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Filosofia da ciência: origens e evolução: é a ciência, de fato, um projeto humano racional?
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Filosofia da ciência: origens e evolução: é a ciência, de fato, um projeto humano racional?
E-book289 páginas3 horas

Filosofia da ciência: origens e evolução: é a ciência, de fato, um projeto humano racional?

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Sobre este e-book

O livro consiste, fundamentalmente, numa descrição histórica da filosofia da ciência. À diferença de outras obras correlatas já publicadas, as quais costumam abarcar um período cuja origem se dá ao final do século XIX/início do século XX, este livro compreende um intervalo de tempo que se estende desde a Grécia Clássica até o ocaso do século XX. Tal diferenciação é fruto da compreensão de que temas típicos de filosofia da ciência já eram abordados por pensadores situados no período mencionado. Ao lado dos demais tópicos característicos da área em questão, especial ênfase é colocada na questão da racionalidade do processo científico, cujas bases parecem querer ruir a partir da segunda metade do século XX.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jan. de 2024
ISBN9786527017554
Filosofia da ciência: origens e evolução: é a ciência, de fato, um projeto humano racional?

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    Filosofia da ciência - Silvio Calafati Moyses

    1 - Introdução

    Ao longo de sua existência, o homem construiu o que se pode chamar de formas de aproximação com o mundo, ou, mais comumente, formas simbólicas, tais como o mito, a religião, a linguagem e a ciência, atividades que, longe de coexistirem em paralelo, muitas vezes se interseccionaram, influenciando-se mutuamente. Se parece claro que algumas delas, em particular a religião e a arte, contém elementos de irracionalidade- o que, em muitos momentos lhes foi fonte de desenvolvimento - é menos evidente que a ciência exiba tal comportamento, com tudo, à primeira vista, indicando o contrário. De imagem historicamente ambígua junto às populações, gozando ora de um prestígio que beira à reverência, ora de uma demonização (quando não simultâneos), sentimentos associados à sua intervenção no real, é possível, e mesmo pertinente, questionar se a ciência se constitui em atividade específica, onde a racionalidade – e apenas esta – lhe é inerente, bastando, portanto, para explicá-la. Esta questão constitui-se em parte dos interesses que se atribui à área do conhecimento conhecida como filosofia da ciência.

    Mais do que definir tal campo, processo não desacompanhado de certa polêmica, é conveniente explicitar os temas aos quais se dedica. Exibindo a própria ciência como objeto de estudo, a filosofia da ciência aborda questões como a fronteira entre ciência e outras abordagens do conhecimento, a problemática da escolha entre teorias cientificas concorrentes, a relação entre ciência e verdade, bem como outros temas correlatos.

    Stricto sensu, a filosofia da ciência tem sua origem associada ao período correspondente à transição entre o final do século XIX e os primeiros anos do século subsequente, já que neste período assumiu um caráter identitário, tanto do ponto de vista do objeto de estudo e do viés metodológico quanto da visibilidade social, caracterizada por cátedras universitárias, espaços próprios de pesquisa, eventos específicos e literatura especializada. É nesta fase que se destacam o empiriocriticismo do filósofo alemão Avenarius (1843-1896) e o convencionalismo do físico francês Pierre Duhem (1861-1916) e do matemático também francês Henri Poincaré (1854-1912). Quase colado ao final deste período, aparecem as expressivas transformações pelas quais passou a física, as quais atualizaram ou deram origem a muitos debates pertinentes ao campo da filosofia da ciência, em especial o impulso adicionado à questão da relação entre teorias científicas e realidade. Em certa medida, o movimento que ficou conhecido como positivismo logico captou esta atmosfera, incorporando-a a seu discurso filosófico e, estando na origem do que, em geral, se considera a filosofia da ciência. Contudo, tal descrição convive, sem contradição, com o fato de que a expressão filosofias das ciências surge ainda na década de 1830, com o físico francês André-Marie Ampere (1775-1836), expoente do eletromagnetismo em sua época e reaparece, mais adiante nas cogitações do filósofo francês Auguste Comte, o qual denominou sua doutrina de filosofia positiva, embora tenha considerado a possibilidade de a ela referir-se como filosofia das ciências¹.

    Entretanto, para avaliar a questão da gênese da filosofia da ciência deve-se dirigir o olhar pra épocas ainda mais remotas, onde o tema, ainda que não tratado na sua sistematicidade e amplitude características do século XX, esteve presente de forma incipiente e fragmentária, a partir de pensadores que, muitas vezes, abordaram aspectos específicos no interior do que viria a ser a abrangência daquele tema, tal qual tratado pelos filósofos do século XX.

