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Misericordia - Conceito Fundamental do Evangelho
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Misericordia - Conceito Fundamental do Evangelho
E-book368 páginas5 horas

Misericordia - Conceito Fundamental do Evangelho

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Sobre este e-book

O que significa crer num Deus misericordioso? Que relação existe entre a misericórdia de Deus e a sua justiça? O mal imerecido e a misericórdia de Deus são conciliáveis? Como havemos de responder à misericórdia de Deus na nossa forma de agir? O que significa a mensagem da misericórdia para a prática da Igreja, e o que podemos fazer para que resplandeça na vida dos cristãos e da Igreja a mensagem fundamental da mise-ricórdia divina? E o que quererá dizer hoje, para nós, a máxima do Sermão da Montanha «Felizes os misericordiosos» (Mt 5, 7)?
IdiomaPortuguês
EditoraLucerna
Data de lançamento27 de fev. de 2015
ISBN9789898976833
Misericordia - Conceito Fundamental do Evangelho
Autor

Walter Kasper

Walter Kasper (Heidenheim an der Brenz, 5 de março de 1933) é um cardeal alemão, e presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Kasper fez estudos no ginásio de Ehingen an der Donau em 1952, após realizou estudos de filosofia em Tubinga e Mônaco, que concluiu em 1956, foi ordenado presbítero em 6 de abril de 1957 na diocese de Rottenburgo. Em 1961 obtém o doutoramento na Faculdade Teológica de Tubinga. Durante três anos foi assistente de Leo Scheffczyk e de Hans Küng. Em 1964 recebe a habilitação para ensinar teologia dogmática na Universidade de Münster e em 1970 para a Eberhard-Karls-Universität die Tubinga. Foi nomeado para presidir a Faculdade Teológica de Münster. A partir de 1983 é professor visitante da Universidade Católica da América em Washington D.C. Em 1985 Kasper é nomeado secretário especial do sínodo extraordinário e se torna membro da Comissão Teológica Internacional. Foi nomeado Bispo da Diocese de Rottenburg-Stuttgart em 17 de abril de 1989. A ordenação episcopal decorreu a 17 de junho desse ano por Oskar Saier e teve como co-ordenantes o bispo de Mogúncia, Karl Lehmann e Franz Josef Kuhnle, bispo auxiliar de Rottenburg-Stuttgart.1 Kasper adotou o lema episcopal "Veritatem in caritate". Kasper veio a ser presidente da comissão para a Igreja Universal e vice-presidente da comissão para a fé da Conferência Episcopal da Alemanha. Em 1994 Kasper foi nomeado co-presidente da Comissão Internacional para o Diálogo Luterano-Católico e , em 16 de março de 1999, Secretário do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, razão pela qual, em 31 de maio de 1999 renunciou ao governo da diocese de Rottenburgo-Stuttgart. Em 21 de fevereiro de 2001 foi elevado a cardeal, com o título de cardeal-diácono de Ognissanti in Via Appia Nuova. Teólogo profundo, Kasper escreveu vários livros. Em 1993 e 2001 publicou a terceira edição do léxico para a teologia e para a Igreja. Em 3 de março de 2001 torna-se presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Atualmente é membro da Congregação para a Doutrina da Fé, Congregação para as Igrejas Orientais, Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, Pontifício Conselho para os Textos Legislativos e do Pontifício Conselho para a Cultura. Nestes cargos foi reconduzido pelo Papa Bento XVI, de quem foi colega de docência universitária. No dia 1 de julho de 2010 o Papa Bento XVI aceitou o seu pedido de renúncia, por limite de idade, do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. No consistório ordinário público de 21 de fevereiro de 2011, o Papa Bento XVI elevou-o à ordem de cardeal-presbítero.

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    Misericordia - Conceito Fundamental do Evangelho - Walter Kasper

    MISERICORDIA.jpg

    Cardeal Walter Kasper

    A Misericórdia

    Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã

    Título

    A Misericórdia – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã

    Autor

    Cardeal Walter Kasper

    Tradutora

    Beatriz Luiz Gomes

    Edição e copyright

    Lucerna, Cascais

    1.ª edição – Janeiro de 2015

    Reimpressão – Julho de 2015; Abril de 2016

    © Princípia Editora, Lda.

