Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A Ruptura
A Ruptura
A Ruptura
E-book415 páginas5 horas

A Ruptura

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Uma infeção misteriosa alastrou-se lentamente pelo mundo, ao ponto da ruptura da civilização.
Bruce Owen, um simples instrutor de condução, vê-se assim mergulhado num mundo novo e dividido, onde reinam os mais profundos instintos humanos.
Sem qualquer rumo, longe de casa e completamente alheio ao paradeiro da sua noiva, Emily, dá início a uma jornada de destino incerto e de sacrifícios inigualáveis.
Até onde o ser humano é capaz de chegar para sobreviver? Será possível reencontrar quem mais amamos quando tudo á nossa volta se desmorona? Estaremos dispostos a sucumbir ao término da sociedade?
Nesta distopia de pandemia apocalíptica, são acompanhados os primeiros dias da queda da sociedade e abordados temas de sobrevivência, reestruturação e emoção humana.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de jan. de 2024
ISBN9789895792252
A Ruptura

Relacionado a A Ruptura

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de A Ruptura

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A Ruptura - Bruno Santos

    Prólogo

    One Far Memory (Uma memória distante)

    O meu nome é Bruce Willson Owen, tenho vinte e nove anos e nasci em Richmond no estado de Virgínia, Estados Unidos da América. Ainda podia lá viver, mas já não, pois há algum tempo que de lá sai e tão brevemente não penso colocar lá os pés novamente.

    Estou aqui, sentado sobre uma caixa de papel dura há algumas horas, sozinho, num acampamento improvisado apenas pelas minhas mãos e que amanhã é provável estar desfeito novamente, uma vez que não sou pessoa de ficar muito tempo parado a viver no mesmo sítio. Os meus pés começam a querer ganhar raiz, tal é a vontade de permanecer estático na mesma posição, sem me mexer um único milímetro.

    Está a escurecer novamente e assim mais um dia vai passar. Sinceramente, já perdi a contagem do tempo e não me interessa muito em que preciso dia estamos. A civilização que conheci desapareceu e alguns dos velhos costumes foram sendo diluídos nas mentes das pessoas. Afinal, apareceram novas prioridades, muito mais importantes e urgentes de se manterem ativas: como sobreviver.

    Como disse, a minha memória dos dias que passaram foi sendo destruída aos poucos e como tal, já não sei ao certo o tempo que passou. Parece ter sido uma eternidade, uma vida completa disto, como se nunca tivesse existido algo diferente, mas podem ter sido meros meses, ou até dias. Na melhor das hipóteses, não estarei a enganar ninguém se disser que tudo deu para o torto lá para o Natal, no final de dezembro. Faltavam dois dias para a véspera dessa festividade, isso lembro-me perfeitamente, como se fosse ontem. Tinha ainda algumas aulas de condução para dar, já que trabalhava como instrutor de condução numa das maiores e mais bem vistas escolas da cidade. Nesse dia acabei por chegar tarde a casa, algumas horas depois do jantar. A minha noiva não estava lá, como era costume, para me abraçar e perguntar pelo dia, pelas coisas boas e pelas más. Eu estranhei logo esse facto.

    Jantei algo rápido e antes de ir para a cama, depois daquele dia estafante. Sei que primeiro ainda liguei a televisão para ver as notícias do dia. Não sei se isso me deixou mais alerta para a situação ou não, só sei que tudo o que me aconteceu até aqui está relacionado com aquilo que estava a dar naquele preciso momento na televisão.

    Falavam de uma morte misteriosa lá para os lados de Miami. Algo com um assaltante que levou um tiro no peito e, enquanto o levavam para a morgue, tentou atacar os paramédicos, mas foi imobilizado e tiveram de injetar-lhe algo para que morresse antes por em perigo mais alguma vida. Sei que antes de desligar a televisão com o comando remoto, apareceu logo a seguir uma outra notícia do género e eu não fiz caso. Casos macabros e situações estranhas estavam sempre a acontecer pelo país fora e também é sabido que quando aparece algo nas notícias e nos média, é normal que logo a seguir apareçam outros casos assim, como se o mundo naquele momento se tivesse lembrado de cobrir apenas histórias da mesma categoria, na maior parte das vezes, sensacionalista. Malucos, pensei eu na altura (Oh, o quão ingénuo estava a ser…). Emily ainda não tinha chegado, mas eu sabia que ela por vezes tinha de fazer horas extra à noite, por isso tentei descansar e acabei por adormecer.

