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Transformações Teológicas na América Latina: Novos Horizontes para a Libertação
Transformações Teológicas na América Latina: Novos Horizontes para a Libertação
Transformações Teológicas na América Latina: Novos Horizontes para a Libertação
E-book443 páginas6 horas

Transformações Teológicas na América Latina: Novos Horizontes para a Libertação

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Sobre este e-book

Quando defrontados pelo horizonte, duas imagens nos saltam à mente: o futuro e o abismo. Diante do abismo, emergem as interrogações, e viver em uma época de abismos é angustiante e desafiador. Os abismos social, econômico, político, ecológico, climático e religioso são questões que levam a lugares impensados. É nessas circunstâncias, e não em outras, que a esperança se apresenta como encruzilhada.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de fev. de 2024
ISBN9788534953580
Transformações Teológicas na América Latina: Novos Horizontes para a Libertação

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    Transformações Teológicas na América Latina - Eduardo Brasileiro

    Prefácio

    Uma jornada fundada na alegria e na esperança:

    18 anos do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp)

    Claudemir Francisco Alves

    ¹

    Robson Sávio Reis Souza

    ²

    Rachel de Castro Almeida

    ³

    É hora de olharmos para trás, depois de mais de uma década desde o início da série Cadernos Temáticos do Nesp, cujo 13º- título (11 deles lançados pela Editora PUC Minas e 2, pela Editora Paulus) chega agora a suas mãos, prezada leitora, prezado leitor. Naquele já remoto ano de 2011, ao iniciarmos esta série de publicações, vínhamos de uma história – ainda incipiente, mas intensa – de profícuas relações com movimentos sociais e comunitários.

    Foi para responder a um anseio das comunidades eclesiais, manifesto durante a Assembleia do Povo de Deus, da arquidiocese de Belo Horizonte, em 2005, que nasceu o Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp), na PUC Minas. A ideia presente na palavra núcleo, que nos serve de nome, implicava o desejo de ser um ponto de encontro⁴. Não demorou nada até que outros coletivos da sociedade civil organizada, ao lado do público eclesial, passassem a ter interesse pelo que aqui se produzia.

    Um núcleo como esse, atento aos debates e questões enfrentados nos movimentos sociais e eclesiais, mas situado dentro de uma universidade, precisaria manter uma tensão constante entre o acadêmico e o vivido nas relações políticas e sociais. A tensão era necessária e desejável. Na experiência do Nesp, essa tensão se mostrou produtiva, porque, sem perder de vista as contradições e os impasses existentes entre a academia e a luta política dos movimentos sociais, procurou-se aproximar esses dois universos, de modo que um pudesse enxergar o outro e entender-se reciprocamente, contribuindo um com o outro na medida em que podem visar a um mesmo fim.

    Tal finalidade, comum a ambos os campos, é a meta de se chegar a uma sociedade mais equitativa e mais justa. A atuação do Nesp sempre esteve pautada pela doutrina social da Igreja católica. Daí todo o esforço para produzir e estimular a reflexão sobre questões contemporâneas, que constituem o anseio (e, por vezes, também a angústia) da mulher e do homem contemporâneos. Nosso olhar sempre esteve atento ao chão da história, mas sem perder de vista o horizonte da utopia. Elege-se como público prioritário os agentes dessa transformação almejada: pessoas que possam e queiram intervir politicamente no mundo por meio de sua atuação social. Se engajadas, ou não, numa comunidade religiosa, essa sempre foi uma questão menor, desde que compartilhassem um ideal de sociedade que dialogasse – ainda que agonicamente – com o projeto cristão de um Reino inclusivo.

    Curiosamente, a ideia evangélica de um Reino de Deus cativou um dos mais importantes filósofos do período iluminista. Em pleno século XVIII, dito o Século das luzes, Immanuel Kant (1724-1804) já definia a religião como uma comunidade ética sob a legislação moral divina. Uma religião que não muda o mundo, pode atingir certas veleidades intimistas de seus praticantes, mas não é verdadeiramente Igreja. Submeter-se à lei divina, contudo, não é deixar-se conduzir à espera de soluções mágicas. As soluções não virão, a não ser que nós mesmos as produzamos. Poderíamos acrescentar: a mudança não virá a menos que a produzamos historicamente, isto é, com nossas intervenções na política, na sociedade e nas relações econômicas por meio das quais fazemos o mundo e por ele somos feitos.