    Título e copyright originais

    Barmherzigkeit. Grundbegriff des Evangeliums – Schlüssel christlichen Lebens

    © 2013³ Verlag Herder GmbH, Freiburg im Breisgau

    Design da capa  Rita Maia e Moura

    Lucerna

    Rua Vasco da Gama, 60-B – 2775-297 Parede – Portugal

    +351 214 678 710  •  lucerna@lucernaonline.pt  •  www.lucernaonline.pt

    facebook.com/Lucernaonline  •  instagram.com/lucerna_online

    Prólogo

    A presente obra baseia-se nos rascunhos que elaborei para um ciclo de palestras no âmbito dos Exercícios Espirituais. Na altura, porém, a palestra sobre a misericórdia a que se destinavam não atingiu os objetivos a que me propus. As investigações teológicas não me ajudaram a avançar. Nos anos seguintes, retomei reiteradamente este tema. A reflexão e a investigação levaram-me a questões centrais, tanto no que se refere à doutrina sobre Deus e os atributos divinos, por um lado, como no respeitante à existência cristã, por outro. Pude constatar que a misericórdia, que é tão fundamental na Bíblia, ou caiu largamente no esquecimento na teologia sistemática, ou é tratada apenas de uma forma muito pouco cuidada. Nestas questões, como em tantas outras, a espiritualidade e a mística vão muito adiante da teologia académica. Assim, o presente texto propõe-se estabelecer a ligação entre a reflexão teológica e as considerações espirituais, pastorais e sociais com o intuito de propiciar uma cultura da misericórdia.

    Muitas ideias estão simplesmente anotadas. Atrevo-me a confiar em que quanto aqui fica dito possa servir de estímulo a uma geração de teólogos mais jovens que retomem este percurso e examinem novamente a fundo a doutrina cristã de Deus e as consequências práticas que dela resultam, desenhando desse modo contornos para uma viragem teocêntrica que é tão necessária na teologia e na vida da Igreja. Nesse percurso, a superação do distanciamento entre a teologia académica e a teologia espiritual deve constituir um objetivo importante.

    Agradeço ao Instituto Cardeal Walter Kasper de Vallendar, ao Ex.mo Senhor Professor Dr. George Augustin, aos Ex.mos Senhores Stefan Ley e Michael Wieninger, a revisão que fizeram do rascunho do texto e as correções de estilo. Quero igualmente agradecer à Editora Herder pela boa consultoria editorial que me dispensou.

    Roma, Quaresma de 2012

    Cardeal Walter Kasper

    I.

    A misericórdia – um tema atual, mas esquecido

    1. O clamor pela misericórdia

    O século XX que deixámos para trás foi, sob muitos pontos de vista, um século terrível; e o ainda incipiente século XXI, que com o atentado de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center, em Nova Iorque, se iniciou com um ribombar de tambor de não bons augúrios, não promete, até ao momento, vir a ser melhor. O século XX conheceu dois sistemas totalitários brutais, duas guerras mundiais, das quais só uma causou entre 50 e 70 milhões de mortos, genocídios e assassinatos em massa de milhões e milhões de pessoas, campos de concentração e gulags. O século XXI começou marcado pela ameaça de um terrorismo sem piedade, de injustiças que bradam ao céu, de crianças vítimas de abusos e condenadas à fome e à inanição, de milhões e milhões de expatriados e refugiados, de crescentes perseguições de cristãos; a isto somam-se catástrofes naturais devastadoras sob a forma de terramotos, erupções vulcânicas, tsunamis, inundações, secas, etc. Tudo isto e muitos outros factos são «sinais dos tempos».