    Tudo piorou nos dias seguintes. Mais supostas mortes de pessoas que logo a seguir como que voltavam à vida e tentavam atacar tudo o que era humano. Pelo menos era o pouco que se ouvia nos telejornais. A polícia fazia sempre um bom trabalho ao imobilizar as pessoas que supostamente jaziam primeiro mortas, despertando de seguida e arranjar forma de não causarem mais danos pessoais, mas o grande problema era que tais casos estavam a ocorrer com mais frequência e com progressivamente menor controlo. O Natal acabou por passar e até ao ano novo não passou dai, mas o medo aumentou e as regras para sair do domicílio também. A partir de janeiro foi o descalabro total.

    Os pivôs deixavam de dar enfase à situação, mas os casos continuavam, até em Richmond se ouviam histórias de velhotas cujo coração parava e depois acordavam inesperadamente e até de um caso em que a pessoa que tentou socorrer uma vítima de atropelamento, acabou por ser mordida no ombro, como um animal faz. Nós, a população tentámos viver em harmonia com os boatos, mas chegou a uma altura que isso deixou de ser normal. A polícia começou a cortar as ruas a meio de um dos dias nesse mês, assim do nada, e logo depois, encheram-nas de tanques militares. Bloquearam qualquer tentativa das pessoas se mexerem de onde estavam naquele momento

    Eu estava no meu carro de instrução, com o Brian e a Marie, os dois alunos de condução que estavam agora a começar as aulas. Ficamos retidos com outros alunos e professores na rua onde estava a escola e à nossa volta, apenas conseguíamos ver os militares que tentavam a todo o custo acalmar–nos. Quando perguntei a um deles o que se passava, apenas recebi como resposta que faziam parte de um programa confidencial do governo e que, como tal, apenas podiam dizer que estavam a zelar pelas nossas vidas. Parecia uma situação de segurança nacional.

    Tive de ligar à Emily com o meu telemóvel, no desespero da situação, mas as redes estavam lotadas e nem à décima tentativa tive sucesso. Não devia ser só eu a tentar contatar os meus. Só me restou acalmar os meus alunos e esperar que as autoridades resolvessem fazer algo mais que colocar–nos de quarentena ali.

    Anoiteceu depressa, mas eu nem pelas brasas passei, aquilo tudo era stressante demais para mim e como não tinha levado tabaco naquele dia, estava a ser tudo muito mais difícil.

    Por algum motivo, de madrugada, a confusão instalou-se. Primeiro, gritos, depois os militares começaram a mover-se para uma área distante, com grandes armas em punho. Ouviu-se disparos e mais alguns gritos. Alguns dos militares não voltaram mais e outros vinham a correr e voltavam a desaparecer, mas sempre com caras de desconforto e incómodo que não conseguiam mesmo esconder.

    Ao meu lado, muitas outras pessoas aproveitaram tal situação para de alguma maneira se revoltarem e pegaram nos seus carros, acelerarem a fundo e contornaram aquilo que anteriormente era o perímetro bem vigiado das forças de intervenção. Eu também não perdi tempo, afinal, tinha dois jovens de dezassete anos a meu cargo e as suas famílias contavam comigo para os levar sãos e salvos para casa novamente. Segui o último carro que vi a sair dali e fomos dar a uma estrada que não tinha qualquer força policial. Algumas luzes estavam acesas outras não, por isso era difícil guiar-me pela estrada, mesmo sendo instrutor e aquela ser a minha cidade.

    Foi a primeira vez que vi um aquilo mesmo sem entender na altura o que era, mas apercebi-me que tinha acabado de atropelar um vulto negro e volumoso, que ficou estendido no chão. Claro que na altura sai do carro e fui ver o que se tinha passado. Juro que foi um dos maiores sustos da minha vida. Assim que me aproximei, levantou a parte superior do corpo e tentou alcançar-me com a mão. Guinchou um grr do fundo da garganta e mesmo perante a noite, consegui ver que a boca daquela mulher estava completamente desfeita.

