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Obras Selecionadas: Debates e Controvérsias, III
Obras Selecionadas: Debates e Controvérsias, III
Obras Selecionadas: Debates e Controvérsias, III
E-book1.276 páginas20 horas

Obras Selecionadas: Debates e Controvérsias, III

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Sobre este e-book

O presente volume reúne nove escritos de Lutero que datam dos anos 1521 a 1545. Nos anos de 1992 e 1993, foram publicados pela Comissão Interluterana de Literatura dois volumes (volumes 3 e 4) da coleção "Martinho Lutero – Obras Selecionadas" com subtítulos "Debates e Controvérsias", constituindo-se a presente obra de uma terceira seleção de escritos polêmicos do reformador. O presente volume é apresentado em três blocos temáticos das polêmicas de Lutero. O primeiro bloco, que corresponde aos cinco primeiros escritos, está reservado a escritos polêmicos contra a "igreja papal". O segundo bloco apresenta dois textos, isto é, o sexto e o sétimo escritos, que tratam das polêmicas de Lutero contra os assim denominados "entusiastas" (Schwärmer). Finalmente o terceiro bloco apresenta os dois últimos escritos, datados de intervalo significativo de anos (de 1523 a 1543), que permite verificar uma mudança de postura de Lutero em relação aos judeus: da esperança de conversão dos judeus à fé cristã ao ceticismo, que o leva a denunciar as mentiras e as blasfêmias dos judeus. 
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de nov. de 2023
ISBN9786556000602
Obras Selecionadas: Debates e Controvérsias, III

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    Obras Selecionadas - Martinho Lutero

    Livro, Obras selecionadas - debates e controvérsias, III. Autor, Martinho Lutero. Editora Sinodal.Livro, Obras selecionadas - debates e controvérsias, III. Autor, Martinho Lutero. Editora Sinodal.

    SUMÁRIO

    Apresentação

    Introdução Geral

    Siglas e abreviaturas

    Posicionamento de Martinho Lutero sobre os votos monásticos

    – Introdução de Clóvis J. Prunzel

    Tradução: Geraldo Korndörfer

    Refutação do purgatório

    – Introdução de Ricardo W. Rieth

    Tradução: Luís M. Sander

    A missa privada e a consagração de sacerdotes

    – Introdução de Mário F. Tessmann

    Tradução: Luís M. Sander

    Contra Hans Worst

    – Introdução de Paulo W. Buss

    Tradução: Luís M. Sander

    Contra o papado romano, uma instituição do diabo

    – Introdução de Ricardo W. Rieth

    Tradução: Luís M. Sander

    Contra os profetas celestiais, acerca das imagens e do Sacramento

    – Introdução de Wilhelm Wachholz

    Tradução: Martin T. Dietz

    Se príncipes cristãos têm o dever de coibir as seitas anabatistas com punição corporal e com espada

    – Introdução de Wilhelm Wachholz

    Tradução: Martin T. Dietz

    Jesus Cristo é judeu de nascimento

    – Introdução de Claus Schwambach

    Tradução: Nélio Schneider

    Sobre os judeus e suas mentiras

    – Introdução de Claus Schwambach

    Tradução: Nélio Schneider

    Apresentação

    Comecei a estudar teologia na Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, no ano de 1995. Naquele ano, tínhamos cinco volumes da coleção Martinho Lutero – Obras Selecionadas disponíveis em português. Lembro-me de ter adquirido no primeiro ano de estudo o volume cinco, recém-publicado (1994), sobre Ética: Fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. O primeiro contato com texto do reformador foi de assombro com sua linguagem e, ao mesmo tempo, um convite a conhecê-lo mais. Em 2001, quando me formei, já eram sete os volumes publicados das Obras Selecionadas. Em 1987 foi publicada a primeira obra em língua portuguesa. Antes disso quem tinha acesso a textos do reformador eram somente pessoas que dominavam a língua alemã ou a inglesa. Ou seja, os escritos de Martin Luther (a partir de agora o menciono pelo nome Lutero) estavam disponíveis a um pequeno grupo. Lembro-me de colegas que contaram que estudaram teologia sem ter acesso aos textos de Lutero em português. Por que cito isso? Para nos darmos conta da preciosidade que são as Obras Selecionadas, das quais temos o privilégio de lançar o volume 14.

    Nestes anos, diante de tantos volumes já publicados o que sempre me angustiou foram os escritos sobre Debates e controvérsias, presentes nos volumes três (1992) e quatro (1993). Quando estava em aprovação a publicação de um novo volume sobre Debates e controvérsias, perguntei-me: Num mundo cheio de divisões, será que tal publicação tem sentido? O volume 14 será uma contribuição positiva para o entendimento da teologia do reformador?. Este questionamento era compartilhado por mais colegas da Comissão Interluterana de Literatura – CIL. Até que certo dia, numa reunião entre CIL e Comissão Editorial Obras de Lutero – CEOL, tomei coragem e questionei. Ao que o Professor Ricardo Rieth respondeu com profunda sabedoria: Nas Escrituras Sagradas também nos deparamos com textos difíceis de interpretar, e nem por isso deixamos de estudá-los. Assim também precisamos estudar Lutero e seus escritos, e não deixar de lado seus textos ‘complicados’. De minha parte, finalmente eu estava convencido. Muito obrigado, professor, pela clareza.

    Agora o volume 14 está pronto para ser lido e estudado. O nosso muito obrigado a todas as pessoas envolvidas e comprometidas: aos integrantes da CEOL, por tamanha dedicação, ao selecionar os textos e escrever as introduções; aos tradutores, por seu esmero e fidelidade; ao editor, pastor Yedo, pelas inúmeras horas dedicadas; ao revisor da língua portuguesa, professor Belmiro; aos integrantes da CIL, pelo apoio; à direção da Igreja Evangélica Luterana do Brasil – IELB e à direção da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, pelo apoio, pelo investimento e por acreditar neste projeto; ao setor editorial da Editora Sinodal pela diagramação; à Editora Concórdia e à Editora Sinodal pela dedicação e pelo investimento na impressão, no marketing e na comercialização da obra. Uma publicação é fruto do trabalho de muitas mãos. Mas, acima de tudo: obrigado ao nosso Deus, que nos permite a reflexão e o anúncio do Evangelho por meio das Obras Selecionadas.

    Os escritos de Lutero carecem de leitura atenta, sem pré-julgamentos. Peço que você, leitor, leitora, antes de ler os escritos, dê atenção às Introduções, pois serão de grande valia para situar os textos no tempo e no espaço. São valiosas contribuições para entender o reformador em seu tempo e diante das situações que viveu. Palavras grosseiras, críticas, ironias farão parte desses escritos. De fato, são textos polêmicos. É difícil julgar palavras escritas no século XVI por um homem que frequentemente era atacado por seus adversários. Mas também vemos um Lutero que mudou suas posições ao longo do tempo, o que nos convida a refletir sobre nossos posicionamentos, que, não raramente, também carecem de reforma. O que nos chama a atenção é a preocupação com o anúncio do Evangelho, de forma reta e coerente, e o sonho com uma Igreja capaz de se permitir reformar. Daí resultam também os conflitos, tão presentes em denúncias ao longo da história do povo de Deus.

    De 1987 a 2023 são 36 anos das Obras Selecionadas, envolvendo a dedicação de muitas pessoas ao longo desse tempo. Com 14 volumes da coleção disponíveis, temos um vasto conteúdo para leitura, estudo e pesquisa para o público de língua portuguesa. Que Deus permita novas publicações e novos volumes. Em nome da CIL, desejo a você abençoada leitura do volume 14 da coleção Martinho Lutero – Obras Selecionadas.

    Robson Luís Neu

    Presidente da CIL

    Gestão 2023-2024

    Introdução Geral

    A doutrina da justificação por graça mediante a fé é centro e limite na teologia de Martinho Lutero. Disso resulta que tudo aquilo que na teologia não estivesse definido e derivado desse centro seria error et venenum in theologia (erro e veneno na teologia). Para Lutero, portanto, tudo na teologia precisa se relacionar com o centro teológico e, simultaneamente, ser delimitado por esse centro. Por essa razão, a doutrina da justificação não pode ser considerada um simples tópico teológico entre outros¹.