    A relação da mulher e do homem religiosos com o mundo talvez possa ser descrita, numa perspectiva kantiana, como a projeção do mundo atual num horizonte que o ultrapassa. No livro A religião nos limites da simples razão, de 1793, Kant afirma que o suprassensível (aquilo que não se pode ver, tocar, ouvir e sentir) não pode ser apreendido pela razão teórica, mas é reclamado e requerido pelo nosso empenhamento prático na sua condição derradeira (MORÃO, 2008, p. 3). Não se trata, todavia, de mergulhar nos abismos do misticismo, à espera de que Deus resolva os problemas humanos. Ao contrário, a mulher e o homem que creem haverão de proceder como se tudo dele[s] dependesse, e só sob esta condição pode[m] esperar que uma sabedoria superior garantirá ao seu esforço bem-intencionado a consumação (KANT, 2008, p. 117).

    Nesse horizonte da ação engajada, capaz de encarnar e de dar concretude às ideias e anseios metafísicos, é que sempre se projetou, na atuação do Nesp, a aspiração por uma ordem social democrática, justa e solidária. Os cursos, seminários e encontros; as publicações em forma de livros, cartilhas e vídeos; o site e as redes sociais, todos esses instrumentos estiveram voltados a esse mesmo propósito.

    Em particular, esta série de Cadernos Temáticos teve um papel muito importante na realização de nosso projeto que é, simultaneamente, pedagógico, político e eclesial. Depois de mais de dez anos, completam-se agora treze números. Milhares de exemplares foram distribuídos, a imensa maioria deles gratuitamente, de modo que pudessem chegar às lideranças comunitárias, especialmente àquelas que não poderiam pagar para ter acesso a esse material formativo.

    Alguns de nossos Cadernos Temáticos foram muito marcantes. O título inaugural – Acompanhamento do Legislativo – veio a público com a proposta de um método de participação que possibilitasse a compreensão dos processos legislativos dentro das câmaras municipais de vereadores ou das assembleias de deputados. Desde sempre esteve muito claro que não é possível uma verdadeira participação cidadã sem uma observação bastante rigorosa dos processos que acontecem nos poderes públicos.

    Outros temas foram recebendo destaque, como os dilemas da Ética e corrupção (Caderno 2) ou das relações entre Fé, política e cidadania (Caderno 3). Em 2014, tratamos de relembrar os 50 anos do golpe civil-militar (Caderno 4). Naquele momento, não tínhamos a noção de que o tema do autoritarismo voltaria à pauta nacional com tanta força em tão pouco tempo. Já no ano seguinte, contudo, as publicações começaram a assumir uma tonalidade de maior apreensão. O Brasil estava começando um mergulho em águas turbulentas que o levaria à beira de um novo golpe de estado e de um governo com matizes fascistas.

    Nossas publicações passaram então a lidar com a ameaça antidemocrática, mas sempre matizadas pela alegria e pela esperança. Naquele momento sombrio, ressoava para nós, sempre de novo, as palavras de abertura da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1):

    As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.

    Assim, nesse espírito, foram publicados o Caderno Igreja e sociedade; o subsequente, que tratava de política e resistência na Convivência com o semiárido; o de Democracia em crise; o de Religião, política e transformação social. O Caderno Na cidade enfrentava os desafios de encontrar alternativas adiante da onda avassaladora de fascistização da sociedade. O décimo número celebrava os Cem anos com Paulo Freire, num contexto em que o grande educador brasileiro se encontrava sob o assédio cerrado do pensamento de extrema direita.

    Os dois cadernos seguintes são marcadamente constituídos no horizonte do pontificado de Francisco. O primeiro – O novo humanismo: paradigmas civilizatórios para o século XXI a partir do papa Francisco – enfrenta o desafio de pensar a crise global do capitalismo, a ameaça aos direitos da mulher e do homem, especialmente os mais pobres, e do Planeta, a Casa Comum. O seguinte – Amizade social e política: esperançar no horizonte de Francisco – atualizava essas mesmas questões na iminência das eleições de 2022, que alguns chegam a considerar como o mais definidor dos embates eleitorais desta geração.

