Inspetor Sopa e o crime do mosteiro
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Inspetor Sopa e o crime do mosteiro - Andréa Gaspar
A CONFUSÃO
Naquela manhã de outono, o inspetor Sopa subia desajeitadamente a rampa que dava acesso ao Mosteiro de São Bento. Poderia ter pegado o elevador, uma comodidade instalada há pouco para facilitar o acesso dos turistas, mas optou pela caminhada, que lhe permitiria fazer um reconhecimento mais detalhado do local do crime.
Logo cedo, um pouco antes, deparara-se com o caos e o sensacionalismo na porta da delegacia, uma conjunção de elementos que passara toda a vida profissional tentando evitar. Um monge havia sido assassinado, e o abade dom Felipo ligara para o dr. Rubens, vulgo delegado Armani, como era conhecido entre os funcionários, para que ele ajudasse a resolver a situação sem grande estardalhaço. O delegado Armani tinha, ele próprio, estudado no Colégio São Bento, e sua família era antiga conhecida do abade e da congregação, com a qual contribuía todos os anos.
O suspeito, um religioso, funcionário do mosteiro, havia sido pego em flagrante com a arma do crime na mão – uma faca. A polícia foi acionada, e o suspeito, encaminhado à delegacia. O Armani (que adorava holofotes) contatou a imprensa, que já estava a postos quando o inspetor Sopa chegou:
— Porra, Sopeta! Tá uma doideira isso aí! Tem repórter pra tudo que é lado, repórter e monge! Parece a visita do papa — gracejou Trombeta, adivinhando o mau humor do amigo.
— Tô sabendo, Trombas. O Armani aprontando das suas, como sempre…
— Prenderam um homem aí. Vai lá, que o Armani tá te esperando.
O Sopa bufou. Não gostava quando o delegado se adiantava a ele nas investigações. Aquele estilo espalhafatoso de resolver crimes não lhe agradava nem um pouco. Além disso, o Armani não queria saber o que ocorrera de fato. Queria era ter um nome para oferecer para os jornalistas, deixá-los satisfeitos e assim ganhar crédito com a imprensa:
— Cacete!
Ao chegar à sala do dr. Rubens, encontrou-o em um estado quase febril de tanta euforia:
— Fala, Adauto!
Quando chamava o inspetor pelo seu nome verdadeiro, o Sopa sabia que vinha chumbo grosso.
— O que manda? — o inspetor respondeu perguntando.
O delegado narrou em poucas palavras o acontecido. Lá pelas seis da manhã tinha recebido em seu telefone pessoal a ligação do abade, pedindo que fosse até o mosteiro, porque um homem havia sido pego em flagrante após ter assassinado um dos monges.
— E ele confessou?
— Não sei bem. Mandei a PM lá pra efetuar a prisão. Ainda não conversei com ele, mas me parece meio óbvio. O cara foi pego com a faca na mão, todo ensanguentado, às cinco e pouco da matina. Não creio haver espaço pra dúvida. Você quer ir fazer o interrogatório agora?
— Ainda não. Prefiro ir antes ao mosteiro. Avaliar o local do crime.
O inspetor, na verdade, queria esperar a poeira baixar na delegacia. De nada adiantaria interrogar o suspeito naquele clima de programa de auditório.
— Certo, mas o Silva não vai poder te acompanhar. Ele tá indo atender outra ocorrência lá no Centro…
— Vou pegar uma carona com ele até a praça Mauá, mas ele não precisa me levar até lá…
— Quer que eu vá com você? Acho melhor não, né? Tem muito jornalista aqui. Vai dar muito trabalho esvaziar a delegacia.
O delegado antecipava as próprias respostas porque circunstâncias como aquela davam sentido à sua vida, alimentavam a sua vaidade, e ele não perderia aquela oportunidade por nada. O inspetor Sopa, por sua vez, não insistiu. Muito pelo contrário; concordou que era primordial a permanência do delegado na DP. Antes de sair, passou na mesa do parceiro de tantos anos e pediu:
— Tô indo lá no mosteiro dar uma olhada na cena do crime. A perícia já deve estar lá. Faz um favor pra mim, Trombas. Vai até a cela do suspeito, veja se ele tá precisando de algo e não deixe que ele entre em contato com ninguém da imprensa. E se possível nem com o Armani.
— Deixa comigo, Sopeta. — E fez com o polegar o sinal de positivo.
O MOSTEIRO
O Sopa adentrou o átrio da igreja com um misto de encantamento e pesar. O silêncio e o rigor do espaço envolto pelo manto da riqueza e grandiosidade do mosteiro fizeram-no pensar na insensatez humana e nas incongruências entre a matéria e o espírito.
O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, fundado em 1590 por dois monges vindos do Mosteiro da Bahia, em 1589, vinte e quatro anos depois de fundada a cidade, foi a segunda ordem religiosa a se estabelecer no Rio, sendo os beneditinos antecedidos apenas pelos jesuítas. Em 1596 já estava o mosteiro consolidado, em local apropriado, onde ainda se encontra. O interior da igreja é riquíssimo. Em estilo que vai do barroco ao rococó, é revestido em talha dourada, ocupado pela capela-mor e pelos lampadários de autoria de Mestre Valentim, um dos grandes nomes do barroco brasileiro.