    Lutero, contudo, foi um teólogo prático; por esse motivo também buscou traduzir a mensagem reformatória para contextos, situações, problemas específicos ao seu redor. Para o reformador, portanto, não bastava reformar a teologia, mas era necessário tirar consequências práticas para a vida da igreja, das comunidades e das pessoas. E, neste ponto, Lutero se evidenciou, não raramente, como um reformador polêmico, controverso, aguerrido. Esse é o Lutero que apresentamos neste volume de Debates e Controvérsias, III.

    Os escritos de Lutero, especialmente os escritos polêmicos, precisam ser compreendidos pelos condicionantes históricos. Diferentemente, por exemplo, da doutrina central da justificação por graça mediante a fé, não se deve omitir ou defender uma infalibilidade de todos os desdobramentos práticos de Lutero. Pelo contrário, é necessário vincular as assertivas ao tempo de sua produção. Esse é, também, o esforço dos membros da CEOL, os quais, em suas introduções a cada escrito, buscam elucidar o contexto e as vinculações históricas dos escritos do reformador.

    Neste ponto, a saber, o Lutero como teólogo prático, isto é, como um reformador da igreja, não pode ser defendido em tudo nem descartado a priori. Como os escritos selecionados para este volume evidenciam, especialmente em declarações e textos tardios de Lutero, prevalece um caráter fortemente crítico, com declarações por vezes grosseiras, ácidas, sarcásticas, irônicas e até violentas e odiosas contra seus adversários. Poder-se-ia inclusive dizer que foi dessa forma que Lutero procurou lidar com a dor resultante dos ataques também grosseiros e violentos que ele sofreu por parte de seus adversários, especialmente os papistas.

    O presente volume reúne nove escritos de Lutero que datam dos anos 1521 a 1545. Nos anos de 1992 e 1993, foram publicados pela CIL dois volumes (volumes 3 e 4) da coleção Martinho Lutero – Obras Selecionadas com subtítulos Debates e Controvérsias, constituindo-se a presente obra de uma terceira seleção de escritos polêmicos do reformador.

    O volume é apresentado em três blocos temáticos das polêmicas de Lutero. O primeiro bloco, que corresponde aos cinco primeiros escritos, está reservado a escritos polêmicos contra a igreja papal. O segundo bloco apresenta dois textos, isto é, o sexto e o sétimo escritos, que tratam das polêmicas de Lutero contra os assim denominados entusiastas (Schwärmer). Finalmente o terceiro bloco apresenta os dois últimos escritos, datados de intervalo significativo de anos (de 1523 a 1543), que permite verificar uma mudança de postura de Lutero em relação aos judeus: da esperança de conversão dos judeus à fé cristã ao ceticismo, que o leva a denunciar as mentiras e as blasfêmias dos judeus.

    O primeiro bloco, contra a igreja papal, reúne escritos de Lutero, que têm como alvo o tema da autoridade papal. Lutero questiona a autoridade papal, acusando-a de usurpar a autoridade da Bíblia ao instituir obras humanas como salvíficas. Em Posicionamento de Martinho Lutero sobre os votos monásticos (1521), o reformador denuncia as ordens do papa sobre votos monásticos, pobreza, obediência e castidade como obras humanas. Mais do que isso, o papa ensinaria a confiar nessas obras em vez de cuidar da fé das pessoas. Lutero ainda denuncia os votos monásticos como idolatria, pois repousam no egoísmo dos monges na busca pela própria salvação, e não na Palavra de Deus, que cria fé que irradia amor ao mundo.

    Em Refutação do Purgatório (1530), Lutero defende que nenhuma pessoa pode ser denunciada por não crer na existência do purgatório, uma vez que não há nenhuma fundamentação bíblica para a sua existência. Ademais, em caráter polêmico, Lutero denuncia as orações privadas pelos mortos como obras humanas com vistas à salvação de almas, as quais, supostamente, estão no estágio intermediário entre céu e inferno (purgatório), esperando pela purificação.

    O terceiro escrito, A Missa Privada e a Consagração de Sacerdotes (1533), igualmente apresenta estilo literário polêmico contra a igreja papal. O combate central de Lutero é a consagração de sacerdotes para realizarem missas privadas. De um lado, Lutero denuncia que a realização de missas privadas se constitui em estelionato, pois as comunidades são privadas da comunhão do Sacramento. Por outro lado, denuncia a obtenção de lucros pela igreja por meio da comercialização de missas privadas. Por essas razões, o papado é para ele a manifestação da governança do anticristo na igreja. Ainda assim, Lutero entende que Deus preserva a verdadeira igreja ao lado da igreja pervertida por meio das marcas da igreja: Batismo, Evangelho, absolvição, oração e outras.

    Contra Hans Worst (1541) não foi endereçado diretamente ao papa, mas ao duque Henrique, que é caracterizado como instrumento do diabo. Ainda assim, ao se referir ao duque, o papa e toda a igreja católica romana são incluídos na polêmica. Trata-se de um dos mais violentos escritos do reformador contra adversários da causa evangélica. Para Lutero existem duas igrejas: uma, verdadeira, e a outra, falsa. A igreja verdadeira é, segundo ele, constituída de santos crentes e está oculta nos corações humanos, mas manifesta em marcas, entre as quais o santo Batismo, o santo Sacramento do Altar, o ofício das chaves, o ofício da pregação e a Palavra de Deus, o Credo Apostólico, o Pai-Nosso, a honra aos governantes seculares, o matrimônio como criação e redenção divina, o sofrimento cristão e a renúncia à vingança. A despeito de todos os crimes do duque Henrique, a verdadeira igreja continuaria a persistir sob essas marcas.

    Finalmente, o bloco ainda inclui o escrito Contra o papado romano, uma instituição do diabo (1545) que denuncia o papa como anticristo devido à pompa, ao luxo, à ostentação nas cerimônias, ao nepotismo e ao comércio de bens espirituais. Para Lutero, Evangelho e papa se excluem mutuamente. A violência verbal de Lutero, não por fim, pode ser percebida ao afirmar que o papa teria se unido aos turcos e, com isso, ao diabo, para destruir o Evangelho.

    O segundo bloco apresenta dois escritos, intitulados Contra os profetas celestiais, acerca das imagens e do sacramento (1525) e Se príncipes cristãos têm o dever de coibir as seitas anabatistas com punição corporal e com espada (1536). Trata-se de dois escritos polêmicos contra os entusiastas. O primeiro escrito decorre do rompimento de Lutero com o seu até 1521 colega do movimento reformatório em Wittenberg, André Bodenstein, conhecido como Karlstadt. Após seu exílio no castelo de Wartburg, em Eisenach, Lutero havia retornado a Wittenberg. Em Wittenberg, na sua ausência, Karlstadt havia liderado um movimento iconoclasta, cuja iniciativa Lutero condenou. O resultado foi o rompimento com Karlstadt. Por isso, o tema das imagens é abordado por Lutero neste escrito, como também o tema da elevação dos elementos da Santa Ceia e da própria expulsão de Karlstadt de Wittenberg por Lutero. O segundo escrito não é propriamente de Lutero, mas somente subscrito por ele, com uma breve anotação a mão à margem do texto. Trata-se do escrito Se príncipes cristãos têm o dever de coibir as seitas anabatistas com punição corporal e com espada. Neste escrito, Lutero subscreverá posição semelhante àquela que manifestará em relação aos judeus, em 1543. O escrito trata de um parecer assinado por Martinho Lutero (1483-1546), Filipe Melanchthon (1497-1560), João Bugenhagen (1485-1558) e Caspar Cruciger (1504-1548) e enviado a Filipe de Hesse (1504-1567) no dia 5 de junho de 1536. Em sua consulta, Filipe de Hesse havia manifestado dúvida sobre a competência dos príncipes cristãos no tocante à punição em assuntos de fé. Para os reformadores, a propagação de heresias deveria ser punida pela autoridade secular com a pena de morte por não se tratar somente de fé pessoal ou de liberdade de consciência, mas de (des)ordem social. Mas também aqui se pode perceber uma mudança de posição dos reformadores, entre eles Lutero. Em 1523, Lutero escrevera em Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência² que a violência não garantia o fim da heresia, mas a fortalecia. A partir de 1530, com base no Salmo 82, Lutero concebe que não se deve somente castigar hereges rebeldes, mas também pessoas que ensinam contra um artigo essencial da fé cristã, que está fundamentado biblicamente e que é reconhecido por toda a cristandade. Os reformadores do século XVI não conheciam o conceito de tolerância religiosa moderno. Ainda assim, não poderiam ser desculpados. O pedido de perdão aos menonitas, realizado durante a 11ª Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial (FLM), em Stuttgart, Alemanha, em 22 de julho de 2010, foi testemunho da busca pela paz e tolerância.

