inúmeros afazeres domésticos – coisa inimaginável para a grande maioria das crianças e adolescentes hoje em dia. Depois, ainda, se o clima estivesse frio, tinha que esquentar água no fogão à lenha, misturar a água quente com a água fria e levar para uma casinha de madeira que ficava uns dez metros de distância da casa. Ali tinha uma espécie de balde com o fundo todo furadinho e com uma espécie de registro, abria-se um pouquinho aquele registro, molhava o corpo, ensaboava com sabão caseiro feito à base de óleo e gordura, mais soda cáustica para dar o ponto de corte. Ou seja, aquilo que se tem de mais caipira numa barra de sabão. Abria-se novamente o registro para enxaguar, tudo muito rápido para a água não esfriar e não acabar e, por conta do uso do sabão caseiro, com um resultado pra lá de desgostoso para nosso cabelo, o que podia ser ainda considerado um luxo, uma vez que nossa mãe liberava o sabonete apenas aos sábados, porque era o dia que íamos na cidade e no domingo íamos a missa.
Felizardos que éramos como crianças da roça, tinha ainda outra forma de tomar banho, dependendo da pressa ou não, que era fazendo uso de uma bacia grande, utilizando o mesmo processo em relação à água, o que já naquela época chamávamos de banho de gato
. Então tínhamos essas duas formas de tomar banho para tirar toda aquela sujeira da roça, com ou sem futebol.
Modelo de chuveiro improvisado utilizado na época
Após o banho íamos jantar, a comida sempre feita em fogão a lenha. Depois do jantar, impreterivelmente a lição de casa de todos os dias: português, matemática e conhecimentos gerais. Era muita lição! E eu já estava muito cansado quando chegava a hora da lição!
Finalmente, chegava a hora de dormir. Todos os nossos colchões eram costurados pela nossa mãe e cheios com palha de milho, um negócio muito louco porque a gente deitava e o corpo ficava desenhado ali, era mais um molde do que um colchão. Se você se mexia na cama era um barulhão danado, no outro dia, sob a cama, no assoalho, ficava cheio daquele pó da palha do milho que passava pelo tecido do colchão, e conforme íamos usando aquele colchão, ele ia afinando ficando sem resistência, e aí tínhamos que ir ao paiol de milho seco, tirar mais palhas das espigas para a nossa mãe reabastecer os colchões.
Colchão de palha de milho
Quando olho para trás, penso que o meu espírito de empreendedor e a vontade de fazer alguma coisa a mais possivelmente nasceu aí, e por quê?
Porque não se tinha grana para nada, para eu comprar uma bola, uma conga, um kichute, tomar um guaraná, comer um pão com ovo ou um doce do pipoqueiro da escola eu trabalhava um fim-de-semana, um pedaço de dia, nas férias da escola ou nos dias em que o trabalho da roça era muito pesado pra minha idade, pra ganhar meu troquinho do pai. Então eu não podia ficar parado, ia colher os grãos de café que por acaso foram jogados fora junto com a palha, ou algum galho que por acaso não foi colhido. Sempre acontecia algum desperdício no processo manual da colheita, então eu voltava lá nos pés de café, escolhia os que tinham mais palhas espalhadas pelo chão e refazia o processo, ou seja, rastelava e amontoava aquelas folhas e com uma peneira grande abanava as palhas, sobrando então aquela pequena quantidade de grãos juntamente com alguns pequenos torrões de terra, colocava tudo em um saco de estopa e levava para casa.
Colheita - Abanando o café | Alt_bx_2_dsc_0394 | Thais Staut | FlickrAbanação de café com o uso de uma peneira
E assim eu ia fazendo até poder juntar uns 40 ou 50 quilos, aí eu pegava um grande tacho, enchia de água e mergulhava todo aquele café nessa água - dessa forma, os grãos de café boiavam e a terra ia toda para o fundo, depois eu retirava os grãos com uma peneira e esparramava no sol para secar por alguns dias. Depois do café seco, eu voltava os grãos para o saco de estopa, pesava e vendia para o meu pai, que os revendia nos armazéns lá da cidade.
Eu fazia isso também com mamonas selvagens. Colocava o cavalo na carroça e saía pela beira das estradas, nos pastos, enfim, onde eu via os cachos de mamonas prontas para serem colhidas eu entrava, afinal de contas, essas mamonas não seriam colhidas por ninguém, caíam pelo chão e nasciam novos pés, elas não eram plantadas por ninguém, era comum brotarem nos matos. Depois de colher a mamona, eu levava para um local com piso feito de tijolos e cimento, esparramava e deixava secar, depois de seca, batia com um equipamento chamado de gambão (cabo de madeira com um ferro amarrado na ponta), abanava com uma peneira, armazenava e quando conseguia juntar uma boa quantia, novamente vendia para o meu pai que, por sua vez, revendia nos armazéns da cidade.
Uma outra coisa que eu fazia quando aparecia a possibilidade era colher algodão, mas aí não era para meu pai, ele não plantou algodão. Eu colhia algodão para terceiros em outros sítios, e era uma coisa infernal! Imagine uma criança entre sete e doze anos colher algodão manualmente. A gente amarrava um saco grande de estopa na cintura, posicionando a boca do saco para o lado de trás e, conforme íamos colhendo as maçãs do algodão, colocava dentro do saco, avançando na colheita e arrastando o saco de algodão pela cintura, como se fosse um animal puxando uma carroça. Acontece que a plantação do algodão era cheia do espinho carrapicho, e a roupa ficava tomada desse espinho. Como não tínhamos o costume – ou o conhecimento – de fazer uso de luvas, o carrapicho parecia um anzol, entrava nas mãos e nos dedos, e quando eu tirava, sempre sobrava um pedacinho sob a pele, e aí a minha mãe ou meu pai retirava com agulha de pregar botão quando eu chegava em casa no final do dia. Isso também acontecia com as maças do algodão, com suas pontas secas e pontiagudas pegando nos cantos das unhas, causando ferimentos que doíam muito, mas um bom merthiolate e mercúrio à noite ajudavam bastante – e o choro era livre, como se diz hoje em dia.
Toda essa trabalheira de colher e vender para o meu pai para poder fazer algum dinheiro representa muito pouco comparado aos dias de hoje. Cada venda que eu fazia me rendia entre de R$ 10,00 a R$ 30,00, lembrando que a colheita do café, da mamona e do algodão acontecia uma vez por ano. No restante do ano, eu colhia manga, vendia na cidade, ia trabalhar em um viveiro de mudas de café, onde eu enchia os saquinhos plásticos de terra para o posterior plantio do café. Assim garantia uma pequena, mas importante quantia de dinheiro para alguma necessidade básica, ou algum desejo de criança.
Mesmo sendo pouco, hoje vejo que esse valor não se compara com o ensinamento que trouxe, bem como para o molde do caráter do homem: o hábito do trabalho. Principalmente aprendi que a vida não sorri para ninguém, nada é fácil, e se for muito fácil, desconfie. Algo muito fácil não existe, a vida é lutada, dinheiro não cai do céu