    Olhando, agora, retroativamente, após o golpe de estado tentado em 2023, esse ponto de vista não parece exagerado. Nosso olhar, porém, ainda carece do devido distanciamento temporal. Estamos por demais imersos ainda naquele ambiente para que nosso juízo tenha algum valor heurístico. Resta-nos o temor de que as ameaças podem não ter sido totalmente superadas e que algum sobressalto ainda possa estar à nossa espera em uma próxima esquina da história.

    Dentro do campo em que atuamos, porém, um fato está muito claro. Vivemos um período em que a religião cristã aparece sob a ameaça de captura por discursos anti-humanistas. Precisamente nessa conjuntura renovamos o compromisso de pensar o futuro – do país e do globo – à luz das exigências de um novo eco-humanismo.

    É nesse contexto que vem a público também este Caderno Temático que toma para si a tarefa de, primeiramente, celebrar meio século de existência (e de resistência!) da Teologia da Libertação na América Latina. O momento atual, todavia, não pode ser descrito exatamente como promissor e alvissareiro. Ao contrário, continua a ser um período de sombras ainda ameaçadoras. Mas a esperança insiste em brotar entre as rachaduras do sistema que se arroga inexpugnável. É desse modo que se celebra, com esta edição, a insurgência do pontificado de Francisco.

    O momento é sombrio, é verdade, mas nós temos muito a celebrar também. São dezoito anos de existência do Nesp e chegamos, nessa trajetória, à 13ª- edição dos Cadernos Temáticos. Ao longo desses anos todos, fomos capazes de ofertar um material consistente no qual compartilhamos, entre tantos conteúdos, muitas experiências de organização popular. Demos visibilidade a ações políticas indispensáveis, não obstante sua essencial simplicidade. Trouxemos a lume as ações políticas cotidianas de mulheres e homens comprometidos com a construção de espaços sociais mais justos e humanos.

    Houve muitas parcerias institucionais e pessoais. São numerosas demais para serem enumeradas sem o risco de que alguma delas, sempre tão importante, fique esquecida. Assumindo esse risco, damos destaque aos parceiros de primeira hora, aqueles que sempre estiveram ao nosso lado, como o Vicariato Episcopal para Ação Social, Política e Ambiental (Veaspam), da arquidiocese de Belo Horizonte e o Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Camara (Cefep), da CNBB. Quantos outros coletivos populares e eclesiais, quantos organismos públicos, quantos movimentos sociais e de igrejas!

    Muitos foram também os colaboradores individuais que nos confiaram os seus textos, sem receber qualquer remuneração, e com total doação tornaram possível a realização desta série de Cadernos Temáticos. Elevem-se até essas pessoas os nossos mais efusivos agradecimentos.

    Ao entregarmos em suas mãos, prezada leitora, prezado leitor, mais este livro, desejamos que o ideal cristão de justiça e de paz, atualmente tão bem encarnado no magistério levado adiante por Francisco, sirva a você de inspiração. Ainda nos move o desejo e a premência de um mundo mais inclusivo.

    Referências

    IGREJA CATÓLICA. Concílio Ecumênico Vaticano II. Constituição Apostólica Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo atual. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 12/7/2023.

    KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. [1793] Covilhã: LusoSofia:press, 2008. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_religiao_limites_simples_razao.pdf.

    MORÃO, Artur. Apresentação. In: KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Covilhã: LusoSofia:press, 2008. p. 3-8. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_religiao_limites_simples_razao.pdf.

    Apresentação

    Horizontes de libertação

    Eduardo Brasileiro

    O que sabemos é muito menor
    que a grande esperança que sentimos.

    José Maria Arguedas, escritor peruano

    Quando defrontados pelo horizonte, duas imagens nos saltam à mente: o futuro e o abismo. Diante do abismo, emergem as interrogações, e viver em uma época de abismos é angustiante e desafiador. Os abismos social, econômico, político, ecológico, climático e religioso são questões que levam a lugares impensados. É nessas circunstâncias, e não em outras, que a esperança se apresenta como encruzilhada. Crer, mobilizar afetos e se colocar a caminho são as características daqueles que tendem a esticar horizontes para evitar o abismo e construir o futuro ou os futuros.