    O terceiro bloco reúne dois escritos polêmicos de Lutero a respeito dos judeus: Jesus Cristo é judeu de nascimento (1523) e Sobre os judeus e suas mentiras (1543). Os dois escritos evidenciam uma radical mudança de posição de Lutero em relação aos judeus. No escrito de 1523, o reformador adota uma posição relativamente aberta e favorável aos judeus, e isso num ambiente de múltiplos preconceitos e discriminações em relação a eles, para uma posição francamente agressiva e de vexaminosas exortações à discriminação e à exclusão³, posição que, em geral, Lutero manteria até por volta de 1530. Em 1523, Lutero chegou a recomendar que se ensinasse o povo judeu a partir da Bíblia e que se lidasse com os judeus em espírito do amor cristão, aceitando-os em amizade. Cerca de quinze anos mais tarde, Contra os sabatarianos (1538), manifestou-se de forma já muito mais crítica frente aos judeus. E, finalmente, em 1543, o reformador, de forma peremptória, somente admitiu ainda duas alternativas para os judeus: ou se deixarem batizar, ou serem banidos e expulsos dos territórios⁴. Especialmente este último escrito seria utilizado contra os judeus – fora de contexto histórico – para legitimar ações étnico-raciais antissemitas, como as que ocorreram pelo Nacional-Socialismo na Alemanha do século XX. Neste ponto, cabe afirmar que é ilegítimo imputar a Lutero motivos racistas ou de depuração étnica, pois sua motivação foi o combate do judaísmo enquanto religião. Ainda assim, ele não pode ser simplesmente desculpado, mas, junto com Fischer, é necessário constatar que, [...] nessa área Lutero deixou de lado um dos principais critérios da Reforma: o Evangelho quer ser promovido unicamente pela palavra, não pela força⁵.

    Em diversos momentos, no decorrer dos textos publicados nesta edição, observa-se que houve correções de referências bíblicas. Isso se deve ao fato de que Lutero, em geral, cita textos bíblicos de memória e, em alguns casos, é traído por ela, confundindo as passagens. Devido a isso a referência bíblica é corrigida no texto, sendo a passagem original citada em nota de rodapé. No caso das passagens bíblicas mencionadas por Lutero no decorrer do texto, a referência encontra-se entre colchetes. Saliente-se que a menção dos versículos foi feita na Edição de Weimar (WA), pois na época em que Lutero escreveu as suas obras não se conhecia a divisão em versículos. Na citação de passagens bíblicas, quando não traduzidas, emprega-se como referência a Bíblia Sagrada, Nova Almeida Atualizada (Sociedade Bíblica do Brasil), de 2017.

    Nas páginas deste volume, entre colchetes, encontram-se os números relativos à página do texto original na WA. Nos textos originais em língua alemã aparecem substantivos escritos tanto em maiúsculo como em minúsculo. Por exemplo, na página 582, a palavra Magd (maiúsculo) e magd (minúsculo).

    Com relação às abreviaturas mais usadas neste volume, observe-se a relação de siglas e abreviaturas nas páginas 15 e 16. Os antropônimos das figuras históricas são, em geral, grafados de acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vol. IV (Histórico), organizado por H. Maia d’Oliveira. São Paulo, Lisa – Livros Irradiantes, 1970. Na maioria dos casos, porém, conserva-se o nome original.

    O projeto Martinho Lutero – Obras Selecionadas acontece sob a coordenação da Comissão Interluterana de Literatura (CIL), integrada por representantes da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), que também alavancam recursos para o custeio do projeto. Integram a CIL, na condição de membros titulares: Aline G. K. Albrecht, Éderson Wasem, Paula Naegele, Nilo Wachholz e Robson L. Neu; de membros suplentes: Ângelo Naor Elicker, Cárin Marilena Bubanz Fester, Carmen Michel Siegle e Márcio Sedinei Frank.

    O presente volume, assim como os demais desta coleção, foi preparado pela Comissão Editorial Obras de Lutero (CEOL), atualmente com a seguinte composição: Claus Schwambach, Clóvis J. Prunzel, Mário F. Tessmann, Paulo W. Buss, Ricardo W. Rieth e Wilhelm Wachholz.

    As traduções dos textos publicados neste volume 14 foram feitas por Geraldo Korndörfer, Luís M. Sander, Martin T. Dietz e Nélio Schneider, a partir do original latino e dos originais alemães da Edição de Weimar (WA).

    A publicação deste volume é patrocinada pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e por instituições parceiras da IECLB, ou seja, Martin-Luther-Bund, Vereinigte Evangelisch-Lutherische Kirche Deutschlands (VELKD) e Mission EineWelt, às quais somos imensamente gratos.

    O projeto Martinho Lutero – Obras Selecionadas conta com a importante parceria da Editora Concórdia e da Editora Sinodal.

    Wilhelm Wachholz

    Presidente da Comissão Editorial Obras de Lutero

    Yedo Brandenburg

    Editor da CIL

    WENZ, Gunther. Evangelho e escritos confessionais; a hermenêutica das confissões do luteranismo. In: WACHHOLZ, Wilhelm (org.). Evangelho, Bíblia e Escritos Confessionais; anais do II Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004. p. 51.

    Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência, em OSel 6,79-114 (veja p. 103-104).

    ALTMANN. Walter. Lutero – Defensor dos judeus ou antissemita? In: ALTMANN, Walter. Lutero e libertação. Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. 2ª ed. rev. e ampl. São Leopoldo: Sinodal; Faculdades EST, 2016, p. 305.

    KIRN, Hans-Martin. Luther und die Juden. In: BEUTEL, Albrecht. Luther Handbuch. 2ª ed. Tübingen: Mohr, 2010, p. 222-223.

    FISCHER, Joachim H. Reforma: renovação da Igreja pelo Evangelho. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006. p. 52.

    Siglas e abreviaturas

    a.C. – antes de Cristo.

    ca. = cerca.

    Cf. – Confira.

    CR – Corpus Reformatorum, C. G. Bretschneider et alii, 28 volumes. CR 6,550 significa Corpus Reformatorum, volume 6, coluna 550.

    d.C. – depois de Cristo.

    Eclo – Eclesiástico (livro bíblico apócrifo).

    Götze – GÖTZE, Alfred. Frühneuhochdeutsches Glossar. 7. ed. Berlin: Walter de Gruyter e Co., 1967.

    Grimm – GRIMM, Jacob und Wilhelm. Deutsches Wörterbuch. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1854-1971. 32 volumes.

    LC – Livro de Concórdia – As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 2021. 768 p.

    LW – Luther’s Works. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1958-1986. 55 vol. LW 25,30 significa: Luther’s Works, volume 25, página 30.

    MSL – Migne, Patrologia, Series Latina. MSL 35, 2054 significa Migne, Patrologia, Series Latina, volume 35, coluna 2054.

    n. – Nota(s).

    NAA = Bíblia Sagrada – Nova Almeida Atualizada.

    OSel – LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 1987-2017, 14 volumes. Os números a seguir referem-se ao volume, à página e às linhas, respectivamente. OSel 5,160,20 significa: Obras Selecionadas, volume 5, página 160, linha 20.

    P. ou p. – Página(s).

    PEvC – LUTERO, Martinho. Pelo Evangelho de Cristo – Obras Selecionadas de Momentos Decisivos da Reforma. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 1984. 342 p.

    s – Seguinte.

    ss – Seguintes.

