Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Relações interpessoais no ciclo vital
Relações interpessoais no ciclo vital
Relações interpessoais no ciclo vital
E-book810 páginas10 horas

Relações interpessoais no ciclo vital

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Este livro apresenta diferentes tópicos relacionados ao campo de estudo das relações interpessoais no transcorrer do desenvolvimento humano. A obra contempla temas pertinentes a questões de relacionamento interpessoal referentes a cada etapa do desenvolvimento, da infância à velhice.

Logicamente, seria impossível esgotar todo o assunto com apenas um livro, mas seu propósito é trazer visões críticas e atualizadas, amparadas em recentes pesquisas na área. Nesse sentido, espera-se que a contribuição da presente coletânea se estenda tanto aos nichos mais conjecturais quanto à perspectiva baseada em evidências.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de nov. de 2023
ISBN9786553740990
Relações interpessoais no ciclo vital

Relacionado a Relações interpessoais no ciclo vital

Ebooks relacionados

Psicologia para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Relações interpessoais no ciclo vital

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Relações interpessoais no ciclo vital - Manoel Antonio dos Santos

    Prefácio

    É uma grande satisfação poder apresentar ao leitor esta obra composta por grandes nomes da Psicologia no Brasil, pesquisadores sobre o tema das relações interpessoais que se reuniram numa tentativa de apresentar uma síntese de teorias contemporâneas sobre o tema ao longo de todo o ciclo da vida. Assim, esta obra apresenta temas de situações sociais relevantes em que o relacionamento interpessoal é foco como nos primeiros anos de vida da criança, o ingresso na escola, o desenvolvimento da identidade sexual, uso de drogas, conjugalidade, vida adulta relações interpessoais na terceira idade, dentre outros tópicos.

    Procurou-se abordar alguns dos principais problemas que envolvem diferentes aspectos do relacionamento interpessoal em cada etapa da vida, sendo esta obra separada por estas seções, infância, adolescência, vida adulta e velhice. Assim, espera-se que este livro seja uma referência importante no sentido de se caracterizar como estas questões são abordadas e solucionadas com o avanço do desenvolvimento.

    Parte 1 Relações interpessoais na infância

    As bases das relações afetivas nos primeiros anos de vida: a relevância dos cuidados parentais

    Mauro Luís Vieira

    Maria Aparecida Crepaldi

    Beatriz Schmidt

    Carina Nunes Bossardi

    Carolina Duarte de Souza

    Lauren Beltrão Gomes

    Mariana Schubert Backes

    Rovana Kinas Bueno

    O campo do desenvolvimento humano concentra-se nos processos de mudança e estabilidade que ocorrem nas pessoas, desde o momento da concepção, até o final da vida. Entender esse processo ao longo do ciclo vital envolve a consideração de três principais domínios do desenvolvimento: o físico, o cognitivo e o psicossocial (Papalia & Feldman, 2013). Embora estes estejam relacionados, a esfera da construção social e emocional da criança tem sido alvo de intensas pesquisas com a produção de resultados expressivos acerca da importância das interações sociais nos primeiros anos de vida e da influência do estabelecimento dos vínculos iniciais no desenvolvimento humano.

    É geralmente no contexto das interações familiares que as crianças vivenciam as primeiras situações de aprendizagem e de introjeção de padrões de comportamento, normas, valores e costumes, bem como experienciam as relações interpessoais primevas, as quais formarão as bases da subjetividade, da personalidade e da identidade (Kreppner, 2000). Nesse sentido, ressalta-se a importância das relações afetivas estabelecidas entre os cuidadores e a criança nos primeiros anos de vida, haja vista seu impacto em toda a trajetória de desenvolvimento.

    É comum encontrar na literatura estudos sobre os vínculos estabelecidos entre as crianças e seus cuidadores, geralmente os pais[1], expandindo-se depois para outros membros da família, tais como irmãos e avós e, mais tarde, os pares de sua idade. Assim, as relações de apego na primeira infância têm sido apontadas como uma das mais expressivas influências no desenvolvimento socioemocional, evidenciando a importância da vinculação afetiva nos primeiros ciclos do desenvolvimento vital (Vicente, 2009).

    Os bebês geralmente são apegados com a mãe e também com o pai durante o primeiro ano de vida, mas a maioria deles mostra uma preferência pela mãe em situações que geram estresse (Lamb, 1977). Sobre este vínculo adulto-criança, Bowlby (1969) desenvolveu a Teoria do Apego, entendendo o apego como o laço de segurança e proteção que possibilita a existência humana, pois é a partir dos cuidados externos que o ser humano encontra suporte para seu desenvolvimento. Sem a formação deste vínculo a criança poderia se distanciar excessivamente dos adultos ao explorar o mundo, se expondo a diversos riscos. Os comportamentos de apego são, portanto, complementares aos comportamentos exploratórios, pois possibilitam à criança conhecer o mundo em condições mais seguras (Gomes & Melchiori, 2012).

    De acordo com a Teoria do Apego, a criança regularmente procura contato com suas figuras de apego quando se sente insegura por alguma situação que lhe é desconhecida. Assim, o conforto da figura de apego lhe proporciona a confiança necessária para explorar melhor o ambiente. Esta figura de apego comumente é a figura materna, uma vez que é ela quem mais cuida e conforta a criança, principalmente nos anos iniciais (Gomes & Melchiori, 2012). Contudo, pesquisas destacam que os fatores contextuais também influenciam na formação dos vínculos afetivos e não apenas as características dos sujeitos envolvidos na relação. Assim, a dinâmica do apego está sujeita à ação de fatores de natureza individual, relacional e contextual (Pontes, Silva, Garotti, & Magalhães, 2007). Dessa forma, o apego, entendido como comportamentos instintivos (repertório de comportamentos do bebê: choro, sorriso, contato visual) que criam e mantêm a proximidade entre pais-filhos e que, para tanto, possuem importância para a sobrevivência, garantindo ao bebê a satisfação de suas necessidades básicas, podem variar em função de diferenças individuais, que muitas vezes possuem relações com variáveis ambientais, o que reforça o papel dos pais no desenvolvimento infantil (Ribas & Seidl-de-Moura, 2007).

    Com relação às práticas parentais, interações de qualidade entre as díades mãe-bebê e pai-bebê, principalmente nos anos iniciais, são apontadas como influências significativas no estabelecimento de vínculos afetivos e, consequentemente, no estabelecimento de um apego seguro na criança. A sensibilidade ou a responsividade parental são características dos cuidadores que estão associadas a um maior apego seguro em bebês. Pais responsivos são aqueles sensíveis aos sinais de seus filhos e que adéquam às suas características em conformidade com o contexto em que vivem. São capazes de entender e compreender a vida dos filhos e o que é importante para o bem-estar dos mesmos. Por exemplo, são aqueles pais capazes de interpretar o choro do bebê e de fornecer o conforto necessário, de acordo com a real necessidade (fome, desconforto físico, falta de higiene, entre outros), sempre respondendo ou atendendo seus bebês com sintonia, consistência e afeto (Ribas & Seidl-de-Moura, 2007).