    Perante esta situação, parece a muitos difícil falar de um Deus todo-poderoso e ao mesmo tempo justo e misericordioso. Onde estava e onde está Ele enquanto tudo isto acontecia e acontece? Porque o permite, porque não intervém? Todo este sofrimento injusto – perguntam alguns – não constitui o argumento mais sério contra um Deus que é todo-poderoso e misericordioso¹? Na verdade, o sofrimento dos inocentes converteu-se durante a Era Moderna na «rocha do ateísmo» (Georg Büchner); chegou-se a afirmar que a única desculpa para Deus é que Deus não existe (Stendhal). Devido à verdadeiramente diabólica irrupção do mal, continua por vezes a ser colocada a pergunta deste modo: não será necessário negar Deus para maior glória de Deus (Odo Marquard)²?

    Torna-se, com bastante frequência, difícil falar de Deus, mesmo para aqueles que creem n’Ele; também esses se encontram, frequentemente, no meio de uma noite obscura da fé, em que, perante o mal imenso e o sofrimento injusto existentes no mundo, perante os duros golpes do destino e as enfermidades dolorosas incuráveis, bem como o horror associado às guerras e à violência, ficam sem palavras. Fiodor Mijailovitch Dostoievski, que experimentou um grande sofrimento, tanto na sua própria vida como na vida de outros, escreve na sua obra Os Irmãos Karamazóv – ao descrever a cena em que o proprietário de uma quinta ordena a uma matilha dos seus cães que despedace uma criança sob o olhar da mãe desse menino –, que semelhante injustiça clamorosa e o sofrimento do menino, que em si encerra, não podem ser contrabalanceados por nenhuma harmonia futura. Por isso, Dostoievski afirma que deseja devolver o seu bilhete de entrada no céu³. Romano Guardini, um homem profundamente crente, mas também profundamente predisposto à melancolia, escreveu, quando a sombra da morte pairava já sobre ele, que no Juízo Final não permitiria que só fosse interrogado – ele próprio também iria formular algumas perguntas. Esperava obter então uma resposta «à pergunta a que nenhum livro, nem sequer as Escrituras, nem nenhum dogma ou magistério podia responder: porquê, oh Deus, os terríveis desvios até à salvação, porquê o sofrimento dos inocentes, porquê a culpa»⁴?

    O sofrimento no mundo é, provavelmente, o argumento de maior peso do ateísmo moderno. A ele acrescem outros argumentos, como, por exemplo, a incompatibilidade da imagem tradicional cristã do mundo com a imagem científica atual do mesmo, que, determinada pela teoria da evolução e pela neurociência mais recente, apresenta um caráter naturalista⁵. Todos estes argumentos tiveram repercussão. Fizeram com que, na atualidade, para muitos, Deus não exista; pelo menos, são muitas as pessoas que vivem como se Deus não existisse. A maioria parece inclusivamente poder viver muito bem sem Ele, ou pelo menos não pior do que muitos dos cristãos. Esta circunstância transformou a índole da pergunta sobre Deus. Pois se Deus não existe, ou se Deus passou a ser irrelevante para muitos, então protestar contra Deus já não faz sentido nenhum. As perguntas «porquê todo este sofrimento?» e «porque tenho eu de sofrer?» fazem-nos antes calar e ficar sem palavras. A pergunta sobre um Deus misericordioso, que tanto inquietava o jovem Martinho Lutero, nem sequer se coloca hoje a muitos – deixa-os indiferentes e frios.

    A resignação perante a pergunta sobre o sentido e o derrotismo que lhe está intimamente ligado não ocorre unicamente em pessoas que, com excessiva precipitação, desdenhamos como sendo superficiais; atualmente ela também se encontra – como demonstrou Jürgen Habermas – ao nível do pensamento filosófico profundamente consciente⁶. No entanto, nos homens da reflexão fica a sensação do que ainda falta⁷. Deste modo, juntamente com as diversas aflições corporais, já de si suficientemente difíceis de suportar, existem também a aflição espiritual, a desorientação e as experiências de falta de sentido. «Quando secam os oásis utópicos, abre-se um deserto de banalidade e indefinição»⁸. Portanto, abandonar as respostas antigas não significa que se tenha encontrado já outras respostas novas e mais convenientes. O que surge é um vazio.