    S. – São.

    Sb – Sabedoria de Salomão (livro bíblico apócrifo).

    sc. – scilicet = respectivamente.

    V. ou v. – Veja ou versículo(s).

    Vol. – Volume(s).

    WA – Weimarer Ausgabe (Edição de Weimar) das obras de Lutero, indicada nas seguintes modalidades: WA 11,371,5 significa: Edição de Weimar, volume 11, página 371, linha 5; WA 10/III,175,24 significa: Edição de Weimar, volume 10, terceira parte, página 175, linha 24; WA 55/I/1,25,12-15 significa volume 55, primeira parte, primeira divisão... WA Br – (Briefwechsel) cartas. WA Br 8,99,7, nº 3162 significa: WA cartas, volume 8, página 99, linha 7, número 3162; WA DB – (Deutsche Bibel) Bíblia alemã; WA TR – (Tischreden) conversas à mesa: WA TR 4,230, nº 4334 significa: WA conversas à mesa, volume 4, página 230, número 4334.

    Walch – Dr. Martin Luthers sämtliche Schriften (Obras completas do Dr. Martinho Lutero), editado por Dr. Joh. Georg Walch, 23 volumes, nova edição revisada, St. Louis: Concordia Publishing House, 1880-1910.

    Wander – WANDER, Karl F. W. Deutsches Sprichwörterbuch-Lexikon. Leipzig: Brockhaus, 1867-1880. Wander 1,1207,42 significa volume 1, coluna 1207, número 42.

    Posicionamento de

    Martinho Lutero

    sobre os votos monásticos

    INTRODUÇÃO

    Clóvis Jair Prunzel

    Estamos no ano de 1521. Lutero, protegido no Castelo de Warburgo após o Édito de Worms, tem tempo para ampliar suas propostas lançadas a público no ano de 1520. Entre os textos publicados naquele ano, Lutero aborda o assunto dos votos monásticos em À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão¹. A preocupação de Lutero no escrito é muito simples. Ele escreve:

    Deve-se cuidar muito mais daquilo que é necessário para a salvação do povo comum que daquilo que determinaram São Francisco, São Domingos, Santo Agostinho ou qualquer pessoa, principalmente porque acabou não resultando naquilo que propuseram².

    Dentro dessas ordens, Lutero também detecta facções e a criação de mais ordens pelo papa. Por isso ele escreve:

    [...] dever-se-ia mandá-lo abolir algumas e reduzir o seu número [ordens], visto que a fé em Cristo, que é o único principal bem e subsiste independentemente de qualquer ordem, corre grande perigo, pois as pessoas podem ser facilmente seduzidas, por tantas e tão diversas obras e formas, a viver confiadas em tais obras e formas mais do que a cuidar da fé. E se nos mosteiros não houver prelados sábios que preguem e promovam mais a fé do que a lei da ordem, é impossível que a ordem não se torne prejudicial e sedutora sobre as almas simples que se fixam só nas obras³.

    Segue Lutero:

    Em minha opinião seria necessário, particularmente em nossos tempos perigosos, que os capítulos e mosteiros voltassem a ter a ordem que tinham no início entre os apóstolos e durante muito tempo depois, quando todos davam a cada um a liberdade de permanecer quanto tempo quisesse. Pois o que eram os capítulos e os mosteiros senão escolas cristãs nas quais se ensinavam a Escritura e a disciplina em sua forma cristã e se educavam pessoas para governar e pregar? [...] Acredito que este meu conselho será considerado extremamente tolo. Porém isso não me preocupa agora. Aconselho o que me parece bom, rejeite-o quem quiser. Estou vendo muito bem como os votos são observados, em particular o de castidade, que se torna tão comum por meio desses mosteiros, mas não foi ordenado por Cristo. Este voto é dado a muito poucos apenas, como ele mesmo e São Paulo dizem. Eu gostaria que todos recebessem ajuda e que não se prendessem almas cristãs com práticas e leis humanas de invenção própria⁴.

    As palavras de Lutero não deveriam ter sido interpretadas como um estímulo revolucionário, mas alguns monges e freiras começaram a casar a partir do questionamento da natureza e da validade dos votos monásticos. Há relatos no sentido de que, a partir de maio de 1521, os primeiros padres se casaram. Outros teólogos começaram a opinar. Karlstadt, por exemplo, publicou teses nas quais defendia o direito de quebrar o voto de castidade por meio do casamento.

    Melanchthon escreveu que o assunto dos votos monásticos deveria fazer parte da liberdade em relação à tradição humana.

    Essa reação levou Lutero a se preocupar com o assunto, levando-o a escrever duzentas e oitenta teses no escrito de 1521 Themata de Votis⁵. A partir do cerne de sua teologia, a justificação pela fé revelada nas Sagradas Escrituras, Lutero afirmou que os votos substituíram a fé e que, fora da fé, os votos são idolatria. Também abordou a liberdade a partir do Evangelho, concedida a todos no Batismo, que não pode ser substituída por nenhum voto. Não era intenção de Lutero abolir a vida monacal, mas deixar os votos como expressão da liberdade. Melanchthon, ao ler as teses, declarou que este é o verdadeiro começo da libertação dos monges⁶. Também foi o começo para Lutero tratar o assunto dos votos monásticos.

    Em correspondências do período, podemos perceber as reais intenções de Lutero com o tópico dos votos monásticos e suas intenções ao escrever sobre eles. Em uma carta a Jorge Espalatino de 22 de novembro de 1521, um dia após escrever a carta introdutória ao julgamento dedicada ao pai, Lutero escreve:

    De um relato vago e incerto, fiquei sabendo que alguns dos nossos largaram o capuz monacal. Temo que, talvez, não o tenham feito com a consciência suficientemente forte. Esse temor fez com que eu escrevesse esse livrinho [sobre os votos monásticos], para que, pela autoridade de meu nome, se existe alguma, recebam apoio junto às pessoas pias e boas e sejam encorajados a ter mais confiança em si mesmos⁷.

    Em uma carta endereçada ao seu pai Hans no dia anterior, isto é, em 21 de novembro de 1521, que irá acompanhar o escrito do Posicionamento de Martinho Lutero sobre os Votos Monásticos, Lutero justificou o seu texto com um motivo pessoal. Ele confessou que, ao entrar no mosteiro, havia desobedecido a seu pai e, portanto, ao mandamento de Deus. Isso o levou a um voto perverso, e agora Deus estava libertando sua consciência de sua decisão perversa. "A consciência está libertada; isto é ser libertado de maneira muito abundante. Sou, portanto, monge agora e não sou monge; sou uma nova criatura, não do papa, mas de Cristo⁸." Ao ouvir a Palavra de Deus, o mandamento de Deus, Lutero não estava mais no falso serviço monástico, mas no serviço de Deus. Por isso, concluiu Lutero em sua carta,

    [...] eu te envio este livro, no qual podes observar com quais grandes sinais e poderes Cristo me liberou do voto monástico e me presenteou com tão grande liberdade que eu, embora me tenha feito servo de todos, a ninguém sou subordinado exceto a ele só. Pois ele é (como o denominam) meu imediato Bispo, Abade, Prior, Senhor, Pai e Mestre. Não mais conheço outro. Assim espero que ele te tenha arrebatado um filho para começar a ajudar, por meu intermédio, a seus muitos outros filhos, o que tu não só deves suportar de bom grado, mas também te deve encher de grande júbilo, e estou plenamente convencido de que tu não farás coisa diferente⁹.

    Lutero trabalhou por cerca de dez dias no texto sobre os votos monásticos. Ele elaborou cinco partes para fazer o seu posicionamento sobre a tirania dos votos para libertar aqueles que

    são atormentados pela fornalha de ferro do Egito e pelo fogo ardente da Babilônia, ou seja, pela tirania da consciência e do pecado. Pois vamos tratar dos votos monásticos, os quais vemos multiplicados e disseminados para o máximo flagelo do cristianismo e para a imensa desgraça das almas¹⁰.