    No que se refere à figura materna, os benefícios de seu vínculo afetivo com os filhos são reconhecidos e valorizados de longa data, de modo que diversas pesquisas se dedicaram a entender as repercussões de sua interação com a criança desde a gestação. No entanto, é somente a partir da década de 1970 que se intensifica o interesse pela investigação da natureza e da extensão das interações pai-filhos, para, a partir de seu entendimento, compará-las às interações mãe-filhos (Lamb, 1997).

    O interesse pela figura paterna ganha destaque em função das transformações ocorridas nas últimas décadas na dinâmica e na configuração das famílias, impulsionadas, em grande parte, pelo incremento da participação feminina no mercado de trabalho (Jablonski, 2010; Perucchi & Beirão, 2007). A ampliação do espectro de responsabilidades da mãe, para além de sua dedicação exclusiva à família, despertou a demanda de que o pai passasse a assumir um papel mais ativo na educação dos filhos e a se envolver em distintos tipos de interação com a criança (Saraff & Srivastava, 2009; Silva & Piccinini, 2007; Wagner et al., 2005).

    O reconhecimento da contribuição do pai para o desenvolvimento infantil implica uma despolarização do modelo materno caracterizado pela sensibilidade, comunicação e afeto, para a inclusão de características mais associadas ao sexo masculino ou paterno, como as relacionadas à ação e à busca da autonomia. Paquette (2004a) sugere que a figura paterna exerce uma função de ativação específica com os filhos na exploração do mundo externo, o que lhe confere um importante papel no processo de socialização da criança. Nesse sentido, o pai desempenha uma função de abertura ao mundo à criança, a qual abarca a estimulação da autonomia e do autocontrole. Tal função consiste em estimular a criança a explorar o meio colocando-a em situações nas quais ela é levada a confrontar-se com o ambiente à sua volta enquanto o pai fornece proteção, ao estabelecer limites (Paquette et al., 2009).

    A função paterna de abertura ao mundo está no cerne da Teoria da Relação de Ativação (TRA) (Paquette, 2004b), a qual pressupõe um pai ativo em interação com a criança e que a estimula a explorar o mundo externo. Tal Teoria enfoca a dimensão exploração da Teoria do Apego de Bowlby (1969), e seu objetivo é, a partir do reconhecimento da importância da figura materna para o desenvolvimento infantil, destacar o lugar da figura paterna.

    A TRA está baseada na noção de que os homens, em geral, têm uma tendência a estimular, surpreender e, momentaneamente, desestabilizar a criança (Kaplan, 1996). Eles tendem a encorajar seus filhos a correrem riscos enquanto garantem-lhes segurança por meio da imposição de limites, o que permite à criança o desenvolvimento de autonomia e autoconfiança em situações não familiares (Paquette, 2004b). Desse modo, o pai age como catalisador para a tomada de riscos, já que incentiva a criança a tomar a iniciativa, a explorar, a se aventurar, a medir um obstáculo e a ser mais ousada na presença de estranhos (Paquette et al., 2009).

    Conforme a TRA, as funções paternas e maternas são complementares e permitem à criança se desenvolver de forma típica, desenvolvendo, por exemplo, habilidades de competição no contato com o pai e habilidades de cooperação e de partilha no contato com a mãe (Paquette, 2004b). Enquanto o pai exerce o papel de ativar a autonomia e o controle na tomada de riscos para que seu filho explore ambientes físicos e sociais, a mãe, por sua vez, estabelece uma relação de apego com a criança e a influencia na resolução de dificuldades emocionais, transmitindo-lhe calma e conforto. É imprescindível ressaltar que a ideia de funções parentais específicas, que se complementam, não deve ser entendida como exclusividade (Paquette, Coyl-Shepherd & Newland, 2013), já que a mãe também pode ativar a criança enquanto o pai pode representar um referencial seguro para ela.

    Nesses termos, a TRA surge de uma forma complementar à Teoria do Apego considerando, portanto, as duas dimensões envolvidas, quais sejam, o apego e a exploração do ambiente. Entende-se que, embora tais sistemas sejam distintos, eles são complementares, interdependentes e estão positivamente associados, ou seja, quando o apego da criança com a mãe é elevado, a exploração do pai com a criança também o é, assim como o inverso (Gaumon, 2013). Além disso, esse autor argumenta que a proteção da criança é garantida pelo conforto oferecido pela mãe na relação de apego e pelos limites estabelecidos pelo pai na relação de ativação.

    O procedimento mais utilizado para avaliar a relação de apego com bebês entre 12 e 18 meses é chamado de Situação Estranha (Ainsworth, Blehar, Waters & Wall, 1978). Tal procedimento contém oito episódios estruturados, com duração de 20 minutos, que conduzem a criança a um crescimento do estresse (embora moderado) em função de uma novidade (brinquedos e local novos, além da pessoa estranha) e duas separações temporárias entre a criança e a mãe/pai.

    Esse aumento de estresse é necessário para acionar o sistema de apego, objetivando o equilíbrio entre a exploração do ambiente e o conforto com a figura de apego (Paquette, Bolté, Turcotte, Dubeau & Bouchard, 2000; Paquette & Dumont, 2013). A forma como a criança reage quando seu cuidador retorna à sala indica a qualidade do apego entre ambos, que pode ser: seguro, inseguro evitativo, inseguro resistente, ou desorganizado (Ainsworth et al., 1978).

    Embora o procedimento Situação Estranha tenha sido validado com mães, também foi usado com pais, os quais eram vistos como figura de apego secundária, sem que boas qualidades psicométricas fossem encontradas. Dessa forma, pesquisadores passaram a questionar a validade do experimento com pais que apresentam baixo envolvimento nas atividades diárias com a criança e sugeriram o uso de um método mais apropriado para acessar a relação de apego pai-criança (Grossmann, Grossmann, Kindler & Zimmermann, 2008), baseados na noção de que esta relação se desenvolve a partir de mecanismos diferentes daqueles envolvidos na relação de apego mãe-criança (Paquette & Dumont, 2008). Com o objetivo de preencher esta lacuna, Paquette e Bigras (2010) criaram a Situação de Risco.