    Gritei e afastei-me. Não sabia o que era, mas sabia que não era normal e por isso fugi para o carro outra vez. Tentei não vomitar com a imagem que ainda me corria na cabeça e sabia que os alunos também o tinham visto. Nada foi dito a respeito daquilo naquele momento. Só sei que preguei a fundo, com a adrenalina a correr-me pelo corpo e só parei quando cheguei, por ordem, à casa da Marie e depois à de Brian. Em nenhuma delas havia gente, melhor dizendo, nenhuma da casa da vizinhança por onde tínhamos vindo tinha gente dentro. Até a minha casa estava vazia quando lá cheguei à procura da minha noiva.

    Os pais de Marie deixaram uma nota na porta, tinham partido para os campos a norte da cidade, quando deram a hipótese às pessoas entre manterem-se em quarentena no interior da cidade ou partir para as redondezas. Com sorte, eles tinham deixado alguma comida na casa, a pensar na filha, certamente e como tal, a bagageira do carro ficou meio cheia de suprimentos. É sempre melhor levar algo que comer quando não se sabe bem o que se está a passar, nem o tempo que se pode levar a regressar. Fosse uma guerra ou qualquer outra coisa do género, a comida não se dispensava. O Brian não se queixou quando combinei com eles que o melhor a fazer era partir dali quanto antes. Nenhum de nós sabia realmente o que se passava.

    Existia ainda uma estrada para sair que não estava trancada pelos tanques e foi essa que escolhi. Deixei de ver os outros que tinham saído da escola comigo, mas sempre pensei que eles ficariam todos bem.

    Passámos a noite no meio do nada, numa estrada onde aos poucos apareciam menos carros. Sei que depois resolvemos não sair dali, por um lado, para ver se os pais de Marie estavam por perto, assim como os de Brian, por outro, talvez apenas pelo meu sentimento egoísta de manter a esperança de reencontrar Emily, depois de lhe ter perdido o contacto no dia anterior. Nenhuma das três coisas aconteceu depois de termos passado mais uma noite no descampado. Decidi voltar para trás e ver o que se passava na cidade. Por isso parei numa encosta que sabia que tinha vista para Richmond. Arrependo-me de ter voltado atrás…

    Existiam casas a arder, movimentos de tanques por todos os lados. O chão das ruas estava ora aqui ora ali com entulho e parecia cada vez mais um autêntico campo de guerra. Podia jurar que via lá longe nas ruas, pessoas a cambalear e a andar de forma estranha. Perguntava-me porque aquilo estaria a acontecer. Ainda não sabia a resposta, mas algo mau seria (E acabou por ser).

    Foi essa a última visão que tive da minha cidade e não voltei a olhar para trás. Levei novamente os alunos para o carro, ambos assustados com tudo aquilo e voltei a ligar o carro. Sabia para onde ia agora, pois finalmente se tinha feito luz na minha cabeça.

    Aquilo que ainda não sabia era que aquela viagem mudaria a minha vida…

    Volume 1 – Forgets the Manners

    "Forget about values, forget good manners.

    Death surrounds us and the last thing you want to do is teach them something ..."

    Capítulo 1

    Personification of Death (Personificação da morte)

    Eu não esperava ficar sem combustível tão depressa, mas parece que nos últimos dias a vida não está a dar sorte nenhuma a ninguém. Agora ficámos os três ali, parados no meio da estrada deserta. Deviam apenas faltar alguns metros para encontrarmos a saída na estrada que nos levava diretamente para o primeiro aglomerado de quintas que estavam à direita.

    Era para lá que ia, pois sabia que a Emily tinha família na zona e podia muito bem ter fugido e chegado quando isto tudo começou. Saí do carro e fechei a porta. Ainda estava frio, pois ainda estávamos no inverno cerrado, mas o sol aparecia quente por cima da minha cabeça. Comecei a ir na direção da bagageira do carro, quando falei para os dois protegidos que levava.

    – Vamos lá, temos que ir a pé. Não temos outra solução…

    Comentei, quando Marie saiu pela porta traseira.

    – Onde vamos, propriamente?

    Pergunto-me, ajeitando o avolumado cabelo ruivo e ondulado. Respondi-lhe quando ainda agarrava a comida que sobrara dos últimos dias.

    – Quando acontece alguma coisa, o melhor sítio para nos refugiarmos é no campo. Eu sempre ouvi dizer isso… Tenho sogros para estas bandas, temos de por aqui ficar até realmente sabermos o que se passa.

    – Não era melhor tentar ficar mais perto de Richmond?

    Brian tinha acabado de sair do carro e colocou a mão sobre o tejadilho para se apoiar.

    – Temos mais probabilidades de encontrar alguém conhecido.