    Muitos poderão aguentar e suportar com valentia esta situação. Merecem todo o nosso respeito. Outros, ao invés, veem-se empurrados para o desespero. Perante um mundo considerado absurdo, perguntam-se: não seria melhor não ter nascido? Para Albert Camus, o suicídio era o único problema filosófico que merecia ser levado a sério⁹. Mas, com isto, o ser humano não só nega Deus, mas também, ao negar Deus, nega-se a si mesmo. Para outros, o lugar dos deuses e do medo do Deus-juiz é ocupado pelos medos perante fantasmas anónimos, sempre novos e diferentes¹⁰.

    Muitos dos que se dedicam à reflexão percebem a gravidade da situação e retomam a procura. Há mais pessoas à procura e mais peregrinos anónimos do desconhecido do que habitualmente supomos. Estão conscientes de que deixar de colocar a pergunta sobre o sentido equivale, em última instância, a abdicar do ser humano enquanto tal, à perda da sua verdadeira dignidade. Sem a pergunta sobre o sentido e sem esperança, degeneramos num animal engenhoso, que só é capaz de se alegrar com as coisas materiais. Mas então tudo se torna monótono e banal. Deixar de colocar a pergunta sobre o sentido significa renunciar à esperança de que algum dia reinará a justiça. Seriam, então, os homens da violência que, no final, teriam razão, e os assassinos quem triunfaria sobre as suas vítimas inocentes.

    Por essa razão é que nem só os cristãos crentes, mas também muitos pensadores atentos com outras convicções reconhecem que a mensagem da morte de Deus, muito ao contrário do que esperava Nietzsche, não representa sequer a libertação do ser humano¹¹. Aí, onde a fé em Deus se volatiliza, permanecem – como bem sabia o próprio Nietzsche – um vazio e um frio atrozes¹². Sem Deus ficamos completamente sem saída, à mercê dos destinos e dos azares do mundo e das tribulações da história. Sem Deus não existe instância alguma à qual possamos apelar, não existe qualquer esperança num último sentido e numa justiça definitiva.

    Isto mostra que a morte de Deus nas almas de muitas pessoas (Friedrich Nietzsche), «a ausência de Deus» (Martin Heidegger)¹³, o «eclipse de Deus» (Martin Buber)¹⁴ é a verdadeira e mais profunda aflição. Pertence aos «sinais dos tempos» e aos «factos mais graves do nosso tempo»¹⁵. É bem conhecida a frase de Max Horkheimer: «A intenção de salvar um sentido incondicional à margem de Deus é v㻹⁶. Theodor W. Adorno fala da «incompreensibilidade do desespero»¹⁷ e escreve: «A filosofia, na única forma em que é responsável levá-la a cabo quando nos vemos confrontados com o desespero, seria a intenção de considerar todas as coisas tal como se apresentam sob o ponto de vista da salvação. O conhecimento não tem mais luz do que aquela que a salvação faz resplandecer sobre o mundo: tudo o mais se esgota em construções a posteriori e não é mais do que um fragmento da técnica»¹⁸. No sentido de Kant, cabe falar de um postulado que afirma que a dignidade absoluta do ser humano só é possível se existir Deus, e se Ele for um Deus da misericórdia e da graça¹⁹.

    Tal como Kant o entendia, um tal postulado não era uma prova da existência de Deus. O postulado de Kant baseia-se no pressuposto de que a vida humana deve frutificar. A renúncia a este pressuposto pode resultar no niilismo e, a partir daí, num abrir e fechar de olhos, no cinismo do assassinato e do homicídio. Deste modo, o postulado de Kant não é uma prova da existência de Deus, mas sim um claro indício de que a pergunta sobre Deus não se tornou, pelo menos, supérflua. Com ela decide-se o sentido, ou o sem-sentido, da condição humana. É esta a razão pela qual o rumor de Deus se mantém tenazmente perante todos os argumentos demonstrados e pseudodemonstrados²⁰. Não é a fé em Deus que fica em evidência, mas sim as teorias sobre ela que profetizavam uma irreprimível e progressiva secularização e uma extinção gradual da religião, e que acreditavam que seriam até capazes de fazer dobrar os sinos pela morte da fé em Deus²¹.