    A Situação de Risco é um procedimento estandardizado de observação de crianças de 12 a 18 meses com duração de 20 minutos e que ocorre em um ambiente de laboratório. A criança é estimulada a assumir cada vez mais riscos a fim de que se possa avaliar o sistema de ativação, ou seja, sua capacidade de equilibrar a exploração do ambiente e a aceitação de limites impostos pelo pai. Está dividido em seis episódios estruturados em que a criança é inicialmente exposta a um risco social (uma pessoa estranha progressivamente mais intrusiva) e depois a um risco físico - (uma escada) e, finalmente, é proibida pelo pai de subir a escada. A avaliação identifica crianças subativadas (aquelas que se engajam em pequenas explorações, são passivas e isoladas frente às novidades ou permanecem próximas e obedientes aos pais), ativadas (são confiantes e cautelosas na exploração e aceitam os limites impostos pelos pais) e superativadas (são altamente sociáveis com a pessoa estranha, exploram o ambiente de forma perigosa e não aceitam os limites indicados pelos pais) (Paquette & Bigras, 2010).

    Assim como o apego mãe-criança pode ser evidenciado no experimento Situação Estranha, o apego com o pai, por meio da dimensão exploração, pode ser identificado no procedimento Situação de Risco (Paquete & Bigras, 2010). Resultados desses estudos demonstram que, enquanto a mãe desenvolve com a criança a base do conforto em situações de estresse, o pai se responsabiliza pela dimensão exploração (Dumont & Paquette, 2012; Gaumon & Paquette, 2013; Paquette & Bigras, 2010). Tais constatações levaram os estudiosos a avançar em suas compreensões e a dar mais ênfase à importância do pai para o desenvolvimento infantil (Gaumon & Paquette, 2013; Paquette, 2004a), pois evidencia-se que existe a vinculação inicial, ou seja, o apego pai-criança, já nos primeiros anos de vida, mesmo que essas interações ocorram de forma distinta nas relações pai-criança e mãe-criança (Dumont & Paquette, 2012).

    A constatação da importância da figura paterna para o desenvolvimento tem impulsionado pesquisadores a realizarem maiores e mais aprofundadas investigações, considerando tanto o envolvimento ou a interação maternos quanto o envolvimento e a interação paternos. O procedimento da Situação de Risco, originalmente proposto e validado por pesquisadores canadenses, tem sido foco de investimento e estudo de pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em convênio com pesquisadores de duas universidades de Montreal, no Canadá, a Universidade de Montreal (UdeM) e a Universidade de Quebec em Montreal (UQÀM). O objetivo do grupo de pesquisa é intensificar o conhecimento a respeito da participação e da responsabilidade paternas, principalmente no que se refere ao seu envolvimento, interação, ativação e coparentalidade.

    Além da observação prevista pela Situação de Risco, a relação de ativação também pode ser investigada, dentre outras formas, por meio do Questionário de Abertura ao Mundo, no qual o pai responde sobre a frequência com que realiza alguns comportamentos com relação à criança. Esse questionário, que permite investigar as dimensões de estimulação (ao risco e à perseverança) e disciplina, também está sendo utilizado pelos pesquisadores da UFSC para acessar o envolvimento paterno.

    Em suas pesquisas de doutorado, Bossardi (2015) e Gomes (2015), ao investigarem o envolvimento parental em famílias biparentais com 150 pais e mães de crianças de quatro a seis anos residentes em cidades do litoral catarinense, constataram que, embora a mãe ainda seja identificada como cuidadora primária, principalmente no que se refere aos cuidados básicos, o pai vem aumentando seu envolvimento em proporções significativas, com destaque para a dimensão jogos físicos, tal como apontado nos estudos que consideram a complementariedade entre as funções paternas e maternas e a mais expressiva relação da função paterna com a dimensão exploração.

    É importante ressaltar que, dentre as dimensões do envolvimento investigadas (suporte emocional, cuidados básicos, disciplina, jogos físicos, abertura ao mundo, evocações e tarefas de casa), tanto a mãe quanto o pai apresentaram-se mais envolvidos com suporte emocional, ou seja, com atividades como consolar a criança e dizer a ela que a ama. No que se refere à mãe, outra dimensão relevante foi a de cuidados básicos, enquanto o pai relatou alto envolvimento em atividades de disciplinar os filhos (Bossardi, 2015; Gomes, 2015).

    Tais resultados indicam o aumento da participação paterna no cuidado com os filhos e também no que tange às responsabilidades com as tarefas de casa, e estão em conformidade com outros estudos nacionais e também internacionais (Freitas, Silva, Coelho, Guedes, Lucena, & Costa, 2009; Lamb, 1997; Pleck, 1997; Silva & Piccinini, 2007; Vieira, Bossardi, Gomes, Bolze, Crepaldi, & Piccinini, 2014). No estudo conduzido por Gomes (2015), comparou-se os envolvimentos paterno e materno em famílias residentes em Santa Catarina (Brasil) e em Montreal (Canadá) e verificou-se que, em ambas as regiões, pais e mães mostravam-se envolvidos com seus filhos, sobretudo em atividades de suporte emocional.

    Mães residentes nas duas regiões também afirmaram alto envolvimento nos cuidados básicos da criança. Pais brasileiros relataram elevado engajamento em atividades de disciplinar os filhos enquanto pais residentes em Montreal afirmaram realizar com grande frequência jogos físicos com as crianças (Gomes, 2015). Tais achados indicam que pais e mães se envolvem de maneira distinta com seus filhos e ratificam a noção de que o envolvimento do pai, em comparação à mãe, tem variações em função da cultura (Dubeau, Devault, & Paquette, 2009; Paquette, 2004b).

    O pai vem afirmando seu papel por meio de disciplina, estimulação e incentivo à socialização da criança, fornecendo segurança e proteção, ao mesmo tempo em que encoraja os filhos a vivenciarem novas experiências com o mundo externo. Ressalta-se que pai e mãe contribuem e possuem funções diferentes na relação com as crianças e que atuam de forma complementar. Essa diferença é necessária e saudável para o desenvolvimento da criança, ao passo que encontram em suas figuras de cuidado conforto, acolhimento, carinho e incentivo para explorar o ambiente. Cabe lembrar que é importante que existam essas funções diferentes e complementares, mas que não são necessariamente sempre desempenhadas pela mesma figura.

    No estudo de Bossardi (2015) foi possível evidenciar a influência de alguns fatores que atuam como determinantes ou servem para explicar um maior ou menor envolvimento paterno, tais como a idade, a escolaridade e a personalidade paternas, a idade e o sexo da criança, as horas de trabalho fora de casa e o relacionamento conjugal. Os resultados indicaram uma influência significativa das características do pai, da criança, da jornada de trabalho e do relacionamento conjugal no sentido de aumentar ou diminuir o envolvimento paterno com os filhos.

    A respeito das características do pai, quanto maior a idade do pai, menor seu envolvimento em cuidados básicos e quanto maior a escolaridade e mais dominante a personalidade, maior o envolvimento. Altas jornadas de trabalho estiveram relacionadas negativamente com o envolvimento paterno total e ainda diminuem o envolvimento do pai em cuidados básicos, jogos físicos e tarefas de casa. No que se refere às características da criança, os resultados apontaram que com crianças com maior idade, o envolvimento total diminui e, também, quanto maior a idade, menos cuidados básicos e jogos físicos os pais realizam. Com crianças do sexo masculino os cuidados básicos são maiores e com crianças do sexo feminino é maior o envolvimento do pai com tarefas de casa. Com relação à harmonia conjugal, ou seja, os aspectos positivos do relacionamento entre pai e mãe podem contribuir para aumentar o envolvimento do pai com os filhos, atuando assim como fatores de proteção ao desenvolvimento infantil.