    A presente obra é fruto de uma jornada de aprendizagem, reflexão e perspectivas proposta pela Casa Comum: Escola de Formação Política de Cristãos Humanistas do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) do ANIMA PUC Minas. Foram mais de trinta horas com trezentas pessoas participando na plataforma do YouTube, no canal do Nesp (@nespvideos). Esse conteúdo está disponível para ser acessado livremente. O mergulho feito nessas conferências foi no contexto social, político, econômico e cultural da América Latina e do Caribe. Buscou-se tatear a partir das práticas, reflexões e articulações dos saberes teológicos produzidos nos últimos cinquenta anos no continente da esperança e da resistência.

    As conferências aqui vivamente refletidas buscam, por meio de narrativas, ideologias e projetos que se confeccionam, impregnadas no plural tecido espacial e corporal dos povos latino-americanos, dizer à esperança, esse ato tão bonito e raro de se fazer. Em outras palavras, é reconhecer os novos paradigmas que constituem o fundamento de toda leitura crítico-propositiva da realidade. É dizer quem, como, quando e onde os movimentos – que marcam as recentes gerações e suas incidências na história, em uma dança entre fé e razão, contextos históricos e novas formas de viver e recriar a vida – constroem memória e formulam futuros.

    O teólogo peruano padre Gustavo Gutierrez afirmou, em sua banca de doutorado, em 1985, em Lyon na França, que toda teologia é uma palavra sobre Deus (2000, p. 17)⁶. Mesmo sabendo que uma teologia não se inicia em livro, artigo ou conferência, muito menos reduzindo as libertações como um fenômeno registrável apenas nessas últimas décadas, buscamos construir um panorama sobre as expressões teológicas e o conhecimento das implicações e transformações da América Latina, da dimensão de democracia, da economia, e de como as teologias latino-americanas, e em especial, de como a visão pós-conciliar a partir da vivência eclesial e social impregnaram compromissos e reflexões que contribuíram e contribuem para o contexto desse continente. O conjunto de reflexões exposto aqui não compreende um cânone, muito menos uma sistematização. É, na verdade, um registro em movimento, onde percorremos os fatos marcantes das últimas décadas à luz daqueles e daquelas que vêm construindo sua fé e sua espiritualidade, encharcados das realidades que percorrem e experienciam pelas comunidades, nesta etapa da história, enfim, esticando e construindo horizontes de libertações.

    A sequência dos textos segue necessariamente a ordem das conferências apresentadas em 2022, com pequenas exceções que foram feitas para melhor continuidade das ideias. Afinal as ideias não são lineares e as nossas pensadoras e os nossos pensadores trouxeram o elã de suas reflexões, e o que encontramos aqui não são consensos, mas debates postos em perspectivas dialéticas. Os horizontes são sempre futuros em construções. Como afirmou certa vez o escritor Eduardo Galeano, relembrando o cineasta argentino Fernando Birri, sobre a utopia: serve para caminharmos.

    Se a memória é a forma presente do passado (Santo Agostinho), esse perfil traçado será, por certo, a expressão das reflexões teológicas, sociológicas, econômicas, ecológicas, políticas e comunitárias descortinadas em tempos e lugares diferentes sob o ângulo da urgência de transformação da realidade. Portanto, a diversidade de pensadores e ativistas são respeitáveis vozes no cenário brasileiro, latino-americano e caribenho, que apresentaram seus saberes, práticas e perspectivas de atuação, os quais neste livro você encontrará assentados em quatro partes.

    Na primeira parte, Horizontes do cristianismo na América Latina: passado, presente e futuro, oito autores(as) – dom Joaquim Mol, João Pedro Stédile, Maryuri Mora Grisales, Emilce Cuda, Cesar Kuzma, Regina Novaes, Angelica Tostes e Brenda Carranza – percorreram reflexões de diagnóstico do continente, lançando olhares sobre sujeitos e movimentos que impulsionam e até mesmo provocam inúmeras transformações.

    Em O humanismo político e econômico nas transformações da sociedade, dom Joaquim Giovani Mol Guimarães percorre sua análise sobre os desafios de se compreender um novo humanismo, e as fronteiras dessa nova humanização: novas formas de produzir e participar da economia; de comunicar e defender a dignidade dos ecossistemas; e uma nova racionalidade ancorada no cuidado e na solidariedade como ação política.

    O economista e ativista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stédile, presenteia-nos em A situação sociocultural, econômica e política na América Latina, com um movimento vigoroso de olhar para a história a partir dos vencidos, e não dos vencedores, e reconhecer nessa identidade latino-americana a instituição dos processos de resistências que carecem de reconhecimento e de articulação de mais forças.