    – Nem pensar.

    Eu não falava como alguém de carácter duro ou frio, apenas sou difícil de dar volta. O que estava a pensar fazer parecia-me o certo.

    – Eu sei que querem voltar a encontrar os vossos pais, mas sem carro, demoramos uma eternidade. Tenho neste momento a vossa segurança para assegurar e juntarmo-nos a alguém é melhor que ficar por aqui sem saber o que se passa. Eles devem ter televisão na quinta, podem estar a informar as pessoas por lá.

    Ambos fizeram caras de quem não consegue arranjar uma hipótese melhor, mas que mesmo assim a ideia não lhes soa muito boa.

    – É verdade professor, não temos outra hipótese…

    Afirmou Marie aproximando-se de mim para ajudar a carregar a primeira mochila que eu coloquei com comida. Logo depois tinha outra pronta e Brian ficou com ela.

    A minha levava o resto da comida, que era pouca. Depois agarrei no telemóvel e em mais alguns objetos, como blocos, canetas, isqueiro, para o caso de necessitar e não puder voltar tão depressa ao automóvel.

    Olhei em redor para ver se via a bifurcação e podia jurar que ela estava mais à frente, certa de noventa ou cem metros de nós. Não me recordava realmente se era aquela, pois só visitara os pais de Emily duas vezes e a última tinha sido à noite, mais ou menos há um ano atrás, mas estava confiante com a minha escolha.

    – Por ali. Vamos lá.

    E começámos a caminhar lentamente pela berma da estrada, mesmo que não tivéssemos que fugir de algum carro, pois aquilo estava estranhamente deserto. Já nem sabia se queria andar por ali no exterior, sem uma viatura, mas não tínhamos escolha.

    Em menos de nada chegamos ao campo de terra batida que eu tinha visto ao longe e não pensei duas vezes em segui–lo. Tratava-se de um carreiro longo e sem fim à vista, com algumas curvas e um infindável número de árvores altas dispostas de ambos os lados do caminho. Enquanto pisava a areia do carreiro, a ouvir os meus ténis a soar no solo, Brian e Marie seguiam-me bem atrás, um de cada lado, sem dizer uma palavra.

    Ainda estava enterrado em pensamentos que me ocorriam sempre da mesma forma. Até repeti–los se tornava monótono, porque já sabia que não obtinha resposta alguma. Ao mesmo tempo sentia-me triste e abatido. Será que os meus pais estão bem? Será que Emily está bem? Onde estarão os meus amigos? Onde estarão os meus colegas de trabalho? Tudo aquilo era custoso para mim. Mas o que me intrigava mais fora o encontro com aquela mulher que sem querer atropelei em Richmond. Mesmo a pensar várias vezes no cenário e nas condições em que a vi, seria impossível ter sido eu a tê-la deixado naquele estado. Mas então o que se tinha passado com ela: apanhou uma doença? Seria aquela quarentena toda a ver com uma doença que se andava a espalhar? Não me ocorre nada plausível.

    – Olhe ali Bruce! – disse Brian, apontando para um ponto distante. Quando olhei, parecia mesmo uma pessoa a andar naquela rua, tal como nós. Podia ser a nossa ajuda.

    – Temos de alcançar aquela pessoa, pode possivelmente, dar–nos algum auxílio ou direções. – afirmei.

    – Ei! – gritei para a pessoa acenando, sem perceber se me conseguia ver a mim também ou não.

    – Ei! Aqui! Ajuda!

    Pelos vistos, se não nos tinha visto, ao menos parou.

    – Corram! – Foi o que lhes consegui dizer aos dois quando comecei a acelerar o meu próprio passo. Deu para perceber que eles vinham atrás de mim. Há algum tempo que não corria daquela forma, mas como jovem que sou, aguento-me bem e até me admiro que nenhum deles me tenha ultrapassado para lá chegar mais rápido. Acho que foi preciso eu pensar em tal, para alguns minutos depois ter Brian a passar pela minha esquerda em alta velocidade. O rapaz estava imparável.

    – Não te afastes, espera! – gritei eu, mas ele não me deu ouvidos. Logo depois Marie gritou. Eu parei e ao mesmo tempo olhei para trás. Surpreendi-me.