    Ainda no que diz respeito aos resultados da pesquisa de Bossardi (2015), as observações diretas das interações pai-criança, mãe-criança e pai-mãe-criança permitiram identificar diferenças nas formas de interagir de pais e mães com seus filhos. Em interações diádicas (pai-criança), o pai se relacionou em maiores proporções por meio da instrução, enquanto que a mãe demonstrou maior frequência em afeto positivo. Durante as interações triádicas (pai-mãe-criança) o pai, mesmo tendo uma frequência menor de interação com a criança do que a mãe, aumentou o número de comportamentos categorizados como afeto positivo, diminuindo assim os de instrução. O afeto positivo materno esteve relacionado positivamente ao afeto positivo paterno, o que leva a inferir que a presença materna ocasiona influências no número e no tipo de interações paternas. Mais estudos em relação a esta temática necessitam ser desenvolvidos, tendo em vista o aprofundamento da compreensão da influência materna no comportamento paterno.

    Desse modo, Backes (2015) investigou os fatores que interferem no envolvimento paterno em vinte pais (somente o pai) de crianças entre quatro e seis anos, por meio de uma entrevista com roteiro semiestruturado. Os participantes relataram aspectos referentes à sua personalidade, ao momento atual de vida, aos comportamentos da criança, à relação com a mãe de seus filhos e à presença de uma rede social de apoio como relevantes para seu engajamento paterno. Outro fator apontado está relacionado ao modelo que eles tinham do próprio pai, ou seja, como suas referências influenciavam sua maneira de exercer a paternidade, o que repetiam e o que procuravam fazer diferente de seus pais.

    Nesse mesmo estudo, Backes (2015) ainda relacionou o envolvimento paterno e a abertura ao mundo. Os resultados da pesquisa apontaram que quanto mais o pai punia a criança, mais disciplina impunha a ela. Da mesma forma, à medida que o participante estimulava a criança a correr riscos, ele também estabelecia a disciplina. Por fim, constatou-se que quanto mais o pai incentivava a criança a explorar o ambiente externo e vivenciar relações com o mundo extrafamiliar, mais ele realizava jogos físicos com o(a) filho(a) e mais disciplina determinava para ele(a). Esses resultados evidenciam a importância da participação do pai no desenvolvimento da criança, incentivando-a a enfrentar novos desafios e, ao mesmo tempo, fornecendo proteção, regras e limites.

    Ainda sobre esse papel paterno, diversos outros estudos sobre a relação de ativação pai-criança e o envolvimento paterno estão sendo desenvolvidos por professores e alunos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, buscando-se uma compreensão sistêmica por meio de diferentes instrumentos. Assim, essa relação do pai com a criança tem sido explorada por meio de questionários (como o Questionário de Abertura ao Mundo) e por meio de observação (como a Situação de Risco). Nesse grande projeto, participarão da pesquisa pelo menos 150 famílias biparentais heteroafetivas, com crianças de quatro ou cinco anos de idade. Esses pais e mães responderão a questionários sobre a relação do pai com a criança, o envolvimento parental, o funcionamento familiar, a coparentalidade, os comportamentos da criança, entre outros.

    Considerações finais

    Em vista do que foi apresentado e discutido nesse capítulo, destaca-se a importância da criança ter uma sólida e consistente vivência afetiva positiva durante os primeiros anos de vida. Nesse sentido, os cuidadores podem propiciar diferentes experiências de afeto e vinculação com a criança. A relação de apego e vinculação entre os pais/mães/cuidadores e as crianças deve ser cultivada e fortalecida sempre.

    Tais discussões levam tanto a comunidade científica quanto a comunidade em geral a aprimorar o entendimento acerca da importância das relações familiares, sejam elas nos anos iniciais (primeira infância) ou estendidas aos anos da segunda infância e adolescência, haja vista que terão repercussões na idade adulta. Sendo assim, o sistema familiar como um todo (conjugal, parental, fraternal e coparental) entra em destaque, bem como as relações nele produzidas e funções a serem desempenhadas em relação à realidade sociocultural em que estão inseridos. É necessário ampliar estudos e compreensões a respeito de outras formas ou configurações familiares, tal como famílias monoparentais, divorciadas com ou sem guarda compartilhada, homoafetivas e até mesmo as famílias que se encontram em processo de adoção, para melhor descrever as relações estabelecidas e suas implicações ao desenvolvimento infantil.

    Além disso, em função da complexidade dos fenômenos psicológicos envolvidos nesse processe de vinculação, há necessidade de um maior aprofundamento sobre o tema por meio de pesquisas com modelos multimétodos (ou seja, modelos que contêm com uma diversidade de instrumentos, envolvendo formas diretas e indiretas de acessar o fenômeno), que mais observações diretas sejam realizadas, e que mais pesquisas longitudinais, tão importantes para o desenvolvimento infantil, sejam desenvolvidas. Pesquisas longitudinais envolvem a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento dos mesmos sujeitos nas suas continuidades e descontinuidades, em diferentes fases ou momentos da vida, o que agregaria informações mais amplas e complexas a respeito de um mesmo fenômeno e suas variáveis a respeito de um ou mais casos específicos.

    Ressalta-se o compromisso social na divulgação dos resultados das pesquisas de forma a permitir que as informações cheguem ao conhecimento das famílias, dos serviços de saúde, das escolas e da comunidade. Dessa forma, abre-se a possibilidade de gerar reflexões e ações de promoção de saúde nas relações familiares e de prevenção de psicopatologias na infância, ampliando o conhecimento a respeito de variáveis que podem atuar como fatores de risco e de proteção ao desenvolvimento.

    Referências

    Ainsworth, M. D. S., Blehar, M. C., Waters, E., & Wall, S. (1978). Patterns of attachment: A psychological study of the strange situation. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum.

    Backes, M. S. (2015). A relação entre o envolvimento paterno e a abertura ao mundo em pais de crianças entre quatro a seis anos. 146 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

    Bossardi, C. N. (2015). Envolvimento e interações paternas com filhos de 4 a 6 anos: relações com os sistemas parental e conjugal. 376 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

    Bowlby, J. (1969). Attachment and loss: Vol. 1 – Attachment. London: Hogarth.

    Dubeau, D., Devault, A., & Paquette, D. (2009). L’engagement paternel, un concept aux multiples facettes. In D. Dubeau, A. Devault & G. Forget (Eds.), La paternité au XXI sièle (pp. 71-98). Québec, Canada: Les Presses de l’Université Laval.