    No interior desta perspectiva, pode-se recuar no tempo e associar a origem da filosofia da ciência ao Renascimento, em particular à figura de Francis Bacon (1561-1626) e, especificamente, ao seu livro Novum Organum, de 1620², no qual apresenta as bases do método indutivo, severamente criticado no século XX. Em uma perspectiva ainda mais ampla - aquela adotada nesse livro - a aurora daquele empreendimento pode ser situada ainda na Grécia Antiga, especificamente com o pensamento de Parmênides de Eleia, filósofo pré-socrático que viveu entre os séculos VI a. C e V a. C., mas, fundamentalmente, localizada no denominado período clássico grego, em particular com as figuras de Platão (428-/427 a.C. – 348-347 a. C) e, em especial, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), este último fazendo contribuições significativas, por exemplo, no método indutivo-dedutivo e na lógica em geral³.

    É a adoção dessa perspectiva histórica ampla a responsável pela descrição, realizada nesse livro, das contribuições que autores de diferentes épocas impuseram se não à filosofia da ciência concebida como projeto novecentista, pelo menos a aspectos a ela relacionados que, no mínimo, serviram como embriões daquilo que viria a versar os temas da referida disciplina, a maioria dos quais objeto de intensa polêmica, como em parte revela a presente obra.

    Naturalmente, a cada um dos marcos históricos assinalados associa-se um estágio da ciência. No citado período grego, esta é ainda rudimentar, confundindo-se com a própria filosofia no seu caráter especulativo, mas contendo um viés observacional. Carece, contudo, do que, mais adiante, constituir-se-á na elaboração de experimentos controlados com o objetivo de extrair da natureza as respostas sobre sua própria dinâmica. É a fase da ciência antiga, a qual pode dar-se o epíteto de pré ciência, para emprestar uma expressão cara ao filósofo e físico estadunidense Thomas Kuhn (1922-1996).

    Já No Renascimento, Francis Bacon foi contemporâneo e agente (ao lado de tantos outros) da denominada Revolução Científica, a qual, iniciada no século XVI e prolongada até meados do século XVIII, teria justamente como um de seus pilares a experimentação, ausente no período clássico grego e até então, aliada à matematização, um viés introduzido por Galileu. O que podemos denominar, grosso modo, de terceiro período da filosofia da ciência, o qual apresenta-se ainda em andamento, é inaugurado quase no ocaso do século XIX, pouco antes, portanto, da emergência do positivismo lógico, também denominado empirismo lógico, sendo que o Círculo de Viena, expressão mais formalizada para os encontros dos empiristas lógicos, se desenvolve paralelamente à estruturação da física moderna, em particular da mecânica quântica, cujos cânones centrais se estabeleceram até aproximadamente 1930. A propósito, tal área da física, muito pelo fato de desafiar o senso comum, introduzindo temas cuja intepretação diferencia-se substancialmente daquela oriunda dos experimentos à escala não microscópica, renovou a agenda da filosofia da ciência, nela reintroduzindo temas como realismo, instrumentalismo e probabilismo, os quais, à luz da nova teoria física adquiriram novo estatuto. Não é por acaso que o século XX verá destacados filósofos da ciência dedicarem-se àquela área da ciência⁴,⁵.

    Assim, de forma bastante geral, a filosofia da ciência perpassa a história e emerge no primeiro quartel do século XXI, abordando temas como fundamentos da ciência, método científico, elaboração dos conceitos científicos, natureza dos argumentos empregados para se atingir as conclusões, implicações da ciência para a sociedade, influência desta (particularmente da chamada comunidade científica) na gênese e evolução da ciência, confiabilidade da ciência, seus limites, fronteira entre ciência e não ciência (o chamado problema da demarcação), relação entre modelo científico e realidade, entre outros assuntos correlatos.


    1 Nouvel, P. Filosofia das Ciências. Campinas: Papirus, p. 135, 2013.

    2 Novum Organum. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, p. p. 27-218, 1997.

    3 Losee, J. Introdução Histórica à filosofia da ciência. São Paulo: Itatiaia; EDUSP, P. P. 15-26, 1979.

    4 Popper, K. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, p. 237-270, 2004.

    5 Feyerabend, P. Problemas da Microfísica. In: Filosofia da Ciência. Morgenbesser, S. (org.). São Paulo: Cultrix, p. p. 247- 258, 1979.