    Ela tinha gritado pois uma criatura vinha na nossa direção e eu, sem olhar para os lados, não me apercebi que estaria entre as árvores mais atrás. Assim que nos viu, andou na nossa direção, não rápido, mas os seus movimentos demonstravam que pretendia fazê-lo, mesmo sem os membros lhe permitirem. Coxeava de um dos pés que percebi ter carne viva à mostra. Do estômago algumas tripas escorriam para baixo e balançavam-se enquanto caminhava. A cara não era a de um humano normal. Tinha em parte a pele tirada, osso à mostra aqui ou ali, um tom de pele branca e um olhar insípido. Para além disso, uma das cavidades oculares estava vazia.

    Não sabia como reagir e por isso só tive tempo de agarrar a camisa de malha de Marie e empurrá-la para trás. Isso permitiu que ficássemos a uma distância maior daquele monstro, mas não de lhe fugir completamente.

    Não conseguia dizer nada à rapariga, continuava apenas a empurrá-la agora para a frente, já que andando mais depressa, a criatura tinha dificuldades em alcançar ao mesmo passo que o nosso. Mais à frente quase esbarramos com Brian que também tinha parado. Ainda estive para lhe perguntar o que se passava, mas ele estava atento demais e eu também fiquei alerta quando me deparei com a realidade.

    O vulto que tínhamos vistos mais atrás não era nada mais, nada menos que outro daqueles seres ensanguentados. E este também já vinha na nossa direção.

    – Mas que merda… Corram! – gritei–lhes, mostrando um caminho que deixava o carreiro que seguíamos para trás e nos colocava no solo de terra batida que pertenceria a uma das quintas. Não sabia se podiam ser mais rápidos ou não, por isso tentei ao máximo afastar–nos deles por um caminho menos próprio para andar. A lama que pisávamos tapava as nossas calças até às canelas e isso preocupou-me, pois estávamos a perder velocidade consideravelmente. Mas ao olhar a quarta vez para trás, vi que o monstro que assustara a minha aluna acabou por ficar preso na lama e caiu redondo no chão. Mas mesmo assim consegui perceber que ainda se mexia e arranhava o solo para continuar em frente.

    – Continuem! – Não os deixei parar, nem eu mesmo queria parar até me por a milhas daquilo, fosse o que fosse. Acabámos por sair daquele lamaçal pouco depois e fomos dar à entrada de uma das quintas. Todos nós respirávamos com dificuldade depois de tudo.

    – Mas que porras eram aquelas?! – perguntou-me Brian, arfando e apontando para uma direção hipotética.

    – Não faço ideia… – Não sabia mesmo como confortá-los. Nem eu sabia o que acabara de ver.

    – Aquilo estava… vivo? – perguntou inocentemente Marie. Com toda a certeza era a mais afetada pela imagem que acabara de ter da criatura. Eu tinha uma mente aberta e penso que o rapaz também não se ficava atrás. Já ela era mais sensível.

    – Claro que estava vivo, não te tentou atacar? Acham que aquilo era… um zombie ou assim?

    – Mais uma vez não te posso confirmar nada, mas humanos é que não eram. Algo se passou por aqui… – Estava estupefacto com tudo aquilo. Um zombie? Não, isso são histórias, é impossível. – Se querem saber, parece-me muito idêntico à que sem querer atropelei em Richmond.

    – Será que eles não continuam a seguir–nos? – insistiu ela, olhando em redor. Estávamos no caminho da entrada de uma das quintas, sujos até às canelas. – Quer dizer, pareciam muito interessados em nós.

    – Não sabemos quantos mais andam por aí e eu espero que não seja mais nenhum, sinceramente. Vamos entrar nesta propriedade aqui à frente e tentar encontrar ajuda a sério. Pelos vistos não nos podemos iludir com vultos ao longe, só chamem à atenção quando tiverem a certeza não vamos ser surpreendidos por mais daqueles monstros com tripas.

    A cancela de entrada estava apenas encostada e logo que a empurrei, permitiu que nós os três entrássemos. Olhei em redor, assim como Brian e Marie fizeram, porque não queríamos ser novamente apanhados de surpresa.

    Estava tudo calmo demais, não se conseguia ouvir ninguém. Do nosso lado esquerdo estavam dois carros velhos estacionados lado a lado com um trator vermelho. À direita, as colheitas que ainda estavam a rebentar do solo e mais dia menos dia daria comida, mas acredito que se continuar sem alguém que cuide delas, será um desperdício.