    Dumont, C., & Paquette, P. (2008). L’attachement père-enfant et l’engagement paternel: deux concepts centraux pour mieux prédire le developpement de l’enfant. Revue de Psycho´education, 371, 27-46.

    Dumont, C., & Paquette, D. (2012). What about the child’s tie to the father? A new insight into fathering, father-child attachment, children’s socio-emotional development and the activation relationship theory. Early Child Development and Care, 1-17.

    Freitas, W. M. F., Silva, A. T. M. C., Coelho, E. A. C., Guedes, R. N., Lucena, K. D. T., & Costa, A. P. T. (2009). Paternidade: responsabilidade social do homem no papel de provedor. Revista de Saúde Pública, 43(1), 85-90.

    Gaumon, S. (2013). La relation d’activation père-enfant, les problèmes intériorisés et l’anxiété chez les enfants d’âge préscolaire. (Thèse de doctorat). Université de Montréal, Montreal.

    Gaumon, S., & Paquette, D. (2013). The father-child activation relationship and internalising disorders at preschool age. Early Child Development and Care, 183(3-4), 447–463.

    Gomes, L. B. (2015). Envolvimento parental, temperamento infantil e desenvolvimento social: um estudo comparativo com famílias residentes em Santa Catarian e em Montreal. 370 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

    Gomes, A. de A., & Melchiori, L. E. (2012). A teoria do apego no contexto da produção científica contemporânea. São Paulo: Cultura Acadêmica.

    Grossmann, K., Grossmann, K. E., Kindler, H, & Zimmermann, P. (2008). A wider view of attachment and exploration: the influence of mothers and fathers on the development of psychological security from infancy to young adulthood. In Handbook of Attachment, Theory, Research, and Clinical Applications, J. Cassidy and P. R. Shaver, Eds., (p. 857-879), Guildford Press, New York.

    Jablonski, B. (2010). A Divisão de Tarefas Domésticas entre Homens e Mulheres no Cotidiano do Casamento. Psicologia Ciência e Profissão, 30(2), 262-275.

    Kaplan, M.D. (1996). The role of fathers. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, 35(6), 699-700.

    Kreppner, K. (2000). The child and the family: Interdependence in developmental pathways. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 16(1), 11-22.

    Lamb, M. E. (1977). Father-infant and mother-infant interaction in the first year of life. Child Development, 48(1), 167–181.

    Lamb, M. E. (Org.). (1997). The role of the father in child development. New York: John Wiley & Sons.

    Papalia, D. E. & Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento humano.12.ed. Porto Alegre: Artmed.

    Paquette, D. (2004a). La relation père-enfant et l’ouverture au mundo. Enfance, 56, 205-225.

    Paquette, D. (2004b). Theorizing the father-child relationship: Mechanisms and developmental outcomes. Human Development, 47(4), 193–219.

    Paquette, D. (2004c). Le rôle du père dans la capacité du garçon à gérer son agressivité. Revue de psychoéducation, 33, 61-73.

    Paquette, D., & Bigras, M. (2010). The risky situation: a procedure for assessing the father-child activation relationship. Early Child Development and Care, 180, 33-50.

    Paquette, D., Eugène, M. M., Dubeau, D., & Gagnon, M. N. (2009). Les pères ont-ils une influence spécifique sur le développement des enfants? In D. Dubeau, A. Devault & G. Forget (Eds.), La paternité au XXI sièle (pp. 99-122). Québec, Canada: Les Presses de l`Université Laval.

    Paquette, D., Coyl-Shepherd, D.D, & Newland, L.A. (2013). Fathers and development: new areas for exploration. Early Child Development and Care, 183(6), 735-745.

    Paquette, D., Bolté, C., Turcotte, G., Dubeau, D., & Bouchard, C. (2000). A new typology of fathering: Defining and associated variables. Infant Child Development, 9, 213-230.

    Paquette, D., & Dumont, C. (2013). The father-child activation relationship, sex differences, and attachment disorganization in toddlerhood. Child Development Reseatch, 1-9.

    Perucchi, J., & Beirão, A. M. (2007). Novos arranjos familiares: paternidade, parentalidade e relações de gênero sob o olhar de mulheres chefes de família. Psicologia Clínica, 19(2), 57-69.

    Pleck, J.H. (1997). Paternal involvement: levels, sources and consequences. In M. Lamb. The role of the father in child development. New York: John Wiley & Sons.

    Pontes, F. A. R., Silva, S. S. C, Garotti, M., Magalhães, C. M. C. (2007). Teoria do apego: elementos para uma concepção sistêmica da vinculação humana. Aletheia (26), 67-79.

    Ribas, A. F. P., & Seidl-de-Moura, M. L. (2007). Responsividade materna: aspectos biológicos e variações culturais. Psicologia: Reflexão e Crítica, 20(3), 368-375. 

    Saraff, A., & Srivastava, H. C. (2009). Pattern and Determinants of Paternal Involvement in Childcare: An Empirical Investigation in a Metropolis of India. Population Research and Policy Review, 29(2), 249-273.

    Silva, M. R., & Piccinini, C. A. (2007). Sentimentos sobre a paternidade e o envolvimento paterno: um estudo qualitativo. Estudos de Psicologia, 24(4), 561-573.

    Vicente, C. C., Apego e Desenvolvimento (2009). In: M. L. Seidl-de-Moura, D. M. L. F. Pontes, & L. F. Pessôa (orgs). Interação Social e Desenvolvimento (pp. 87-100). Curitiba: Editora CRV.

    Vieira, M. L., Bossardi, C. N., Gomes, L. B., Bolze, S. D. A., Crepaldi, M. A., & Piccinini, C. A. (2014). Paternidade no Brasil: revisão sistemática de artigos Empíricos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 66 (2), 36-52.

    Wagner, A. Predebon, J., Mosmann, C., & Verza, F. (2005). Compartilhar Tarefas? Papéis e Funções de Pai e Mãe na Família Contemporânea. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(2), 181-186.

    A criança e a família nos primeiros anos de vida e o desenvolvimento dos laços sociais

    Maria Isabel da Silva Leme

    O capítulo tem por objetivo analisar as relações que se estabelecem entre a criança e a família na infância, e os impactos que estas terão a curto e médio prazo no estabelecimento de vínculos com familiares e pares. Os referenciais segundo o qual tais relações serão analisadas serão principalmente a Psicologia Cultural, e também, a Psicologia Cognitiva, visto que muitos dos processos psicológicos que serão aqui considerados foram bem investigados e explicados segundo as propostas das duas perspectivas. Em primeiro lugar, será analisado o estabelecimento de vínculos afetivos do bebê com os pais e irmãos. Em seguida, como essas relações estabelecidas com os familiares impactam em processos como aquisição da linguagem, teoria da mente, autoregulação e resolução de conflitos interpessoais.