    Ainda percorrendo as veias abertas da América Latina, a teóloga colombiana e doutora em Ciências da Religião, Maryuri Mora Grisales, em Anotações sobre democracia e teologia latino-americana: repensando a resistência e a esperança, faz uma revisão crítica sobre os marcos teológicos da América Latina a partir do colonialismo, das resistências e esperanças. O pano de fundo são as formulações dos cristianismos de libertação como movimento social e suas ambiguidades, lacunas e desafios, e um profundo testemunho de sua militância e expressão teológica.

    Já a teóloga e integrante da Comissão Pontifícia para a América Latina, Emilce Cuda, e o teólogo e professor da PUC-Rio, Cesar Kuzma, produzem uma reflexão teológica primorosa entre a relação do pontificado do papa Francisco com as duas maiores expressões teológicas latino-americanas, a Teologia da Libertação e a Teologia do Povo. Emilce Cuda, em A Teologia do Povo e a Teologia da Libertação: a política e a economia a partir de Francisco, apresenta como o papa Francisco sintetiza os dez pontos de seu fazer teológico. Cesar Kuzma, em Teologia da Libertação na eclesiologia do papa Francisco, desenvolve uma relação entre Francisco – o cardeal Jorge Mario Bergoglio e o papa –, buscando responder o que dessas correntes teológicas passam pelos corredores do Vaticano e inspiram o mundo inteiro.

    Em Protestantismo e a libertação? Experiências passadas e desafios atuais, a antropóloga Regina Novaes expõe a produção de saberes das comunidades e das lideranças evangélicas das décadas de 1960 até a virada do milênio. Seu olhar apurado relata suas pesquisas, escutas e sistematizações de importantes marcos da história recente que configuram um olhar amplo, plural e provocativo para o movimento evangélico atual.

    Angélica Tostes, teóloga e mestra em Ciências da Religião, retoma em Um resgate histórico da Teologia Protestante da Libertação, o caminho da reflexão protestante até o pentecostalismo e sua absorção na vida da população preta e pobre brasileira. Coloca também os pilares fundamentais sobre a ascensão do fundamentalismo religioso na América Latina. Sua memória resgata lideranças fundamentais do movimento protestante e suas pesquisas e militâncias em Cuba e no Brasil.

    Encerrando essa primeira parte, Brenda Carranza, doutora em Ciências Sociais, em A direita cristã no Brasil: um projeto de poder político e religioso, apresenta um olhar conjuntural a partir de primorosa pesquisa acadêmica, mostrando como determinados segmentos religiosos, especificamente das igrejas pentecostais e neopentecostais assumiram o controle da direita política e hoje são o principal polo organizador do pensamento conservador brasileiro. Esse último artigo desta seção apresenta um panorama da situação brasileira pós-pandemia de Covid-19, a partir da mobilização religiosa e política.

    A segunda parte concentra Ecologia, economia, política e espiritualidades: uma abordagem humanista para enfrentar os desafios do século XXI, com Olivia Carolino Pires, Maurício Abdalla, Élio Gasda, Allan da Silva Coelho, Michael Löwy, Alberto Acosta e Leonardo Boff. Eles fazem um panorama dos elementos que construíram a forma econômica, política e espiritual do século XX e que são paradigmas determinantes do século XXI, tendo em vista uma nova recomposição dos horizontes organizativos das comunidades, das instituições, dos movimentos populares e dos saberes que se constroem.

    Olivia Carolino, socióloga e militante do Movimento Brasil Popular e Maurício Abdalla, filósofo e militante do Movimento Nacional de Fé e Política, mostram cenários para o humanismo político diante dos avanços sociopolíticos do neoliberalismo. Olivia Carolino, ao apresentar Por um humanismo político capaz de superar a crise de destino nacional e disputar um futuro inédito, leva-nos a entender a crise brasileira, a organização popular e a força de movimentos que recuperam a importância de construir futuros. Ela nos presenteia com o rosto dos movimentos humanistas desta esquina da história global, latino-americana e brasileira. Maurício Abdalla faz um recuo histórico das visões de humanismo, essencial para compreender as tramas que envolvem essa corrente global e constrói um caminho que nos leva a afirmar que O humanismo político é a concepção que tem o ser humano como fonte e finalidade da política.