    À nossa frente estava uma casa branca gigante e portadas verdes, um telhado alto que aparentava dar teto a um edifício de pelo menos dois andares. Não estava ninguém ali, não à nossa vista pelo menos.

    – É aqui? – sussurrou o jovem, relembrando-se que eu tinha vindo aqui à procura dos meus futuros sogros.

    – Não, quando começámos a correr eu perdi a orientação e olha que ela não era muita já por si... – sussurrei, apontando depois para a porta de entrada da casa. – Vamos ver se tem alguém ali primeiro. Podem dar–nos algumas informações.

    Em passos bastante lentos, nós os três começámos a pisar o solo de areia e a avançar cuidadosamente para a varanda que levava ao hall. Subimos os três degraus e eu coloquei-me à frente para bater à porta. Como era normal, existiam sempre no campo duas portas seguidas na entrada, uma de rede, para proteger da entrada de insetos e logo depois uma das normais, sendo aquela de madeira branca.

    Como não existia campainha, dei três toques suaves e esperei que alguém atendesse. Passaram uns bons quatro minutos sem qualquer tipo de resposta. Brian e Marie aproximaram-se quando eu voltei a bater mais duas vezes. Ia acabar por desistir e pensar em outra coisa, quando uma voz masculina nos intercetou.

    – Que fazem na minha propriedade?! – gritou o rapaz que apareceu atrás de nós e do qual não tínhamos sentido a presença á minutos atrás. Teria pouco mais de vinte anos e segurava uma espingarda velha nas mãos. Parecia ter pouca habilidade com ela, já que lhe ia escorregando das mãos de vez em quando. Levantei ambas as mãos e os dois alunos também o fizeram, como que em sinal de paz. Não queríamos arranjar qualquer problema.

    – Calma, nós viemos em paz…

    – Como assim em paz?! Quem são vocês? – Avançou um pouco mais e levantou a espingarda, desta vez apenas apontada para o meu peito. – Este é o último aviso, saiam daqui!

    – Resfria a cabeça Aaron, eles não são perigo nenhum. – Um novo sujeito apareceu. Era mais velho que o primeiro e talvez rondasse os trinta anos. Enquanto o primeiro rapaz era loiro, aquele tinha o cabelo bem negro.

    – Peço desculpa pelo comportamento do meu irmão. – Tirou-lhe a arma das mãos e avançou para nós. – Com tudo o que se está a passar é normal ele se comportar assim, mas volto a pedir desculpas por vos ter apontado uma arma. – A sua resposta intrigou-me ao falar de últimos acontecimentos. Talvez tivesse as respostas que eu tanto ansiava.

    – Desde que essa arma não dispare, acho que podemos aceitar as desculpas. – Marie ainda não acreditava que estava perante uma arma. Talvez nunca tivesse ido à caça como eu. Brian já era diferente, pois parecia mais difícil de perceber o que realmente pensava. – Bruce Owen. – Lancei a mão para o cumprimentar e ele aceitou-a num aperto de mão. – Estes são o Brian e a Marie.

    – Sou Larry Jackson e aquele ali é o meu irmão mais novo, Aaron. – Apontou para ele mais atrás. Ainda tinha cara de poucos amigos.

    – Larry, falou em acontecimentos recentes. Posso saber o que são?

    – De onde vocês são? – Parecia estupefacto.

    – Viemos há dois dias de Richmond.

    – Richmond?! Uau, é de admirar que ainda não saibam nada. – Avançou para a porta e abriu-a. – Venham, entrem, são bem–vindos. Posso oferecer-vos alguma coisa e ao mesmo tempo ajudar-vos a perceber um pouco mais do ocorrido… Têm muito com o que se atualizar.

    Capítulo 2

    Jackson´s Secret (O segredo dos Jacksons)

    Deram–nos lugares sentados numa longa mesa redonda que dispunham na sala de jantar. E posso dizer que é madeira da boa. A casa era espaçosa, como seria de esperar numa grande quinta, o que era pior era o cheiro a mofo e a velho que se fazia sentir, também muito típico daquelas zonas. Não queria parecer indelicado por isso, gradualmente, fui-me acostumando e não comentei tal facto, nem com os meus alunos. Larry trouxe, com a ajuda do irmão Aaron, algum queijo e pão. Ainda lhes tentei dizer que trazíamos alguma comida connosco dentro das mochilas (que estavam agora pousadas à entrada), mas não nos deram ouvidos. O irmão mais novo dos Jacksons desapareceu pelo interior da casa e Larry sentou-se à nossa frente.