    Desde o início da vida o ser humano mostra disposição em estabelecer laços afetivos e sociais, que segundo vários autores como Bruner (2002) pode ser considerada uma tendência inata, comum a toda espécie. Esta disposição deve ter se desenvolvido em virtude do seu valor adaptativo, por representar melhor oportunidade de sobrevivência para os recém-nascidos, que ao interagirem com seus cuidadores desde o início, estabeleceram vínculos afetivos com eles, garantindo assim os cuidados necessários à sua sobrevivência. As primeiras manifestações da disposição inata para interagir são a imitação precoce de expressões faciais já nos primeiros dias após o nascimento, como verificaram Meltzhoff e Decety (2003), e o sorriso em resposta à estimulação social, que pode ser observado a partir da terceira semana de vida. Vale observar que estas condutas se tornam mais frequentes e estáveis em resposta à estimulação social a partir de um mês. Segundo Bruner (2002), o ser humano é inatamente sintonizado com algumas classes de significados, que busca ativamente. Estes significados existem antes da aquisição da linguagem e constituem uma forma de representação do mundo, cuja efetivação depende da linguagem. Assim, haveria uma predisposição para sintonizar com outras pessoas, para atribuir significado à sua ação, provavelmente em razão da já mencionada extrema dependência para sobreviver do ser humano de seus cuidadores no início da vida. A comunicação com o adulto se dá no sentido de ser atendido, para fazer com que ocorram ações como alimentação, proteção, alívio de desconforto etc. Segundo Ribas e Seidl de Moura (2007), já nos primeiros meses de vida a criança mostra maior preferência por visualizar faces humanas do que outros estímulos, assim como maior atenção à voz humana do que outros sons. Também ressaltam a importância da imitação das expressões faciais de um adulto, já assinalada anteriormente, como demonstração desta atenção diferenciada. Outra habilidade pré-linguística, indicativa da tendência inata à interação social, é a manifestação de percepção do outro como separado de si, algo que se expressa na capacidade de atenção conjunta. Este processo se revela quando a criança por volta de 8 meses desvia a direção do seu olhar acompanhando a mudança que observou no do adulto, ou quando este chama sua atenção para um objeto ou evento no ambiente (Oliva, 2001).

    A aquisição da linguagem vai desempenhar um papel crucial na interação social e na constituição cultural do ser humano. Esta aquisição tem sua origem na capacidade do ser humano para lidar com significados, o que ocorre para além da exposição ao universo linguístico, requerendo prática, ou seja, uso da linguagem auxiliado pela comunidade linguística. À medida que se desenvolve e é exposto ao universo linguístico, e iniciando sua prática, o ser humano vai sendo auxiliado neste uso pela família e demais membros próximos do grupo social. Neste contexto, a criança aprende não só o que dizer, mas como, onde, quando, para quem, e em que circunstâncias. Mas, vale lembrar que antes destas conquistas, a criança já é capaz de comunicar suas intenções e desejos por meio de gestos. Neste sentido, desenvolver a linguagem é ser capaz não só de captar, mas ainda de trocar significados com o outro, habilidade que repousa, segundo Bruner (2002), nas aptidões pré-linguísticas inatas expostas acima, relacionadas à tendência herdada para interagir, para desenvolver a sociabilidade, traço herdado pelo ser humano, provavelmente pelo seu valor adaptativo. Bruner (2002) vai além, ao propor que teríamos a tendência herdada para nos tornarmos seres culturais, o que é mais complexo do que ser social e que vai modular como os laços sociais se desenvolvem como será analisado oportunamente.

    Embora Bruner (1972) tenha atribuído grande importância às predisposições para atribuir significado na constituição cultural do psiquismo, por meio da intersubjetividade, assim como pela aquisição da linguagem, também atribuiu grande importância à experiência. A aprendizagem por meio da observação é considerada por ele como extremamente importante para a transmissão da cultura. Este tipo de aprendizagem depende de dois requisitos, o primeiro seria a diferenciação do self, de tal modo que é possível modelar a própria ação através de algo observado na conduta alheia, e o segundo pré-requisito seria a construção de um padrão adequado de ação, segundo os passos que a constituem. Isso é necessário para a aquisição de novas ações e sua adaptação a outros contextos pela observação do modelo.

    Um fator que favorece esta experiência é o estabelecimento de um vinculo, no caso, não só social, mas principalmente afetivo, que vai ter impacto além de nessas esferas de afetividade e sociabilidade, também no desenvolvimento cognitivo como será analisado oportunamente. Trata-se da formação do vínculo de apego, com os pais, já no primeiro ano de vida. O primeiro objeto de apego do bebê, observável já nos primeiros meses de vida, é a mãe, a quem são dirigidos mais sorrisos e sons do que a outras pessoas. Por volta do sexto mês o bebê mostra apego à mãe resistindo a separar-se dela em algumas circunstâncias, como ser deixado com pessoa estranha. Mary Ainsworth já na década de 1960 estudou o tipo de vínculo de bebês com suas mães em uma situação que ficou conhecida como Situação Estranha de Ainsworth (Ainsworth, 1970). Esta situação permite inferir o impacto que a qualidade do vínculo formado com a mãe terá sobre o desenvolvimento psicológico, que afeta até a esfera cognitiva. Resumidamente, a situação criada por Ainsworth consiste na exposição do bebê a uma situação desconhecida na companhia da mãe e na ausência dela. Ao chegar na situação, o bebê se depara com um espaço onde estão dispostos brinquedos com os quais ele é estimulado a brincar. Transcorridos alguns minutos, uma mulher desconhecida entra no ambiente e a mãe sai, retornando após alguns minutos. Permanece por algum tempo, e sai novamente, mas desta vez o bebê é deixado sozinho. Após algum tempo, a desconhecida entra na sala e depois a mãe. Todos os comportamentos do bebê na presença e ausência da mãe, assim como diante da desconhecida são observados, registrados e analisados.

    A observação das condutas do bebê na situação estranha permitiu identificar padrões de apego semelhantes aos já propostos por Bowlby na década de 1950 (Bowlby, 1969), que são comuns em termos da afetividade demonstrada pelo bebê ao se ver separado da mãe, ao se reunir com ela após sua ausência, e ainda da segurança em afastar-se da mãe para explorar o ambiente. Foram assim identificados os seguintes padrões de apego: o apego seguro que consiste no bebê afastar-se da mãe para explorar o ambiente, guardando uma distância segura; manifestação de desagrado como choro e protesto quando ela se afasta, e demonstração de afeto e satisfação quando ela volta. Este tipo de vínculo foi verificado na maioria dos bebês investigados. Por outro lado, abrangendo cerca de um terço dos bebês, foram verificadas duas formas de apego inseguro: o evitativo e o ambivalente . O apego evitativo consiste na resistência em se deixar tocar pela mãe quando ela retorna e ausência de demonstração de desagrado quando ela se afasta. A outra forma consiste em demonstração de ambivalência quando a mãe volta depois de se retirar, procurando proximidade e distância ao mesmo tempo. Além disso, esses bebês demonstram ansiedade mesmo na presença da mãe, explorando pouco o ambiente, o que pode ter impacto negativo sobre o futuro desenvolvimento cognitivo, pois a exploração do ambiente e objetos é o principal meio para a ocorrência de aprendizagem da criança neste período da vida. Finalmente, uma última forma de apego, identificada posteriormente, é a desorganizada que consiste em aproximação da mãe por ocasião da reunião com ela, mas em distanciamento logo após o retorno e demonstração de ansiedade em outras ocasiões.