    2 - A Contribuição Grega

    Épossível dizer que, para limitar a discussão ao ocidente, a Antiguidade, através das civilizações do Egito e da Mesopotâmia, deixou um legado que, se não propriamente científico, trouxe à tona alguns elementos que, mais tarde, foram incorporados àquilo que se chamou de filosofia natural, termo que antecedeu a palavra ciência ⁶. Ainda na Antiguidade, é principalmente na Grécia Antiga que um pensamento racional se impôs, contrapondo-se ao mito, largamente empregado na cosmogonia daquele país. Contudo, apesar desse salto, às vezes denominado milagre grego, considera-se, de maneira quase generalizada, que a ciência registrada nesse período histórico, carece de um método científico mais refinado, em particular que incorpore a experimentação, recebendo, desta forma o qualificativo de antiga (em contraposição à ciência moderna, cujos cânones estabelecer-se-iam em torno do século XVII). É desta fase, ainda no período pré-socrático, que também corresponde o despertar da filosofia ocidental, período no qual os pensadores, denominados filósofos naturais, buscavam o que em grego denomina-se arché, ou seja, o elemento que dá origem à multiplicidade que se observa no mundo, e subjaz a todas as manifestações deste. Para Tales de Mileto (624 a.C-546 a.C.), pioneiro entre os pré-socráticos, tal princípio fundamental seria a água. A este seguir-se-iam vários outros pensadores que apontavam outros elementos como princípio de tudo, alguns inclusive, como Empédocles de Agrigento, rompendo com o monismo inicial e apontando mais de uma causa como princípio fundamental.

    Assim como a ciência, também o método científico, capítulo importante da filosofia da ciência, tem uma história. Desta forma, se é possível falar de uma ciência grega, também pode-se falar do método científico a ela associado. No caso grego, situa-se a aurora de tal empreendimento. Ainda incipiente, o método grego, visto de uma perspectiva, consiste no emprego da razão associada à pura e simples observação (a olho nu) da natureza. Naturalmente, pelo menos até Aristóteles, tal metodologia não era explicitada pelos gregos, mas era, de fato, a maneira pela qual eles produziam a chamada ciência antiga. Apesar disso, já entre os pré-socráticos é possível discernir uma preocupação com a obtenção do saber. Assim, em contraposição ao pensamento de Heráclito de Éfeso (540 a.C.- 470 a.C.), para quem conhecimentos verdadeiros e seguros só podem advir dos sentidos, Parmênides de Eleia (530 a.C—460 a.C.) estabeleceria a diferença entre o que denominou de via da verdade (aletheia) e via da opinião (doxa). Enquanto a primeira, tida como verdadeira, é pautada pelo conhecimento através do emprego da razão, a via da opinião é falsa, já que fundamenta-se na percepção sensorial e sua falibilidade. Tal polêmica entre os dois referidos filósofos estender-se-ia ao longo da história da filosofia, permanecendo viva, sob outra roupagem, até os dias atuais.

    De certa forma herdeiro de Parmênides, o filósofo Platão (427 a.C.-347 a.C.) colocaria o que foi, possivelmente, a primeira questão epistemológica na história da filosofia ocidental. Adepto do dualismo epistemológico, contrapôs doxa (opinião) e episteme (ciência). Enquanto a primeira era empírica (limitada pelas percepções sensoriais) e também pelas paixões (promovendo, desta maneira, apenas um conhecimento aparente e superficial), características típicas da pessoa comum, não educada para a ciência, a segunda, o verdadeiro conhecimento, era atributo do filósofo, o qual se familiarizaria com o chamado mundo das formas ou das ideias, entidades abstratas, mas possuidoras de maior grau de realidade do que o mundo sensível, do qual são independentes. A perfeição do conhecimento verdadeiro (ou seja, das formas), só acessado pela razão, tornava-o imutável, portanto com validade eterna, diferenciando-se, desta maneira, do mundo das aparências em contínua transformação. Na medida em que a relação doxa/episteme exprime a questão da fronteira entre o não científico e o científico, respectivamente, ela constitui-se em uma forma, ainda simplista, de responder ao chamado problema da demarcação, com antecipação de mais de dois mil anos, entre o que é o que não é científico, problema este levantado pela filosofia da ciência do século XX.