    Na esteira dos temas centrais nas disputas políticas contemporâneas, o teólogo e padre jesuíta Élio Gasda, apresenta, em Trabalho e humanismo, as perspectivas da crítica humanista em face das transformações do mundo do trabalho, precarizado pelo avanço de um modelo econômico cada vez mais hostil às populações marginalizadas, sejam mulheres, sejam negros etc. Gasda realiza um recuo historiográfico para apresentar a formação do modelo econômico e a urgência de uma ruptura com esse modelo de morte.

    Em seguida, em Humanismo e economia: crítica do fetichismo pela formação do humano, o filósofo Allan da Silva Coelho e o eminente sociólogo Michael Löwy, em Humanismo econômico e ecossocialismo, realizam um meticuloso caminho entre correntes humanistas como a do padre Lebret, os debates desenvolvimentistas e o aprofundamento da encíclica Laudato Si’.

    Encerrando essa parte temos dois horizontes a serem descortinados com a urgência de defender o nosso futuro comum. O economista equatoriano e presidente da Assembleia Constituinte que reconheceu, no começo deste século, os direitos da Mãe Terra (Abya Yala), Alberto Acosta, mergulha, em Direitos humanos e direitos da natureza: juntos rumo a uma virada copernicana, como ponto de partida para a construção de outros mundos possíveis e traz a rica experiência latino-americana de resistência e ação. O teólogo da libertação que fortemente influenciou a ecoespiritualidade, Leonardo Boff, em Uma espiritualidade ecológica, apresenta uma reflexão do caminho entre as experiências que nunca deveriam ter sido dissociadas, a espiritualidade e a ecologia.

    Na terceira parte – Pactos por libertações: educação popular, organização territorial e vivências comunitárias –, começamos a andar pelos futuros latino-americanos, bem assentados em compromissos políticos realmente emancipadores. Aqui, somos agraciados com os poderosos aportes de Geraldina Céspedes, Francisco de Aquino Júnior, Nancy Cardoso Pereira, Edward Guimarães e Liliam Daniela dos Anjos Pinto.

    Em Processos de libertação: a densidade teológica a partir da realidade, a teóloga da República Dominicana, Geraldina Céspedes, apresenta um tear teológico. A pedagogia do ver e do escutar, as subjetividades e os gritos das diversidades de sujeitos.

    O teólogo e padre da diocese de Limoeiro do Norte, no Ceará, Francisco de Aquino Júnior, fala do Fazer teologia em nosso tempo e em nosso lugar, que é um compromisso com base no processo de renovação eclesial, que culminou no Concílio Vaticano II e sua recepção particular em nossa América Latina.

    Já a teóloga metodista e doutora em Ciências da Religião, Nancy Cardoso, de modo muito perspicaz, apresenta um roteiro da educação popular a partir de seus caminhos, de seu corpo de mulher, de palavras e de ações. Uma biografia teológica que nos convida a pensar em nossos caminhos, com o título: De curioso, de maravilha e de se safar: um roteiro de teologia e educação popular.

    Na mesma melodia, o doutor em Ciências da Religião, teólogo e professor da PUC Minas, Edward Guimarães, em ‘A cabeça pensa onde os pés pisam’: Teologia da Libertação e educação popular – tema da aula dele com Nancy –, apresenta um percurso por referenciais do caminho teológico popular da América Latina, conversando entre versos que contam histórias e lutas, e pensadores e pensadoras que souberam articular as utopias deste nosso tempo.

    Encerrando essa parte, a socióloga e integrante da equipe do Nesp, Liliam Daniela dos Anjos Pinto, a partir da máxima de Camilo Torres, que compôs o tema desta aula (‘Não existe amor ao próximo em abstrato’: a luta das mulheres na práxis latino-americana), apresenta as lutas das mulheres percorrendo uma constituição teológica da América Latina, o reconhecimento do movimento constante de lutar por libertações.

    A quarta parte, que encerra esta publicação, traz os Diálogos sobre a Teologia como instrumento de transformação social e a opção pelos pobres na atualidade. Trata-se de uma saborosa seção de diálogos francos, que – por decisão da organização desta obra – preserva o caráter coloquial, o registro das intervenções entre os convidados, para que assim, o leitor possa sentir-se sentado em volta de uma mesa, em uma roda de conversa com dom Vicente Ferreira, Marcelo Barros, padre Manoel Godoy, padre Júlio Lancelotti e padre Vilson Groh.