    Como vamos ver nas partes que seguem, Lutero não ataca a vida monacal. Ele, mesmo escrevendo o texto, não deixou de ser monge. Ele irá deixar o mosteiro só em 1524. O que Lutero quer neste escrito é agir como um pastor descrevendo que os votos monásticos não refletem o conteúdo bíblico, o que não impede de alguém viver como um monge, como é o caso dele. Outro aspecto importante a observar é que Lutero, com esse escrito, não faz um tratado sobre a vocação, estabelecendo conexões entre a identidade cristã e a posição ocupada pelo cristão. O pastor Lutero quer ensinar a Palavra de Deus e é ela que definirá o seu posicionamento sobre os votos monásticos.

    A primeira conexão que Lutero estabelece entre as Escrituras Sagradas que servem de base para julgar os votos monásticos é que eles não dependem da Palavra de Deus, mas são contrários a ela. Conforme Lutero, o principal problema dos votos é que eles substituem o Evangelho e os ensinamentos de Cristo pelos ensinamentos humanos. O argumento para justificar os votos brota da concepção de que o Evangelho é uma combinação de conselhos e preceitos. Os conselhos são dados para os monges porque são estímulos para aqueles que querem verdadeiramente viver uma vida santa. Já os preceitos são destinados ao cristão comum, que quer estar próximo da vontade de Deus. Lutero escreve que o Evangelho não é uma lista de preceitos para tipos diferentes de pessoas, no caso os monges e os cristãos comuns. O Evangelho é a promessa de Cristo dada a todas as pessoas no Batismo. Os monges, com seus preceitos, ignoram o verdadeiro Evangelho e, com seus ensinamentos, substituem o Evangelho com seus conselhos. Esses ensinamentos dividem a vida dos cristãos em um estado de perfeição vivido pelos monges e um estado de imperfeição que é vivido por pessoas comuns. Ao medir a perfeição com base nos atos humanos, Lutero reafirma que há falsidade nos votos, pois eles destroem a fé e o amor. Por isso a verdadeira perfeição cristã é uma fé viva que serve a todas as pessoas por meio do amor revelado no ensinamento da Palavra de Deus, especialmente nos mandamentos. Se quero me sujeitar aos votos da obediência, da pobreza e da castidade, posso fazê-lo livremente. Não só como monge, mas como qualquer cristão.

    Em segundo lugar, os votos são contrários à fé porque são vitalícios, obrigatórios e necessários. Diferente da fé cristã, que deposita sua confiança na misericórdia de Deus por meio de Jesus Cristo, os monges confiam em suas próprias obras. Eles as veem como caminho para a salvação, priorizando as obras à fé. Para Lutero, a fé deve preceder as obras, que são frutos da fé. Obras realizadas antes da fé são pecados. Qualquer voto que é usado para cooperar com a fé é ímpio e demoníaco, afirma Lutero.

    O terceiro argumento de Lutero é que os votos são contrários à liberdade proporcionada pelo Evangelho. Da mesma forma que os votos atacam a fé conforme o argumento anterior, a insistência da necessidade de obras para a salvação também une a consciência e tira a liberdade. O Evangelho liberta a consciência da exigência de qualquer obra para a salvação porque ele nos anuncia que temos liberdade a partir da misericórdia de Cristo. Diante de Deus estamos livres por causa de Cristo. Diante do próximo, no entanto, as obras se tornam necessárias. A liberdade do Evangelho, comum a todos os cristãos, é dádiva de Deus, e, por isso, estamos livres de qualquer exigência perante ele. Na relação com o próximo, argumenta Lutero, as obras aparecem porque o cristão está a serviço do próximo. Contrariamente às exigências monásticas, que se concentram no eu, o cristão vive para o próximo por meio de uma diversidade de relacionamentos mediante os quais ele serve ao próximo. Esse argumento ecoa muito o que Lutero já estava afirmando anteriormente, desde o seu comentário a Romanos.

    Lutero amplia seus argumentos, em quarto lugar, afirmando que os votos monásticos são contrários aos mandamentos de Deus. Ele não encontrou nas Escrituras Sagradas prescrições para os votos. Mesmo que personagens bíblicos e outros santos viveram a partir de votos, eles não são fonte de doutrina para estabelecer modos de vida. Como não encontram respaldo bíblico, a exigência do cumprimento dos votos os torna contrários à vontade de Deus. Primeiro, os votos são contrários aos três primeiros mandamentos. A verdadeira adoração a Deus, a exigência de fé e a confissão do nome de Deus são prescritos nesses mandamentos. Contrários a eles, os votos ensinam a adorar o deus falso, substituindo o Deus do primeiro mandamento pelas obras praticadas pelos monges. Em relação aos outros sete mandamentos, o monasticismo separa os monges dos demais cristãos. Dessa forma, os outros sete mandamentos são colocados em segundo plano, visto que os monges cumprem os três primeiros por meio de suas obras, sendo que os demais cristãos são inferiores porque a obediência aos pais e o amor ao próximo são considerados menos importantes. Os monges pecam porque contradizem esses mandamentos, visto que abandonam os pais, não vivem em meio ao mundo sem se relacionar com o próximo e sem se preocupar em suprir suas necessidades com seu trabalho. Lutero afirma que a vida monacal vira a vida cristã de cabeça para baixo porque os monges, ao não se envolverem com a vida comum de um cristão, fazem com que os cristãos trabalhem em função dos monges.

    O último argumento, o quinto, demonstra que o monasticismo é contrário à razão. Os votos requerem o seu cumprimento. Esse condicionamento Lutero não percebe na vida monacal uma vez que os votos monásticos são, de fato, não cumpridos. Racionalmente, por exemplo, como há necessidade natural do casamento, por que impor a castidade? Lutero sugere que os monges podem ser dispensados desse voto para o casamento. Isso parece ser racional e natural, argumenta Lutero. Essa parte, juntamente com o Debate Acerca do Homem¹¹, de 1536, representa as declarações mais significativas de Lutero sobre as capacidades e tarefas pertinentes à razão humana.

    Por orientação de Espalatino¹², que considerou o texto muito radical, o presente trabalho de Lutero só se tornou público em fevereiro de 1522.

    Cf. OSel 2,277-340.

    Cf. OSel 2,310.

    Cf. OSel 2,310.

    Cf. OSel 2,311.

    Cf. WA 8,323-335.

    Cf. WA 8,317: Haec sunt initia liberationis Monachorum vere recitata.

    Cf. WA Br 2,404-405; LW 48,337-338.

    Cf. abaixo, p. 28,25-28.

    Cf. abaixo, p. 29,24-32.

    Cf. abaixo, p. 30,18-22.

    Cf. OSel 3,194-200 (1536).

    Jorge (Georg) Burckhardt (1484-1545), natural de Spalt, perto de Nürnberg, por isso chamado (em latim) Spalatinus (Espalatino). Estudou Direito em Erfurt e Wittenberg, tornando-se sacerdote em 1508. Esteve a serviço do príncipe-eleitor Frederico, o Sábio, da Saxônia ernes­tina, como educador de príncipes e, depois, como secretário, conselheiro e pregador. Influenciado pelo humanismo, colaborou com Lutero e Melanchthon na reforma da Universidade de Wittenberg. A posição ímpar de que gozava junto ao príncipe-eleitor permitiu-lhe assegurar a proteção deste para Lutero. Como humanista e tradutor de obras de Lutero e Melanchthon, procurou, por muito tempo, intermediar entre Lutero e Erasmo. A partir de 1525 foi pastor em Altenburgo (Turíngia). Participando das visitações, Espalatino teve grande influência na organização do governo eclesiástico dos Senhores Territoriais.

    Posicionamento de Martinho Lutero

    sobre os votos monásticos

    ¹³

    1521

    [573] JESUS

    A HANS LUTERO, SEU PAI, SAÚDA EM CRISTO

    MARTINHO LUTERO, SEU FILHO

    O fato de te dedicar este livro, caríssimo pai, não teve como intenção que se exaltasse teu nome no mundo e que nos vangloriássemos na carne, contrariando a doutrina de Paulo [Gl 6.13], mas que eu me valesse da ocasião que se ofereceu oportunamente entre mim e ti para expor aos pios leitores, em um breve prólogo, causa, conteúdo e exemplo deste livrinho.