Assim que transpôs os pesados portões de ferro que isolam o mosteiro do mundo exterior, Sopa não pôde evitar um sentimento de falibilidade e impotência diante da morte e do crime que precisava desvendar. O crime ocorrera próximo à sacristia. O corpo permanecia no recinto, coberto por uma capa lilás com uma cruz bordada em dourado. Apenas uma das mãos estava à mostra, pousada sobre uma bíblia que o monge possivelmente carregava na hora do crime. O sangue se espalhava pelo mosaico de ladrilho preto e branco, realçando a composição geométrica do piso. A área estava toda isolada com fita amarela, dando a impressão, para os desavisados, de que se tratava de uma instalação artística tétrica, alguma performance de mau gosto. A perita já fotografava o local:
— Bom dia, inspetor — respondeu sem desgrudar os olhos da câmera.
— Bom dia, Clara. Alguma observação relevante?
— Da minha parte, não. O dr. Soares tá chegando daqui a pouco.
— Que bom. Vou aguardar. Quem deu o flagrante do crime?
— Acho que foi o próprio abade. Sei lá.
O Sopa circulou pelo espaço, levantou o manto para verificar se havia mais de um ferimento, observou com curiosidade a faca utilizada pelo assassino, uma espécie de adaga que ainda não havia sido recolhida do local, e depois refez umas três vezes o trajeto da sacristia ao local do crime. Finalmente, sentou-se no banco de madeira que os fiéis teriam ocupado se tivesse havido missa naquela manhã. Ali ficou, numa meditação compulsória, tentando pôr ordem nos pensamentos, enquanto aguardava a chegada do dr. Soares.
O VOTO DE SILÊNCIO
Um silêncio que se podia ouvir, como dizia o Sopa, reverberou sobre aquela cena quase gótica, misturando-se à temática religiosa dos painéis barrocos que enfeitavam o altar. O Sopa ficou ali, envolto por aquela atmosfera bíblica, calado e reflexivo, até que uma voz conhecida o despertou:
— Sopa? Imaginei que te encontraria por aqui. E aí? Alguma conclusão?
O dr. Soares se aproximou e o cumprimentou com um aperto de mão quase delicado. Estava meticulosamente vestido de branco, sapatos brancos com uma fivela dourada, polida de lado, e gravata borboleta em tons sóbrios, apropriada para a ocasião. Ele portava uma maleta de couro, a mesma desde que o Sopa o conhecera, há mais de vinte anos. À primeira vista, parecia nova em folha de tão bem conservada.
— Conclusão?! Nada — respondeu o Sopa. — Mas eu gostaria que você se detivesse no ferimento. É possível precisar, por alto, quantas facadas foram desferidas?
— Vamos ver — disse o médico, passando por baixo da fita de isolamento e empurrando a perita, que usava flashes e expunha a condição degradante do cadáver.
— Para que esse carnaval todo? — perguntou, irritado. — Você pode conseguir bons resultados sem expor o nosso mortinho dessa maneira. Quanta desumanidade!
Clara, a fotógrafa que há anos fazia a perícia de crimes com morte, olhou para o médico com desdém e se afastou. Conhecia bem a personalidade do Maluco
, como costumava se referir a ele.
O dr. Soares odiava fazer esses serviços externos; sabia que os outros funcionários encarregados da coleta de provas não viam o morto como ele via: um ser humano com uma história de vida para contar e que teve o azar de estar no lugar errado na hora errada.
O Sopa conhecia as excentricidades do colega e preferiu ficar mais afastado enquanto o médico trabalhava. Sabia que, se o morto estivesse no necrotério, a essas horas o dr. Soares já teria dado a ele o frescor que tinha quando vivo, talvez até melhorando aspectos de sua aparência. Ali, no entanto, no espaço circunspecto do mosteiro, nada podia ser feito, a não ser tratar a vítima com dignidade e respeito.
O médico fez uma inspeção completa no cadáver, como se estivesse examinando um paciente no consultório, tomando todas as precauções para que a condição humilhante do corpo não fosse exposta. Quando percebeu que o colega estava próximo de terminar, o Sopa se aproximou:
— Então?
— Bom, não é possível precisar quantas facadas foram desferidas, mas aparentemente não mais do que três. A morte se deu em decorrência de uma hemorragia causada pelo rompimento da artéria abdominal, e deve ter sido quase instantânea.
— Nada de anormal, então?
— Bom, tem um pequeno sinal aqui no local da perfuração. Pode ter sido feito propositalmente, mas é difícil garantir, porque aparentemente os ferimentos foram bastante ao acaso. Chama atenção o fato de que o assassino tenha utilizado uma adaga para cometer o crime, não? Provavelmente uma peça do acervo do próprio mosteiro. Temos que ver isso. — O médico fez uma pausa. — E tem essa posição do braço sobre a bíblia: não é impossível, mas é bastante improvável que ele tenha caído nessa posição aleatoriamente.
— Também achei bem estranho isso. E você encontrou alguma evidência médica relevante que possa indicar a autoria do crime?
— Não, mas talvez o suspeito detido seja mesmo o culpado, não? Pelo