    O primeiro diálogo é entre o bispo, referência na resistência contra a mineração predatória no Brasil e na América Latina, dom Vicente Ferreira, e o teólogo e monge beneditino, Marcelo Barros, sobre ‘A teologia como profecia’: diálogos sobre profecia nos tempos de hoje. A profecia na América Latina tem sabor e aroma muito peculiares de amor. A entrega comunitária, os projetos que restauram a dignidade, o compromisso e a cumplicidade com os excluídos dessa sociedade, entre outros. Sob o amparo da reflexão do teólogo belga e missionário brasileiro, cujo centenário de nascimento celebramos em 2023, José Comblin, somos provocados a seguir construindo a profecia neste continente.

    Em ‘Descer da cruz os crucificados’: diálogos sobre as consequências da opção pelos pobres nos tempos de hoje, desenvolve-se um amistoso diálogo entre três teólogos, educadores e homens que experienciam a organização comunitária nas periferias de três grandes capitais brasileiras: São Paulo, Florianópolis e Belo Horizonte. Em meio à conversa determinada de padre Júlio Lancelotti e padre Vilson Groh, com a mediação do padre Manoel Godoy, é feito um exercício da coragem e das utopias.

    O conjunto dessas reflexões compuseram o que chamamos de Jornada sobre as teologias latino-americanas, mas trata-se fundamentalmente de um caminho que não se inicia por ela e nem se encerra nela, mas continua por corpos, mentes e corações que por ela se assentam e se propulsionam a seguir construindo futuros possíveis para se viver e conviver nesta etapa da história humana. Implicamos nesta obra, um conjunto de textos motivadores e dinâmicas sociais, e supomos que também seja parte do universo dos que participaram de nossas aulas, da disposição à transformação.

    Agradecemos de maneira especial àqueles que apoiaram desde o início o surgimento dessa jornada: A Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter); o Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa (IFT) e o Departamento de Pedagogia, ambos da PUC Minas; e os parceiros que divulgaram fortemente em suas redes como Ameríndia, Celam, Religión Digital, Portal das CEBs no Brasil e a Plataforma 9.

    No final do Caminho me dirão:

    – E tu viveste? Amaste?

    E eu, sem dizer nada

    Abrirei o coração cheio de nomes.

    Pedro Casaldáliga

    Belo Horizonte, 1 de fevereiro de 2023.

    PARTE

    I

    HORIZONTES DO CRISTIANISMO NA AMÉRICA LATINA:

    passado, presente e futuro

    O humanismo político e econômico nas transformações da sociedade

    Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães

    Muito obrigado a você, Eduardo Brasileiro, caríssimo! Uma bondade estar aqui, junto com você. Prezado professor Robson Sávio! Prezada professora Brenda Carranza, que nos honra com sua presença nesta jornada de reflexões tão importantes! Ela que me lembra a presença viva, atuante, inteligente de padre Alberto Antoniazzi.

    Sugiro, inclusive, que esta sessão seja dedicada ao padre Alberto Antoniazzi e que fique registrado em nossas atas. Bem como seja dedicada também ao padre Gustavo Gutierrez. Gostaria, ainda, de dedicar esta primeira aula dessa formação que estamos fazendo, a todas as vítimas da fome, que cada dia aumenta mais. Finalmente, ao papa Francisco, porque penso que hoje talvez seja a pessoa que mais nos entusiasma no caminho de reconstrução de praticamente tudo no universo da teologia, da pastoral, da Igreja, da fé, da sociedade, do planeta Terra. Assim, também agradeço pelo convite para esta contribuição.

    O conservadorismo é aquela atitude de incensar o passado. Incensa o passado e apaga o espírito, porque o espírito está para o presente, para o futuro. Ele está presente em todos os lugares. Felizmente temos conseguido, de muitas formas diferentes, com muitas pessoas diferentes, reavivar o entusiasmo por uma forma de pensar que nos liberta de um conservadorismo que, de fato, faz mal a todos nós, exatamente porque obscurece o nosso caminho.