    Para Platão, tal qual esboçado em seu diálogo Fédon, os sentidos consistem em verdadeiras obstruções para a alma no seu intento de atingir o verdadeiro conhecimento, o qual só será conquistado a partir do afastamento daquela ou de sua libertação do próprio corpo. O filósofo sustenta, ainda, que as coisas sensíveis são cópias imperfeitas das ideias às quais a alma teve acesso no mundo das formas. Sendo assim, quando a alma reencarna em um corpo, carrega as memórias daquele mundo e o aprendizado nada mais é que recordação. Tal método consiste naquilo que na filosofia platônica ficou conhecido como anamnese, isto é, a passagem da consciência a partir da experiência sensível ao mundo das formas (ou das ideias).

    A dicotomia entre doxa e episteme, estabelecida no livro V da República⁷ de Platão pode ser relacionada à chamada alegoria da caverna mencionada no capítulo VII da mesma obra⁸. Tal alegoria (também conhecida como mito) descreve a existência de prisioneiros a viver, desde o nascimento, em uma caverna, dispostos de tal forma a permanecerem de costas para a entrada. Nessa condição, são incapazes de enxergar a fogueira atrás deles, bem como o muro colocado entre ela e eles. Atrás do muro estão pessoas a carregar objetos variados que se colocam acima dele e, portanto projetam sombras na parede em frente aos prisioneiros. Assim, do ponto de vista desses, as sombras são a única coisa que existe, já que é o que veem. Se um prisioneiro for solto, enxergará não só os objetos transportados como também aquilo que for externo à caverna. Contudo, retornando para junto dos demais prisioneiros, encontrará fortes resistências destes ao indicar-lhes que o que estão vendo é uma ilusão. O interior da caverna é o território da doxa, onde a percepção se dá através dos sentidos, sendo limitadas, portanto, por estes. Apenas quando alguns prisioneiros atingem o exterior da caverna liberta-se o pensamento puro, racional e o mundo das ideias, no qual atua a episteme.

    A dialética (do grego dialektké) platônica é um método de discussão de pontos de vista contrários que parte do senso comum, o qual deve ser superado, em função de sua fragilidade e inconsistência e dos preconceitos que carrega, em benefício da verdade (mundo das formas). A superação do senso comum se apoia no criticismo e na reflexão aplicados sobre o debate das posições contrárias, visando superá-las. Trata-se de uma crítica contínua, a qual caminha gerando uma síntese entre os opostos, que por sua vez será também criticada, processo que, gradualmente, desembocará nas verdades do mundo das ideias.

    Convém observar que a dialética platônica é uma espécie de sucedânea da chamada maiêutica socrática, um método desenvolvido pelo filósofo grego Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) no qual o conhecimento, considerado potencial no ser humano, é deste extraído a partir de questionamentos que visam, em primeiro lugar, conduzir a pessoa a duvidar de seu próprio saber, apontando as contradições presentes em seu discurso para então, num segundo momento, levá-la a explorar, por conta própria, um novo caminho, caracterizado pela elaboração de uma nova conceituação e visão sobre um determinado assunto.

    Em uma outra frente, mais dirigida à ciência, Platão preocupou-se com os movimentos dos planetas. Desde que os demais planetas situam-se bem mais próximos da Terra do que as estrelas, seus movimentos, ao longo do ano parecem dar-se contra o plano de fundo das estrelas fixas. Via de regra, tal mobilidade ocorre de oeste para leste (em contraposição ao movimento diurno que os astros parecem realizar de leste para oeste, como reflexo da rotação terrestre, sempre de oeste para leste), contudo, em certas épocas, o movimento se inverte para um sentido Leste-Oeste. Tal condição é denominada de movimento retrógrado dos planetas (a palavra planeta deriva do grego errante) e pode permanecer vários meses – o tempo certo dependendo de cada astro- até diminuir sua velocidade e reverter a direção para o sentido original, dito direto ou progressivo.

    O movimento observável de um dado planeta é fruto da relação entre seu movimento em torno do Sol e o movimento da Terra em torno do mesmo astro. Isto é de fácil compreensão quando admite-se um sistema heliocêntrico, tal qual o que acompanhou a Revolução Copernicana do século XVI e que já tinha antecedentes em Aristarco de Samus (310 a.C.-230 a.C.) e no modelo de Heráclides do Ponto (390 a.C.-310 a.C.) embora neste último, apenas alguns planetas girassem em torno do Sol. Contudo, à época de Platão, o paradigma amplamente dominante era de uma Terra estacionária, orbitando em torno da qual estavam os demais planetas e o Sol – o chamado sistema geocêntrico – e, em tal condição, tornava-se extremamente complicado explicar o movimento observado dos planetas, incluindo o retrógrado, também chamado movimento de laçada.