    Embora os estudos de Ainsworth (1978) tenham recebido algumas críticas em termos da situação, considerada artificial e, também, da limitação do vínculo à mãe, os padrões identificados continuam a ser considerados apropriados até hoje, alguns com denominações diferentes. É importante ressaltar que tanto características da mãe como do bebê desempenham papel no estabelecimento do vínculo, em uma relação de reciprocidade. É justamente o peso destas características pessoais que modulam o estabelecimento do vínculo que é discutido por pesquisadores no impacto posterior do apego sobre o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo. Como será analisado a seguir, crianças com vínculo de apego seguro exploram mais o ambiente, são mais confiantes, estabelecendo relações satisfatórias de amizade com pares, e também com adultos. Alguns autores vêm relação da qualidade do vínculo com a capacidade empática da criança, o que pode ter impacto até mesmo na formação de vínculos de amizade e resolução de conflitos.

    Em uma revisão das pesquisas acerca da influência da família sobre o desenvolvimento da regulação emocional em crianças e adolescentes, Morris, Steinberg, Myers e Robinson (2007) verificaram relação entre a qualidade do vínculo de apego estabelecido com a mãe e a competência social da criança na interação com pares de idade. Tal associação ocorreria em virtude do impacto da qualidade do vinculo sobre a capacidade da criança em lidar com situações desencadeadoras de emoção, ou seja, que demandam habilidade de regulação emocional. Os pesquisadores relatam ainda estudos que verificaram relação entre vínculo de apego caracterizado como seguro no primeiro ano e meio de vida e regulação emocional aos 3 e, também, aos 10 anos de idade. Oportunamente serão examinadas outras relações entre estilo de apego estabelecido com os pais e competência social, no caso, resolução de conflitos interpessoais.

    A influência da família sobre esta regulação é bastante significativa, não se limitando ao vínculo de apego estabelecido com os pais, segundo se verificou na revisão de Morris e colaboradores (2007). Um dos mecanismos por meio do qual ocorre esta influência é a modelagem, processo que acontece por meio da observação das reações dos pais e interações com eles, que assim ensinam implicitamente que emoções são aceitáveis no ambiente familiar, assim como o modo de lidar com a experiência destas emoções. Outra dimensão importante é a reação dos pais às manifestações emocionais da criança. Se os pais acolhem as manifestações emocionais da criança, aumenta a probabilidade de ela desenvolver maior capacidade de regulação emocional do que se responderem de modo negativo, rejeitando sua expressão de emoção. A reação ideal, segundo as pesquisas revisadas por Morris et al. (2007), seria reagir de modo neutro às manifestações emocionais das crianças. Também ai foi encontrada relação com a qualidade do vínculo de apego estabelecido, pois se verificou que mães cujo vínculo com a criança foi caracterizado como inseguro ou evitativo tinham maior tendência a exercer controle sobre a expressão de emoção dos filhos entre 15 e 18 meses de idade, enquanto as mães cujo vínculo foi qualificado como inseguro ambivalente tendiam a menor controle. Estes resultados explicam a associação encontrada entre vínculo de apego seguro e regulação emocional mencionada anteriormente.

    Os mesmos autores encontraram resultados indicando que os pais podem agir de modo positivo, ensinando os filhos como lidar com as emoções, como por exemplo, buscar desviar a atenção do evento que provocou a reação emocional. Deve ser lembrado, porém, que as características da criança desempenham papel importante nesta interação. As pesquisas tem verificado relação entre reatividade, considerada uma tendência inata, e dificuldade em regular as emoções negativas, com impacto considerável sobre a tendência a reagir futuramente de modo violento em conflitos (Bandeira e Hutz, 2010). Como as pesquisas sugerem, crianças muito reativas tendem a necessitar de mais habilidades de auto regulação porque experienciam níveis mais elevados de ativação emocional, e assim, tendem a se beneficiar mais de estratégias ensinadas pelos pais para esta autoregulação. Porém, tendem também a ser mais vulneráveis a reações negativas dos pais às suas manifestações de emoção ou ausência de controle (Morris et al., 2007).

    Outra fonte de influência na família, mas pouco estudada segundo Buist, Dekovic e Prinzie (2013) é a relação estabelecida com irmãos. Os autores apontam que essa lacuna deveria ser preenchida com mais pesquisas porque além de 90% da população ter irmãos, é com eles que é estabelecida uma das relações mais duradouras da vida, e com quem se despende mais tempo, até do que com os pais. Assim, não causa surpresa que seja uma das relações que mais afeta o funcionamento psicossocial. Esta influência se dá por meio da calidez da relação, ou seja afeto positivo que se estabelece e ainda, dos conflitos que ocorrem e da percepção de diferenciação pelos pais. O estabelecimento de relação de afeto positivo pode ser considerada segundo os autores um tipo de relação de apego ou vínculo afetivo. O vínculo de apego seguro com irmãos pode elevar o sentido de segurança da criança, consistindo em um fator de proteção ao desajustamento como depressão porque confere uma imagem positiva de si mesma e do mundo. Pode ainda afetar positivamente a autoregulação afetiva que, como se examinará a seguir, pode impactar positivamente até mesmo o desenvolvimento da agressividade, pela proteção que propicia.

    Coerentemente com o examinado acima, um processo que tem sido relacionado à qualidade do vinculo do apego e, que por isso, provavelmente tem relação com a aprendizagem emocional na infância e estabelecimento de vínculos afetivos é a capacidade de compreender emoções. Tal capacidade de compreensão do que se passa na mente do outro, de atribuir estados subjetivos, e até inferir disposições tem sido denominada teoria da mente. Tal capacidade permite a previsão e interpretação do comportamento dos outros (Martins, Barreto, & Castiajo,2014), favorecendo a boa adaptação do indivíduo ao convívio social e aprendizagem neste âmbito. Segundo Maluf, Deleau., Panciera, Valerio e Domingues, (2004) esta habilidade, de natureza cognitiva e social, pode ser observada em todos os grupos humanos e é resultante de práticas de culturais de criação. Desempenha importante papel no desenvolvimento social da criança e tem relação com o vínculo de apego seguro. Tal relação ocorreria segundo Martins e colaboradores (2014) em virtude da capacidade dos pais de refletirem sobre experiências mentais das crianças. Segundo as autoras, tal reflexão também pode estar associada a uma capacidade denominada meta emoção, que consiste na capacidade dos pais em refletirem sobre as próprias emoções, competência que tem significativo impacto na aquisição pela criança de competências para a compreensão e autoregulação emocionais. Tanto uma como outra vão ter impacto sobre a qualidade dos vínculos que a criança irá estabelecer com base nos modelos dados pelos pais. A autorregulação tem estreita relação com este aspecto porque a capacidade de reconhecer o próprio estado afetivo e lidar com ele ajuda a inferir e empatizar com o outro.