    Por isso, para começar, quero que saibas que teu filho chegou ao ponto de estar agora plenamente convencido de que não existe nada mais santo, mais importante, mais consciencioso do que observar o mandamento divino¹⁴. Infelizmente (dirás) é evidente que em algum momento duvidaste disso e agora finalmente aprendeste que é assim? Pelo contrário, muito felizmente, não só duvidei disso, mas até ignorei totalmente que assim fosse. Sim, se o permitires, estou disposto a demonstrar que tu e eu compartilhávamos essa ignorância. Passaram-se quase dezesseis anos de minha vida monástica¹⁵, em que ingressei contra a tua vontade e sem o teu conhecimento. Em teu amor paterno temias por minha fraqueza, porque eu era então um jovem, tendo completado apenas vinte e dois anos, ou seja, (para usar as palavras de Agostinho) estava atrapalhado na adolescência ardente¹⁶, e porque tinhas aprendido com base em muitos exemplos que esse tipo de vida havia terminado de forma infeliz para alguns. Mas decidiste me prender mediante um casamento honesto e rico. Esse medo era preocupação tua, mas durante um bom tempo era também implacável a tua indignação para comigo, embora os amigos em vão te aconselhassem que, se quisesses oferecer algo a Deus, deverias oferecer aquilo que te fosse o mais caro e o melhor. Entrementes o Senhor fazia ecoar em teus pensamentos a palavra daquele Salmo: Deus conhece os pensamentos do ser humano, e sabe que são pensamentos vãos [Sl 94.11], mas tu estavas surdo.

    Finalmente cedeste e te submeteste à vontade de Deus, mas de forma alguma não deixaste de lado o temor por mim. Pois lembro muito bem como se fosse hoje, quando tu, já apaziguado, falavas comigo, e eu afirmava que havia sido chamado pelos terrores do céu e que me tornava monge não porque o quisesse e o desejasse, muito menos ainda por causa do ventre, mas porque, cercado pelo terror e [574] pela agonia de uma morte súbita, prestei voto sob coação e necessidade: Oxalá (dizias) não seja ilusão e engano. Como se Deus falasse por meio de tua boca, essa palavra penetrou em meu íntimo e nele se fixou, mas fechei meu coração o quanto pude contra ti e contra tua palavra. Acrescentaste ainda outra coisa. Quando eu, em confiança filial, censurei então a tua indignação, imediatamente me devolveste o golpe e rebateste de maneira tão oportuna e apropriada, que, em toda a minha vida, dificilmente escutei de um ser humano palavra que tenha soado e se fixado em mim de forma mais poderosa: Também não ouviste (dizias tu) que se deve obedecer aos pais?. Eu, porém, seguro em minha própria justiça¹⁷, te escutei como ser humano e te desprezei com vigor, pois de coração não pude desprezar essa palavra.

    Percebes aqui se tu também não ignoravas que os mandamentos de Deus devem ter prioridade sobre todas as coisas. Pois, se tivesses sabido que eu, até então, me encontrava sob o teu poder, não me terias arrancado completamente do capuz de monge com base na tua autoridade paterna? No entanto, nem eu, se tivesse sabido disso, o teria tentado sem teu conhecimento e contra a tua vontade, mesmo se fosse necessário sofrer múltiplas mortes. Pois meu voto, por meio do qual eu me subtraía da autoridade e da vontade paterna ordenadas por Deus, de nada valia, sendo inclusive ímpio, e o fato do voto não ser da vontade de Deus não só se evidencia por pecar contra tua autoridade, mas também por não ser espontâneo nem voluntário¹⁸. Ademais, ele acontecia de acordo com doutrinas de seres humanos e superstição de hipócritas, não ordenadas por Deus.

    Mas vejam-se quantas coisas boas o verdadeiro Deus, cuja misericórdia é imensurável e cuja sabedoria é infinita [Sl 147.5], promoveu a partir de todos esses erros e pecados! Porventura não preferirias ter perdido cem filhos a não ter visto esse bem? Parece-me que Satanás previu em mim desde a minha infância algo daquilo que lhe causa sofrimento agora, tendo, por isso, se enfurecido com incríveis maquinações para me destruir e me impedir, de modo que muitas vezes me admirei e me perguntei se eu não era o único entre os mortais que ele procurava atingir.

    Mas o Senhor quis (como vejo agora) que se me tornassem conhecidas a sabedoria das academias e a santidade dos mosteiros mediante experiência própria e certa, isto é, mediante muitos pecados e impiedades, para que as pessoas ímpias não tivessem a oportunidade de se vangloriar contra mim, o futuro adversário, no sentido de estar condenando coisas que não conhecia. Por isso vivi como monge, certamente não sem pecado, mas sem crime, pois impiedade e sacrilégio são considerados piedade suprema no reino do papa e muito menos ainda considerados crimes. O que, pois, pensas agora? Ainda me arrancarás da vida monástica? Porque tu ainda és meu pai, eu ainda sou teu filho, e todos os votos de nada valem. Do teu lado está a autoridade divina; do meu lado, a insolência humana. Pois nem mesmo a castidade, da qual tagarelam com a boca cheia, tem algum valor sem a obediência ao mandamento de Deus. A castidade não é ordenada, mas a obediência o é. Ainda que os insanos e tolos papistas não permitam que se equipare algo à virgindade e à castidade, exaltando ambas com espantosas mentiras, de modo que a própria insânia da mentira bem como a enormidade da ignorância, ambas juntas e cada qual isoladamente, deveriam tornar suspeito [575] tudo aquilo que fazem e sabem.

    Pois que compreensão é essa que distorce a palavra do sábio não há peso para pesar o valor de uma alma casta [Eclo 26.20] de modo a parecer que prefere a virgindade e a castidade a tudo mais, tornando-a imutável e indispensável? Mas foi um judeu que escreveu essa palavra sobre a esposa casta para judeus entre os quais a virgindade e a castidade eram condenadas. Assim também aplicam o elogio de uma esposa casta esta não conhece o leito do delito [Sb 3.13] às virgens.

    Em resumo, embora a virgindade não seja louvada nas Escrituras, mas somente admitida, ela é adornada com os elogios da castidade conjugal como que com plumas alheias por aqueles¹⁹ que estão prontos a provocar as almas para os perigos de sua salvação. Ou, por acaso, isso não significa que nada equivale a uma alma obediente? Certamente. Por isso não há nada que se equipare a uma alma casta, ou seja, a uma esposa pudica, não só porque ela [a castidade] é ordenada por Deus, mas também porque, como o expressa o dito popular, não existe algo mais desejável entre os homens do que uma esposa casta²⁰.

    Mas aqueles fiéis intérpretes da Escritura compreendem aquilo que é dito sobre a castidade [conjugal] ordenada como se isso estivesse sendo dito sobre a castidade [monástica] não ordenada; além disso, convertem a ponderação humana em julgamento divino. Por isso dispensam tudo, inclusive a obediência a Deus. A castidade [monástica], porém, às vezes também proibida, a saber, quando adotada contra a autoridade paterna, essa eles não dispensam²¹. Ó dignos e legítimos doutorzinhos e mestrezinhos papistas! A virgindade e a castidade devem ser louvadas, mas de tal forma que as pessoas sejam antes dissuadidas por sua grandeza do que por ela aliciadas, assim como Cristo, quando os discípulos louvavam a castidade, dizendo não convém casar se essa é a situação do homem em relação à mulher [Mt 19.10], logo os fez voltar atrás, dizendo [Mt 19.11]: Nem todos captam essa palavra. A palavra deve ser captada, mas ele quis dizer que ela é compreendida por poucos.