    Adepto ao que se pode chamar de dogma do círculo, a ideia fixa de que eram circulares e uniformes as trajetórias planetárias, (o que só foi rompido com as movimentos elípticos propostos por Kepler no século no início do século XVII), Platão se colocou a seguinte questão (para a qual não possuía resposta e dirigia aos matemáticos): quais são os movimentos circulares uniformes convenientes de serem adotados como hipóteses para os planetas, de forma a reproduzir seus movimentos observados, ditos aparentes? Esse problema ficou conhecido como salvar as aparências (a expressão é de Simplício, um neoplatonista do século VI), ou, como às vezes é referido, salvar os fenômenos). Para Platão, não era objetivo da astronomia descrever os fenômenos celestes de forma a captar suas essências, mas, sim, de construir modelos que salvassem as aparências, isto é, que conseguissem refletir os movimentos observados sem, necessariamente, serem fiéis ao que, de fato, acontecia com os planetas, às essências do seu movimento. Os modelos, assim constituídos, deveriam ser capazes de fazer previsões, tais como eclipses e posições planetárias.

    Em geral, a tarefa legada por Platão foi cumprida, refletida, em particular, no modelo de Ptolomeu (90-168) para o sistema planetário, com seus inúmeros epiciclos e outros dispositivos como os equantes e deferentes. O modelo ptolomaico foi hegemônico desde sua criação, em meados do século II até o século XVI quando o trabalho de Nicolau Copérnico (1473-1543) "De Revolutionibus Orbium Coelestium" (Das Revoluções das Esferas Celestes) no contexto da revolução copernicana iniciou o processo de mudança radical do paradigma astronômico, a partir de uma visão geocêntrica para um sistema heliocêntrico, o qual só se consolidou, de fato, com os trabalhos posteriores de Kepler (1571-1630) e, especialmente, de Galileu (1564-1642).

    A proposta platônica de salvar as aparências é, possivelmente, tese historicamente pioneira daquilo que o filósofo estadunidense John Dewey (1859-1952) chamou – e defendeu - de instrumentalismo, concepção segundo a qual as teorias são instrumentos, modelos capazes de explicar e, fundamentalmente, de prever consequências práticas, não constituindo-se, necessariamente, em uma representação de como, de fato, a realidade é. O instrumentalismo rivaliza com o realismo, seu antípoda, para o qual as teorias e modelos espelham, efetivamente, como a realidade é. Ambas as concepções constituíriam-se em uma das fontes dos principais debates em filosofia da ciência no século XX.

    A Grécia Antiga foi pioneira na concepção de ciência como busca de verdades universais, aquelas atemporais válidas para todo o universo. Conforme se depreende do esboço acima, para Platão o caminho para tal não é empírico. O filósofo defendia que a revelação da real natureza das coisas se dava pela aplicação da razão e da reflexão. Uma resposta diferente foi fornecida por Aristóteles, para o qual o conhecimento verdadeiro dar-se-ia a partir dos acontecimentos e objetos particulares percebidos via sentidos.

    Aristóteles, às vezes considerado o primeiro filósofo da ciência⁹, concebia a investigação científica como um processo de duas vias, a primeira das quais tinha origem nas observações de acontecimentos e propriedades e se estendia até os princípios gerais (ou explanatórios) e a segunda partia desses novamente em retorno às observações de origem ou a outras afirmações em relação a estas. À primeira etapa é denominada indução, enquanto a segunda é a dedução, a qual era considerada pelo filósofo a etapa mais importante da pesquisa. O esquema da figura 1 sintetiza o processo de mão dupla.

    Dessa forma, a investigação científica consiste na passagem dos fatos (1) ao conhecimento das razões para que ocorram (3), passando pelos princípios explicativos (2). Quando, a partir dos princípios explicativos, derivam-se acontecimentos ou propriedades, tem-se, efetivamente, uma explicação científica.

    O esquema de ida e volta esboçado acima seria, na era medieval denominado, pelo filósofo escolástico inglês Roberto Grosseteste (1168-1253), método da resolução e da composição, referindo-se, respectivamente, às etapas indutivas e dedutivas.

    É com este esquema, indutivo/dedutivo, que Aristóteles consegue relacionar observação e pensamento abstrato. Apesar da contribuição indutiva, a indução não constituía-se na etapa mais importante, papel que era reservado à dedução. A função primordial da primeira era produzir as premissas à segunda. De forma que não se pode dizer que a ciência aristotélica era efetivamente empírica, até porque, na etapa indutiva, era baseada em observações na natureza e não em experimentos controlados tal qual se faz hoje em dia.

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