    Apesar da provável relação de interdependência entre aspectos de personalidade dos pais, seu estilo de vinculação e intervenção com as características da criança, a autoregulação das emoções desempenha em si importante papel na resolução de conflitos interpessoais na infância, interferindo na relação com progenitores, irmãos e pares de idade. A capacidade de controlar emoções negativas como raiva, impedindo reações impulsivas como agressão física e verbal vão influir não só na resolução imediata do conflito, mas na qualidade da relação com a família e pares de idade durante a vida.

    Antes, porém, de analisar estas repercussões, cabe esclarecer o que se entende aqui por conflito interpessoal. Trata-se do envolvimento em situações de interação social em que ocorre algum tipo de desacordo entre as partes (Leme, 2004). Este tipo de situação pode ser resolvido de modo pacífico, tanto por meio de estratégias de enfrentamento como de não enfrentamento. Esta última se caracteriza pela submissão ao outro, ou pela fuga da situação. A outra estratégia pacífica é a de enfrentamento que se caracteriza pela negociação ou conciliação de interesses. E finalmente, outra forma de enfrentar o conflito pode ser por meio de estratégias violentas, em que uma das partes tenta submeter a outra por meio de coação verbal ou física. Cabe ressaltar que a ausência de reação de uma das partes que se submete ou se esquiva da situação, embora caracterize o não enfrentamento do conflito, também pode levar a seu desfecho. Várias variáveis intervêm sobre a seleção da estratégia. A idade é uma variável importante porque a resolução do conflito é uma situação complexa, que demanda o processamento e coordenação simultânea de muitas dimensões, como a identidade do opositor, sua intenção, conformidade da ação às normas sociais, estratégias possíveis, riscos envolvidos na situação, nas reações prováveis, etc. A coordenação de tais informações para chegar a uma decisão sobre como reagir demanda, em primeiro lugar, maior capacidade de memória, que por sua vez está envolvida no maior desenvolvimento cognitivo (Ellsworth, 1994).

    O gênero dos envolvidos é outra variável importante porque os indivíduos do sexo masculino encontram muito mais tolerância para o uso da violência que as mulheres. No início da vida, meninas e meninos não diferem quanto à agressividade, mas já na pré-escola as diferenças começam a se manifestar (Otta & Souza, 1999) e resultam das práticas de socialização mais tolerantes com a violência no sexo masculino. Neste sentido, devem ser lembradas outras fontes de influência oriundas do mesmo domínio, como a cultura em que ocorre a situação de conflito. A cultura também influi na medida em que as individualistas são mais tolerantes com a resolução pelo confronto, enquanto as coletivistas valorizam a conciliação (French, Pidada, Denoa, Mc Donald & Lawton, 2005).

    Outra variável de extrema importância relacionada ao tema deste capítulo é o contexto de criação familiar. Se este contexto se caracteriza por relações violentas entre os membros, como os pais ou entre irmãos (Buist, Dekovic & Prinzie, 2013) é muito provável que a criança vá desenvolver os mesmos padrões para lidar com situações de desacordo e outras semelhantes, o que ocorre no mínimo por falta de modelos alternativos sobre como agir. Além disso, devem-se considerar as práticas de criação dos pais, especialmente as usadas para lidar com conflitos entre eles e os filhos. Já na década de 1970 (Baumrind, 1971) foram identificados três tipos de práticas que variam em função do tipo de controle exercido pelos pais e da afetividade manifestada por eles em relação aos filhos. São elas: a autoritária que consiste em alto grau de controle e pouca manifestação de afeto, a autoritativa ou democrática, que consiste em exercício de controle adequado, em virtude da explicitação dos motivos para tal, e também, pelo afeto positivo demonstrado. E finalmente, a prática permissiva que se caracteriza pela ausência de controle e pela manifestação de afeto positivo. Esta última foi diferenciada posteriormente em negligente e a indulgente. A primeira se destacaria pela ausência de controle e de manifestação de afeto, e a segunda pelo pouco controle exercido, mas com manifestação de afeto positivo.

    Baumrind, Larzelere e Owens (2010) relatam que as primeiras pesquisas dirigidas por este paradigma já verificaram que as práticas autoritativas eram as que produziam melhores resultados de conduta, como manifestação de respeito pelo outro nos conflitos e adesão aos valores parentais. Por outro lado, as práticas autoritárias e as permissivas eram as que produziram piores resultados, o que também foi verificado em outras pesquisas (Darling, Cumsille & Martinez, 2008). Tais resultados se explicam tanto pelo fornecimento de modelos de ação para os filhos que as práticas fornecem, como respeito ao outro, como também de enfrentamento construtivo das situações de interação social problemáticas como o conflito. Pesquisas posteriores verificaram que as soluções mais construtivas nos conflitos são dadas pelos filhos de pais democráticos (Baumrind et al., 2010). Por outro lado, deve ser lembrado que as práticas não são deterministicas, no sentido da ação dos pais produzir sempre os mesmos resultados nos filhos, sem influência destes últimos. Os filhos também exercem controle sobre os pais, legitimando ou não sua autoridade, como Turiel verificou já na década de 1980 (Turiel, 2008). A legitimação depende tanto do domínio a que se refere o controle exercido pelos pais como da idade dos filhos. Alguns domínios como o moral e o de segurança tendem a ser mais legitimados pelos filhos porque são voltados para o seu bem-estar e preservação da saúde e integridade física. Já os domínios que não envolvem este tipo de consequência e são associados a preferências pessoais, como vestuário, companhias de lazer, etc. não são tão legitimados, o que se acentua à medida que a idade avança. Também é necessário verificar como os filhos percebem as práticas parentais (Arim et al., 2010).

    Outra forma de influência que o vínculo de apego construído com os pais desempenha na vida das crianças é na resolução de conflitos, segundo Ben-Hari e Hirsberg (2009). Os autores verificaram que o estilo de apego, que como já analisado acima, é uma dimensão que por influir sobre o modo de funcionamento do individuo, vai afetar sua segurança em relação a si mesmo para lidar com os outros em situações de incerteza como o conflito. Lembram que Bowlby, um dos primeiros estudiosos deste vínculo, postulou que as crianças usam o apego precoce como modelos internos de

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1