    Não há razão para nos erguermos como defensores da tese problemática de uma renovação da religião; também assistimos a um reinício/uma renovação do ateísmo²². Mas é legítimo que se convide a que se reflita de novo sobre Deus. Nesse esforço de reflexão, não se trata tanto da pergunta «Deus existe?», por muito mais importante que essa interrogação possa ser. Trata-se antes da pergunta sobre o Deus misericordioso, o Deus «rico em misericórdia» (Ef 2, 4), que nos consola a fim de que nós, pela nossa parte, nos consolemos uns aos outros (cf. 2Cor 1, 3 s.). Porque, aos olhos do círculo vicioso do mal, só pode haver esperança num novo começo se for possível confiar num Deus tão clemente e tão misericordioso quanto todo-poderoso, o único capaz de construir um novo começo e de nos dar coragem para esperar contra toda a esperança e força para o tentar outra vez. Trata-se, pois, do Deus vivo que chama os mortos à vida e que, no final, enxuga todas as lágrimas e tudo renova (cf. Ap 21, 4 s.).

    Santo Agostinho, o grande doutor da Igreja do Ocidente, experimentou, segundo o seu próprio testemunho, a misericórdia e a proximidade de Deus na sua vida precisamente quando mais afastado se sentia d’Ele. Nas suas Confissões, escreve: «A Ti o louvor e a glória, oh Deus, fonte de misericórdia! Cada vez me tornava mais miserável e Tu cada vez me tornavas mais próximo»²³. E acrescenta: «Emudeça no seu louvor a Deus quem primeiro não tenha contemplado as provas da misericórdia divina»²⁴. Com efeito, se não somos capazes de anunciar de uma forma nova a mensagem da misericórdia divina às pessoas que padecem de aflição corporal e espiritual, deveríamos calar-nos sobre Deus. Depois das terríveis experiências vividas no século XX e no ainda incipiente século XXI, a questão sobre a compaixão de Deus e sobre as pessoas compassivas é hoje mais urgente do que nunca.

    2. A misericórdia – um tema fundamental para o século XXI

    Dois Papas da segunda metade do século XX reconheceram com toda a clareza os «sinais dos tempos» e exortaram a que se voltasse a situar a questão da misericórdia no centro do anúncio e da prática eclesiais. João XXIII, o Papa Buono, como lhe chamavam carinhosamente os italianos, foi o primeiro a lançar esse desafio. Já no seu diário espiritual se encontram inúmeras e profundas considerações sobre a misericórdia divina. Para ele, a misericórdia é o mais belo nome de Deus, a forma mais bela de nos dirigirmos a Ele; além disso, as nossas misérias são o trono da misericórdia divina²⁵. E cita o Salmo 89, 2: «Misericórdias Domini in aeternum cantabo» – «hei de cantar para sempre o amor do Senhor»²⁶.

    Por isso, João XXIII ter afirmado, no seu discurso de abertura do Concílio Vaticano II, proferido no dia 11 de outubro de 1962, com o qual traçou o caminho do próprio concílio, que o concílio não se podia limitar a repetir a doutrina tradicional da Igreja correspondia a uma convicção interior amadurecida há muito e a um profundo desejo pessoal. A doutrina da Igreja, assegura o Papa, é conhecida e já está estabelecida. A Igreja «resistiu aos erros de todas as épocas». Amiúde também os condenou, em certas ocasiões até com bastante severidade. Hoje, pelo contrário, a esposa de Jesus Cristo prefere empregar a medicina da misericórdia antes de empunhar a arma da severidade»²⁷.

    Foi assim adotado um novo tom que animou muitos a parar e escutar. O novo tom surtiu o seu efeito no decurso dos tempos posteriores ao concílio. Na verdade, os 16 documentos do concílio não quiseram, nem tão-pouco o quis o Papa, renunciar ou modificar em absoluto qualquer caraterística da doutrina tradicional da Igreja. Mas adotaram um novo tom e propuseram um novo estilo no anúncio e na vida da Igreja. Tal como o Papa, esses documentos aperceberam-se do vínculo existente entre a misericórdia e a verdade²⁸. João XXIII caracterizou esse novo estilo sublinhando a intenção pastoral do concílio.