    O humanismo político e econômico é um caminho que nos faz olhar para a situação que estamos vivendo agora. E como que ela nos impulsiona para a frente, porque o humanismo político e econômico serve como olhar para as teologias na América Latina, como também em outras partes do mundo que são marginalizadas, empobrecidas tanto na Ásia como na África. E não pensemos que não haja pobres também na América do Norte e na Europa.

    Dito isso, gostaria de fazer referência a algumas publicações. A obra Teologia da Libertação: perspectivas, de 1971, fundamental para entender por que despertou na América Latina a opção preferencial pelos pobres, que é uma humanização da missão da Igreja nessa etapa histórica.

    Apresento um segundo livro, o Novo humanismo: paradigmas civilizatórios para o século XXI a partir do papa Francisco – são dez anos de pontificado do papa Francisco e nitidamente vemos que ele abre uma miríade de olhares a que devemos nos dedicar atentamente em observar. Sobretudo, observar o caminho de transição, que o papa Francisco nos coloca, de servir a uma mudança de época.

    Humanizar a política e a economia

    O papa Francisco é um teórico-prático do novo humanismo. Essa palavra novo é muito importante. O novo humanismo se confronta de forma direta com as elaborações do humanismo clássico, do humanismo moderno e de humanistas contemporâneos que geraram aquilo que é chamado de antropocentrismo moderno. Faz uma reviravolta na reflexão quando afirma que o ser humano está nu. É isso mesmo, o ser humano está nu e exposto diante de seu próprio poder que continua a crescer. O poder da pessoa humana é muito grande sem ter os instrumentos para o controlar. Isso gera alguns resultados muito complexos.

    Por exemplo, resultado desse ser humano nu e exposto diante de seu próprio poder sem controle: a Terra – nossa casa, nosso planeta –, parece transformar-se cada vez mais em um imenso depósito de lixo. O modelo econômico está alicerçado no lucro e na financeirização e não hesita em explorar, arrancar tudo que pode descartar, jogar para lá e matar o ser humano. Milhões de crianças, reduzidas a esqueletos humanos, morrem de fome cotidianamente. Então, ensina o papa Francisco: o mercado – já que vamos falar de humanismo político e econômico –, o mercado por si mesmo não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer nesse dogma da fé neoliberal. Isso está lá na Fratelli Tutti, no número 168. Nós precisamos concordar com o papa, porque é uma verdade o que ele está dizendo.

    Num pequeno livro chamado 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, diz-se que,

    na costa oeste da América do Norte, todo ano, em função das estações, centenas de espécies de pássaros migram para o norte e para o sul, voando grandes distâncias. Uma dessas espécies é o pardal de coroa branca. Esses pardais tomam a rota do Alasca e até o norte do México no outono e, na primavera, voltam para o Alasca. Diferentemente de outros pássaros, esses pardais dão conta de ficar acordados sete dias, vinte e quatro horas por dia, uma semana inteira, durante as migrações.

    Durante a noite eles voam e durante o dia procuram alimento sem descansar, por isso, o livro se chama 24/7. Vinte e quatro horas em cada um dos dias da semana. Não teria nada de muito estranho aqui se não colocássemos essa outra informação: o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, gasta fortunas estudando as atividades cerebrais desses pardais com a esperança de obter conhecimentos que sejam aplicáveis ao ser humano, para que o ser humano também fique acordado vinte e quatro horas, sete dias seguidos produzindo, trabalhando dia e noite, sem dormir.

    Aqui está, digamos assim, uma síntese de que precisamos praticar o humanismo econômico, porque esse modelo econômico que aí está não suportamos mais. Não há a mínima possibilidade de um capitalismo inclusivo, capaz de realizar na vida humana e ambiental bons resultados. Não existe essa possibilidade, porque, se se tornar inclusivo, o capitalismo não será mais o modo de produção que é. Nós somos chamados a inteirar a razão que movimenta o conhecimento – a razão técnica, a razão científica – com a razão emocional, intuitiva, experiencial, a razão comunicativa, como diz Habermas.

    O ser humano é parte da criação e responsável por ela, ensina o papa Francisco, já que o ser humano possui uma abertura a um tu capaz de conhecer, amar, dialogar, o que faz dele, uma grande nobreza traduzida na expressão, da Laudato Si’, de que tudo está interligado. O ser humano não é o senhor do universo, mas seu cuidador responsável. A Bíblia, a palavra de Deus para nós, não dá lugar a um antropocentrismo despótico. Estou

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