    – Quer dizer que não sabem mesmo nada do que se passa? – Voltou a lançar a pergunta no ar para nós, cruzando os braços na mesa. Parei de comer e comecei a dialogar com ele.

    – Não. Sei que as tropas americanas começaram a cercar as ruas, as pessoas desapareceram das suas casas. Nós tivemos sorte em escapar do perímetro de segurança, como outros tantos fizeram, mas entretanto cada um seguiu o seu caminho e temos estado nos últimos dias apenas os três. Tenho andado à procura dos pais deles os dois, mais nada.

    – Pois, compreendo, mas acredito que isso seja difícil… – Começou ele a falar, ajeitando o cabelo para trás. – As coisas aconteceram depressa e nem eu sei bem como tudo se passou, mas estamos perante algo que temos que tentar compreender e aceitar, mesmo que não pareça verdade. Digo que tiveram muita sorte de ainda conseguirem sair vivos da cidade, o governo dizia que era o melhor local, no interior das fronteiras do aglomerado de pessoas, seguras pelo exército, mas as coisas tornaram-se ainda piores por lá, muito mais que nas redondezas e nos campos. Quem escapou, escapou, mas quem lá permaneceu tornou-se sem dúvidas um daqueles monstros que agora andam a rondar as quintas e quem sabe o resto do mundo. Um autêntico cenário de guerra.

    – Está a falar daqueles… monstros que nos tentaram atacar há pouco tempo? Cheios de tripas e sangue?! É isso?

    – Presumo que falamos do mesmo Bruce. Para mim são nada mais, nada menos, que zombies.

    – E como é possível uma coisa assim acontecer?

    – Sei lá. Estamos numa quinta, não num laboratório de cientistas. – Riu-se nervosamente, coçando por alguns minutos a parte anterior da nuca. – O que sei é que a eletricidade acabou á dias, a água vem tão fraca que nem para um banho dá e a televisão parou as emissões certamente no mesmo dia em que fugiram de Richmond. Parece que a epidemia se está a espalhar pelo mundo. As pessoas morrem infetadas por algo desconhecido e voltam como aqueles seres.

    – Isso é… terrível…. – Não podia acreditar que tal estivesse a acontecer, pois ainda me parecia uma história retirada de um livro qualquer, um filme ou um jogo, com a única diferença daquela se estar mesmo a passar na realidade. Mas o nosso encontro momentos atrás com aquelas duas criaturas confirmava a história de Larry. – E não existe uma cura?

    – Não sou a melhor pessoa para te dizer isso. Pouco sei… Ainda consegui vir para… para a minha casa de infância antes de tudo piorar em Richmond. Trouxe o meu tio e o meu irmãozinho. Acho que vamos aqui permanecer até sabermos mais algo, até que se descubra a explicação para tudo isto. Se quiserem podem ficar connosco… Mas têm de nos ajudar na quinta. As plantações estão a morrer e já não podemos contar com os supermercados nem com a boa vontade dos vizinhos…

    – Podes contar connosco. Juntos, será mais fácil permanecermos bem nesta adversidade.

    – Concordo.

    – E estaremos a salvo daquelas coisas aqui? – Brian tinha acabado de petiscar e estava bem atento à nossa conversa.

    – A minha quinta está cercada por campos ainda em estado de lamaçal. Eles ficam presos por lá antes de chegarem à entrada. A estrada até cá é bastante fina e quase custa a passar um carro. Burros como eu os tenho visto, não conseguem andar a direito até nós. E se o fizerem, conseguimos acabar com eles com apenas um tiro.

    – Podíamos construir muros ou assim. Tornaria tudo muito mais fácil…

    – Não. – Foi uma resposta seca aquela que ele me deu. – Não quero que nada seja modificado por aqui. Se querem ficar, têm de seguir o que já está estipulado. – Ficámos os três a olhar para Larry, não receosos, mas num momento de silêncio constrangedor. – Sem ofensa, Bruce.

    – Claro, compreendo. – Por acaso não compreendia mesmo. Pensei naquilo como algo importante e uma das primeiras linhas de defesa contra o desconhecido. Mas não quero entrar em conflito com as primeiras pessoas que nos ajudam.

    ***

    Fui até ao alpendre. Ainda tinham passado poucas horas do nascer

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1