    Inúmeros debates, e também alguns mal-entendidos, se desenvolveram em torno do conceito de «pastoral», tanto durante o concílio como depois dele, no pós-concílio²⁹. Sem pretender entrar aqui numa discussão técnica, cabe afirmar que o novo estilo pastoral a que se referia João XXIII teve muito que ver com aquilo que João XXIII havia referido no discurso de abertura do concílio com a expressão «medicina da misericórdia». Desde então, o tema da misericórdia tornou-se fundamental, não só para o concílio, mas também para toda a prática pastoral da Igreja pós-conciliar.

    O Papa João Paulo II desenvolveu e aprofundou o que foi sugerido por João XXIII. O tema da misericórdia não surgiu no pensamento de João Paulo II quando ele estava sentado à secretária do seu gabinete. Este Papa conheceu como nenhum outro, e padeceu na sua própria carne, a história do sofrimento da sua época. Cresceu nas proximidades de Auschwitz; na juventude, nos seus primeiros anos de sacerdote e na época em que foi bispo de Cracóvia, viveu os horrores das duas guerras mundiais e de brutais sistemas totalitários e experimentou muitas tribulações no seu povo e na sua própria vida. O seu pontificado ficou marcado pelas consequências de um atentado e, nos últimos anos de vida, pelo sofrimento pessoal. O testemunho do seu sofrimento foi uma homilia mais eloquente do que muitas das homilias que proferiu e do que os inúmeros documentos que escreveu. Desse modo, fez da misericórdia o tema condutor do seu longo pontificado. E engrandeceu com força a Igreja do século XXI³⁰.

    Na segunda encíclica do seu pontificado, Dives in Misericórdia (1980), João Paulo II ocupou-se do tema da misericórdia. O subtítulo dado à edição alemã da encíclica foi «O ser humano ameaçado e a força da compaixão» («Der bedrohte Mensch und die Kraft des Erbarmens»)³¹. Nesta encíclica, o Papa recorda que a justiça por si só não basta, pois a summa iustitia também pode ser summa iniustitia. A primeira canonização do terceiro milénio, que teve lugar no dia 30 de abril de 2000, foi deliberada e programaticamente consagrada ao tema da misericórdia. Nesse dia foi canonizada a religiosa mística polaca Faustina Kowalska (1938), até então pouco conhecida entre nós. Esta simples religiosa, nas suas notas sobre a teologia neoescolástica e a sua doutrina em grande medida abstrata e metafísica, parte dos atributos divinos e, em plena consonância com a Bíblia, caracteriza a misericórdia como o maior e mais elevado atributo de Deus, destacando-a como a perfeição divina por antonomásia³². Deste modo situa-se dentro de uma grande tradição de mística feminina. Basta recordar aqui Santa Catarina de Siena e Santa Teresa de Lisieux.

    Durante uma visita a Lagievniki, o subúrbio de Cracóvia onde viveu a irmã Faustina, o Papa disse, no dia 7 de junho de 1997, que a história tinha inscrito o tema da misericórdia na trágica experiência da Segunda Guerra Mundial como uma ajuda especial e uma inesgotável fonte de esperança. Essa mensagem assinalou, sem qualquer dúvida, a imagem do seu pontificado. Na homilia que proferiu por ocasião da canonização da irmã Faustina, o Papa disse que esta mensagem devia ser como um raio de luz para o caminho do ser humano no terceiro milénio. Durante a sua última visita à pátria polaca, no dia 17 de agosto de 2002, João Paulo II consagrou solenemente em Lagievniki o mundo à divina misericórdia. Nessa ocasião, encarregou a Igreja de transmitir ao mundo o fogo da compaixão. Seguindo uma sugestão da irmã Faustina, o Papa proclamou o Segundo Domingo da Páscoa, o chamado «Domingo in Albis», como o Domingo da Divina Misericórdia.