    Mas quero voltar a ti, meu pai, e digo novamente: Porventura ainda me arrancarás [da vida monástica]? Mas para que não te vanglories, o Senhor mesmo se antecipou a ti e me arrancou. Pois o que importa se trago ou deponho veste e tonsura? Por acaso o capuz e a tonsura fazem o monge? Tudo é de vocês, diz Paulo, e vocês são de Cristo [1Co 3.22,23]. E eu pertencerei ao capuz, e não, antes, o capuz a mim? A consciência está libertada; isto é ser libertado de maneira muito abundante. Sou, portanto, monge agora e não sou monge; sou uma nova criatura, não do papa, mas de Cristo. Pois também o papa cria, mas puppas et pappos²², isto é, larvas e ídolos, similares a ele, aos quais também eu pertenci um dia, induzido por diferentes tradições, em função das quais inclusive o Sábio diz ter se colocado em perigo de morte até ser libertado também ele pela graça de Deus [Eclo 34.12,13].

    Mas, porventura, eu te privo novamente de teu direito e autoridade? Em absoluto. Tua autoridade sobre mim permanece inalterada no que tange ao monacato, porém, como eu disse, esse já nada significa para mim. Além disso, este que me arrancou do monacato tem sobre mim um direito maior do que o teu; por ele fui colocado, como vês, já não mais no culto fictício dos monges, mas no verdadeiro culto a Deus. Pois quem pode duvidar de que eu esteja no ministério da Palavra? Mas esse serviço [cultus] é claramente aquele que lhe deve ceder a autoridade dos pais, visto que Cristo diz [Mt 10.37]: Quem ama o seu pai [576] ou a sua mãe mais do que a mim não é digno de mim. Não que ele tivesse anulado com esta palavra a autoridade dos pais, pois o apóstolo muitas vezes insiste em que os filhos obedeçam aos pais [Ef 6.1; Cl 3.20], mas, quando a vocação ou a autoridade dos pais e a de Cristo lutam entre si, deve reinar apenas a autoridade de Cristo.

    Por isso eu não poderia deixar de te obedecer sem pôr em perigo minha consciência (disso estou agora firmemente convencido) caso o ministério da Palavra não tivesse se acrescido para além do monacato. É isso que eu disse, o que nem tu nem eu sabíamos antes, que os mandamentos de Deus devem ter prioridade sobre qualquer outra coisa. Mas quase todo o mundo padece sob essa ignorância, visto que a vigência do erro impera sob a execração papal, o que também Paulo predisse ao afirmar que haveria pessoas desobedientes aos pais [Rm 1.30; 2Tm 3.2]. Isso tem a ver com monges e sacerdotes, principalmente àqueles que se afastam da autoridade dos pais sob a aparência da piedade e sob o pretexto do serviço a Deus, como se houvesse um outro serviço a Deus que não o de obedecer aos seus mandamentos, entre os quais também está a obediência aos pais.

    Por isso, eu te envio este livro, no qual podes observar com quais grandes sinais e poderes Cristo me liberou do voto monástico e me presenteou com tão grande liberdade que eu, embora me tenha feito servo de todos, a ninguém sou subordinado exceto a ele só. Pois ele é (como o denominam) meu imediato Bispo, Abade, Prior, Senhor, Pai e Mestre. Não mais conheço outro. Assim espero que ele te tenha arrebatado um filho para começar a ajudar, por meu intermédio, a seus muitos outros filhos, o que tu não só deves suportar de bom grado, mas também te deve encher de grande júbilo, e estou plenamente convencido de que tu não farás coisa diferente. E se o papa me matar ou me condenar para além do fundo do inferno? Ele não levantará o morto para matá-lo uma segunda vez, e de novo. Porém, se condenado, não quero que me absolva jamais. Pois confio que esteja próximo aquele dia em que se destruirá esse reino de abominação e de perdição. Tomara que sejamos antes de mais nada dignos de ser queimados ou mortos por ele, de modo que nosso sangue clame mais e acelere seu julgamento; contudo, se não somos dignos de testemunhar com o sangue, queremos ao menos orar e implorar pela misericórdia de testemunhar com a vida e a voz que somente Jesus Cristo é o Senhor, nosso Deus, bendito em toda a eternidade. Amém. Nele passa bem, caríssimo pai, e em Cristo saúda minha mãe, tua Margarida, juntamente com toda a família.

    Do deserto²³, 21 de novembro, ano de 1521.

    [577] JESUS

    Posicionamento de Martinho Lutero sobre os votos monásticos

    Inicialmente quero declarar aos que há tempo, por um ódio inveterado de meu nome, condenam a verdade mais manifesta por estar associada a mim, de que nada lhes escrevo neste livro, porque não quero deixar soar inutilmente a essas serpentes surdas, que fecham os ouvidos, minha voz de encantamento [Sl 58.4,5], nem pretendo proferir, segundo Salomão, a palavra ali onde não há quem a ouça [Eclo 32.6], nem lançar o santo aos cães, nem jogar pérolas aos porcos [Mt 7.6]. Que esses leiam os decretais de seu criador²⁴ e sua sabedoria, já que assim o desejam. Somente sirvo aos que são atormentados pela fornalha de ferro do Egito e pelo fogo ardente da Babilônia [Dt 4.20 e Dn 3.6], ou seja, pela tirania da consciência e do pecado. Pois vamos tratar dos votos monásticos, os quais vemos multiplicados e disseminados para o máximo flagelo do cristianismo e para a imensa desgraça das almas. Deus se compadeça de nós e nos abençoe, ele ilumine seu rosto sobre nós para que conheçamos na terra seu caminho, entre todos os gentios sua [presença de] salvação, para que os povos também o confessem, os gentios se alegrem e exultem, porque, libertados das tradições dos seres humanos, ele mesmo os julgue em justiça e governe as nações na terra [Sl 67.1-4]. AMÉM.

    NÃO SE DEBATE SE UM VOTO DEVE SER MANTIDO,

    MAS QUAIS OS VOTOS QUE SÃO VERDADEIRAMENTE VOTOS

    Ninguém pode negar que seja um direito divinamente instituído manter um voto, pois a Escritura diz façam votos e tratem de cumpri-los [Sl 76.11], de modo que não se permita absolutamente a ninguém questionar se um voto deve ser cumprido ou não. Tampouco nós discutimos se um voto deve ser mantido, mas aqui tratamos de discernir entre os [diversos] votos e de reconhecer quais são piedosos, bons e agradáveis a Deus. Apenas esses devem ser tidos como votos a serem citados e exigidos nas Escrituras. Por outro lado, tratamos de discernir quais votos são ímpios, maus e desagradáveis a Deus, os quais de outra forma não deveriam ser considerados votos, como se alguém chamasse de ação piedosa ter matado o próximo ou ter adulterado. Nesse caso, não é necessário discutir se tais coisas devem ser cumpridas ou revogadas. Pois jamais se instituiu algo – não importa quão piedoso e santo seja – que não fosse tentado por perversa emulação e ímpia hipocrisia. Pelo contrário, quanto mais santo for algo, tanto mais é acossado pela perversa emulação de ímpios e hipócritas. O que é mais santo do que a adoração de Deus, ordenada no primeiro e maior mandamento? Por outro lado, o que é mais difundido do que a superstição, isto é, a adoração falsa e fingida de Deus? Dessa maneira é preciso temer que, mediante a mesma perversidade, inclusive a bondade dos votos tenha degenerado em hipocrisia e ímpia superstição. [578] Pois nem a verdadeira piedade nem o voto sincero são algo muito comum, principalmente nestes últimos perigosos, ímpios e péssimos tempos, quando se predisse que tanto a fé quanto o amor iriam sucumbir.

    EM PRIMEIRO LUGAR, VOTOS NÃO SE FUNDAMENTAM

    NA PALAVRA DE DEUS; PELO CONTRÁRIO,

    OPÕEM-SE À PALAVRA DE DEUS

    Não há dúvida de que o voto monástico é perigoso pelo fato de ser privado de autoridade e exemplo da Escritura. Mas também a igreja primitiva e o Novo Testamento ignoram totalmente o costume de fazer qualquer voto, muito menos aprovam esse tipo de voto perpétuo de raríssima e miraculosa castidade. Pois se trata de mera invenção perniciosa dos seres humanos, como o são igualmente todas as demais invenções humanas. Mas que Paulo, nos Atos dos Apóstolos [18.18], aceitando um voto, tenha purificado a si mesmo com quatro outros homens [At 21.23ss], quem não vê que isso se trata de um resto da antiga lei? Por enquanto silenciarei sobre o fato de ter sido um voto temporal. Pois o mesmo apóstolo costumava observar todos os demais preceitos da antiga lei com os judeus, mas não queria que isso fosse exemplo no Novo Testamento; sim, na companhia de gentios ele não observava a lei.