    Muitos viram um sinal da Divina Providência no chamamento deste Papa à casa do Pai na véspera do Domingo da Divina Misericórdia, no dia 2 de abril de 2005. O Papa Bento XVI assumiu esta interpretação na beatificação do Papa João Paulo II, no dia 1 de maio de 2011, Domingo da Divina Misericórdia. Mesmo durante as exéquias de João Paulo II, celebradas no dia 8 de abril de 2005 na Praça de São Pedro, em Roma, o então cardeal Ratzinger, na sua qualidade de decano do Colégio Cardinalício, tinha sublinhado a misericórdia como a ideia-diretriz do seu predecessor, assumindo-a ele igualmente como um dever pastoral. Disse o seguinte: «Ele [o Papa João Paulo II] mostrou-nos o mistério pascal como o mistério da misericórdia divina. No seu último livro escreveu: o limite imposto ao mal é, em última análise, a misericórdia divina». Trata-se de uma citação literal do livro de João Paulo II que tinha sido publicado poucos meses antes da sua morte sob o título Memória e Identidade, um livro que tece uma vez mais, à guisa de síntese, o principal fio condutor do seu pensamento³³.

    E, na celebração eucarística com que iniciou o conclave no dia 18 de abril de 2005, o cardeal Ratzinger disse ainda: «Ouvimos, com alegria, o anúncio do ano de misericórdia: a misericórdia divina põe um limite ao mal, disse-nos o Santo Padre. Jesus Cristo é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus. O mandato de Cristo tornou-se nosso mandato através da unção sacramental; somos chamados a promulgar não só com palavras mas com a vida, e com os sinais eficazes dos sacramentos […]»NE*.

    Não admira, portanto, que já na sua primeira encíclica Deus Caritas Est (Deus é Amor, 2006) o Papa Bento XVI tenha prosseguido na linha seguida pelo seu predecessor, aprofundada teologicamente naquela. Na sua encíclica social Caritas in Veritate (Caridade na Verdade, 2009) concretizou este tema à luz dos novos desafios. A diferença em relação às encíclicas sociais de Papas anteriores é que não parte já da justiça, mas sim do amor como princípio fundamental da doutrina social cristã. Deste modo, opta por um novo enfoque da doutrina social da Igreja e põe novas tónicas, que retomam uma vez mais a grande meta da misericórdia num contexto mais amplo.

    Assim, houve três papas da segunda metade do século XX e do início do século XXI que nos propuseram o tema da misericórdia. Verdadeiramente, não se trata de um tema secundário, mas sim de um tema fundamental do Antigo e do Novo Testamento, de um tema fundamental para o século XXI, em resposta aos «sinais dos tempos».

    3. A misericórdia – um tema imperdoavelmente esquecido

    Sublinhar a misericórdia como tema central da teologia do século XXI, isto é, para o discurso sobre Deus que oferece justificação racional para a fé em Deus, importa questionar de um modo novo a importância central da mensagem da misericórdia divina no testemunho do Antigo e do Novo Testamento³⁴. Ao tentar levar a cabo esta pesquisa, chega-se à assombrosa, mas também alarmante, constatação de que este tema, fundamental para a Bíblia e de atualidade para a experiência contemporânea da realidade, só ocupa, no melhor dos casos, um lugar marginal nos dicionários enciclopédicos e nos manuais de teologia dogmática. Tanto nos manuais tradicionais de teologia dogmática como nos mais recentes, a misericórdia de Deus é tratada unicamente como mais um dos atributos que resultam da essência metafísica do mesmo Deus. Deste modo, a misericórdia não desempenha nenhum papel determinante em todo o sistema³⁵. Nos manuais mais recentes está muitas vezes ausente³⁶ e, se aparece, aparece só de passagem. Existem exceções que confirmam a regra, mas que não logram alterar de maneira relevante as regras gerais³⁷.