    Santo Antônio²⁵, o próprio pai e fundador da vida monástica, julgou e ensinou de maneira muito sábia e cristã que não se empreendesse absolutamente coisa nenhuma que não tivesse a autoridade da Escritura²⁶. Ele próprio ignorou totalmente esse tipo de voto e cerimonial monástico, mas habitou livremente no deserto e viveu espontaneamente como celibatário, segundo o modelo do Evangelho. Seus sucessores fizeram de seu modo de vida um voto, uma necessidade e uma servidão, seguindo tão somente uma aparência externa e uma emulação falaciosa da regra de Antônio, que é a regra de Cristo, na medida em que se ativeram apenas à sabedoria humana.

    O mesmo pode ser dito de Paulo. Quando com frequência louva a forma e a tradição dadas às igrejas por meio de seu ministério e exige que o imitem, não quer que imitem a Paulo, mas a Cristo nele, dizendo: Sejam meus imitadores, como também eu sou imitador de Cristo [1Co 11.1]. Certamente nenhum outro guia nos foi dado senão aquele sobre o qual foi atestada a magnífica glória do Pai mediante esta palavra: Escutem o que ele diz! [Mt 17.5]. Por meio dessa palavra Cristo foi constituído guia de todos, e todos lhe foram subordinados e submetidos, como Miqueias [5.2] profetizara anteriormente dizendo que de Belém sairia o líder a reinar sobre o povo de Deus. Por isso ele próprio testemunha com seu pai e diz: Quem me segue não andará nas trevas. E novamente: Eu sou a luz do mundo [Jo 8.12]. Pois ele está parado como estandarte dos povos que Deus erguerá para reunir os desterrados de Israel [Is 11.12]. Assim volta a dizer em João 14²⁷[.6]: Ninguém vem ao Pai senão por mim. Eu sou a porta [Jo 10.7,9]. Eu sou o caminho, a verdade e a vida [Jo 14.6].

    [579] Essas e afirmações similares da Escritura, por serem mais claras do que a luz e totalmente fidedignas, certamente nos obrigam a condenar tudo aquilo que seja questão de regras, estatutos, ordens e seitas, tudo aquilo que fica aquém de Cristo, que vai contra ele ou além dele, mesmo que seja entregue do céu por anjos ou seja confirmado por grandes milagres. Aquele que disse Eu sou o caminho não permitirá que se presuma outro caminho. Sim, com essa afirmação ele revogou, cassou e anulou todos os outros caminhos, passados, presentes e futuros. Aquele que disse escutem o que ele diz não permite que surja outro guia e mestre, não importando se tentar entregar algo melhor ou pior. Qualquer lei e tradição fora de Cristo é condenada com esta afirmação, como Cristo também diz em João 10[.8]: Todos os que vieram antes de mim são ladrões e salteadores.

    Disso se pode concluir com muita clareza que de forma alguma podem ser feitos votos monásticos. Todos os votos desse tipo foram completamente abolidos, proibidos e condenados por esses trovões celestiais, visto que ninguém pode negar que, no monasticismo, são prometidas muitas coisas, deveras todas as coisas, e somente aquelas que estão fora de Cristo e sem ele (isto é, sem o caminho, sem a luz, sem a verdade, sem a vida, sem Deus). Eles próprios se vangloriam nitidamente disso e confessam sem pudor serem pessoas que vivem uma vida mais elevada e perfeita, acima de Cristo. Ó cegueira inestimável!

    Inicialmente, portanto, se coloque e se fixe o seguinte: o que é apenas suposto, contra Cristo e fora dele²⁸, seja por conta própria ou é levado a efeito com base nos exemplos e ensinamentos dos santos, isso já há muito tempo foi proibido, condenado e encerrado pela autoridade divina como algo humano. Não é permitido prometê-lo e estabelecê-lo como preceito ou modo de vida compulsório, e, caso alguém tenha feito o voto, não é lícito cumpri-lo ou mantê-lo, devendo ser liberado e posto em liberdade. Pois essa rocha permanece invencível: Eu sou a vida, e nenhuma outra. Mas tudo aquilo que não for esse caminho é errado, escorregadio e tenebroso.

    Mas inclusive São Francisco²⁹, homem admirável e de espírito fervoroso, disse com muita sabedoria que sua regra era o Evangelho de Cristo³⁰. O Evangelho, contudo, considera a castidade questão de livre escolha, não uma dessas coisas que esses frades menores, com incrível hipocrisia, observam atualmente. Quando Francisco quis que os seus vivessem segundo o Evangelho, claramente desejava que estivessem livres tanto de votos quanto de todas as tradições humanas. Ele queria que os frades menores também pudessem, pela autoridade de seu voto e regra, viver como celibatários ou não celibatários e permanecer nos mosteiros e sob todos os seus estatutos enquanto quisessem, pois não prometeram ou nem podiam prometer outra coisa os que fizeram voto ao Evangelho. Mas agora não existe nada mais supersticioso e melindroso do que esse tipo de pessoas, que deveriam ser as mais livres; são cativas de infinitos estatutos, de artigos de uma ou outra espécie e de observâncias pueris e ridículas.

    Mas o santo homem foi enganado, ou pela multidão daqueles que desprezam o Evangelho no mundo, ou pelo empenho equivocado de obter a confirmação e a aprovação papística, de modo que se fez do Evangelho destinado a todos os fiéis uma regra especial [580] de poucos. Aquilo que Cristo queria universal, Francisco tornou cismático. Pois quando um frade menor faz voto à sua regra, ele não promete outra coisa do que aquilo que já prometeu desde o início no Batismo, ou seja, faz voto ao Evangelho. A não ser que o erro maior de Francisco tenha sido o de ter acreditado haver muitos conselhos no Evangelho, como ensina a impiedade das escolas papísticas, conselhos que ele traduziu em mandamentos por meio de sua regra. Direi logo adiante por que não atribuo isso a tão grande homem.

    Assim, se perguntares a um frade menor por que vive no celibato e por que não toca em dinheiro, embora tenha feito voto ao Evangelho, e Cristo tenha ordenado ser o celibato uma questão de livre escolha e tenha lidado com dinheiro, pelo menos no que diz respeito à moeda de César, o frade menor responderá que observa somente o que Francisco ensinou de humano e foi corrompido pela tirania papística. Mas por que não observa o que Francisco ensinou de divino (se sua regra era o Evangelho)? Percebes, portanto, que Francisco errou como ser humano ao estabelecer sua regra. Pois o que significa dizer: ‘A regra dos frades menores é o Evangelho’ senão decretar que somente os frades menores são cristãos? Se o Evangelho é propriedade deles, não há cristãos além dos frades menores. Sem dúvida, porém, o Evangelho pertence única e totalmente ao povo cristão. Francisco também se equivocou quando ensinou, se é que o ensinou, a fazer votos pela segunda vez, o que eles próprios e todos os outros em conjunto já haviam jurado anteriormente no Batismo, ou seja, o que todos nós temos mais em comum, o Evangelho.

    SOBRE AS RAZÕES FUNDAMENTAIS

    DAQUELES QUE FAZEM VOTOS

    Mas aqui se faz necessário abordar dois princípios de sua fé ou, melhor, de sua falta de fé. O primeiro é que o Evangelho não é comum a todos, mas dividido em conselhos e preceitos. O monasticismo dele, no entanto, segue os conselhos, não só os preceitos, que são prescritos ao povo comum restante. Mas aqui padecem não só de um erro e sim de um grande erro. Não menciono que, com essa distinção, atestam ignorar o que o Evangelho é em si (na medida em que fazem preceitos e conselhos dele), ou seja, que ele é meramente promessas de Deus que anunciam os benefícios oferecidos às pessoas. Entre esses benefícios também estão aquelas declarações dos mandamentos de Deus e as exortações para observá-los que Cristo fez em Mateus 5, 6 e 7. O

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