    Isto só poderá ser qualificado de dececionante, ou até mesmo de catastrófico. É necessário repensar do princípio ao fim a doutrina sobre os atributos de Deus, concedendo à misericórdia divina o lugar que lhe pertence, pois a sobredita constatação não faz justiça à importância fundamental da misericórdia no testemunho bíblico, nem às terríveis experiências do século XX, nem ao medo do futuro que nos interroga nos alvores do novo século. Numa situação em que muitos dos nossos contemporâneos se sentem desalentados, sem esperança e desorientados, a mensagem da misericórdia divina deveria fazer-se valer enquanto mensagem de confiança e de esperança. Deste modo, sublinhar a importância da misericórdia divina à luz da situação atual representa uma enorme provocação para a teologia.

    O afastamento da reflexão teológica em relação à mensagem da misericórdia, fundamental na Bíblia, tem como consequência que este conceito se tenha degradado com frequência, degenerando numa pastoral e numa espiritualidade «suaves», numa brandura sem energia nem vigor, carente de determinação e de um perfil claro e que procura unicamente fazer justiça, de um ou outro modo, a qualquer pessoa. Uma prática assim flexível pode ser até certo ponto compreensível como reação a uma prática anterior implacavelmente rígida e legalista. Mas a misericórdia, quando nela já nada se percebe da comoção que supõe estar perante o Deus santo, nem nada se percebe da justiça de Deus, nem do juízo ao qual teremos de nos submeter, quando o sim já não é um sim e o não já não é um não, quando ela – a misericórdia – não supera as exigências da justiça, mas antes permanece abaixo delas, então torna-se uma pseudomisericórdia. O Evangelho ensina a justificação do pecador, mas não a dos pecados; é por essa razão que devemos amar os pecadores, mas odiar os seus pecados.

    A razão deste tratamento negligente da misericórdia manifesta-se quando se observa que, nos manuais, são os atributos divinos que resultam da essência metafísica de Deus enquanto ser subsistente (ipsum esse subsistens) os que ocupam o primeiro plano: simplicidade, infinitude, eternidade, omnipresença, omnisciência, omnipotência, etc. A determinação metafísica da essência divina, que impregnou toda a tradição teológica desde os primeiros tempos da Igreja, não tem, de modo algum, de ser radicalmente questionada; no entanto, temos de nos ocupar da sua legitimidade e dos seus limites³⁸. Trata-se aqui unicamente de mostrar que, no marco dos atributos metafísicos divinos, apenas existe lugar para a misericórdia, a qual não resulta da essência metafísica de Deus, mas sim da sua autorrevelação histórica, o mesmo se passando em relação à santidade e à ira de Deus, isto é, à sua oposição ao mal. Nestes termos, esquecer a misericórdia não é um problema marginal e secundário da doutrina de Deus; antes pelo contrário, isso confronta-nos com o problema fundamental da determinação da essência de Deus e dos atributos divinos em geral, e obriga-nos a reformular a doutrina de Deus.

    O ponto de partida metafísico tradicional da doutrina de Deus implica um problema adicional para o discurso sobre a misericórdia divina. Pois se Deus é o próprio Ser, desta absoluta plenitude de ser resulta a absoluta perfeição de ser de Deus; e uma tal perfeição, posto que o sofrimento é entendido como carência, inclui a impassibilidade (apátheia) divina perante o sofrimento. Assim, em razão do seu ponto de partida metafísico, era difícil para a dogmática falar de um Deus capaz de compartilhar o sofrimento³⁹. Não haveria outro remédio senão excluir o dado de que Deus sofre (pati) com as suas criaturas num sentido passivo: só se poderia falar de compaixão e de misericórdia num sentido ativo, no sentido em que Deus Se opõe ao sofrimento das suas criaturas e o remedeia⁴⁰. A pergunta que permanece em aberto é se, com isto, se faz justiça à compreensão bíblica de Deus, que sofre com as suas criaturas e, enquanto misericors, tem um coração (cors) junto dos pobres e para os pobres (miseri)⁴¹. Um Deus concebido de forma tão apática pode realmente sentir empatia?

    De um ponto de vista pastoral, isto era uma catástrofe, pois, para a maioria das pessoas, um Deus concebido de modo tão abstrato

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