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Eu não sou a sua empregada!
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Eu não sou a sua empregada!
E-book138 páginas2 horas

Eu não sou a sua empregada!

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Sobre este e-book

"Eu não sou a sua empregada!" é um emocionante relato da história de vida da autora e sua família. Com destaque para a capacidade de superação de sua mãe perante a pobreza, as lutas familiares e os transtornos mentais, a obra transporta o leitor para uma jornada tocante e inspiradora. Por meio de capítulos, a autora expõe reflexões sobre temas relevantes e os intercala com vivências de sua família. A linguagem utilizada é clara e acessível, tornando a narrativa legível para um público amplo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de abr. de 2024
ISBN9786553559103
Eu não sou a sua empregada!

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    Eu não sou a sua empregada! - Elisângela Gonçalves Lacerda

    AO RICO O ESTUDO, AO POBRE O TRABALHO

    Não há como construir um futuro sólido sem compreender as marcas deixadas pelo passado. O país que durante mais de três séculos escravizou pessoas carrega em sua história o peso da segregação social. É difícil reparar em apenas algumas décadas uma dívida histórica de exploração, humilhação e violência para com descendentes de pessoas que foram escravizadas. Soma-se a isso a subjugação das populações tradicionais que existiam no território, hoje conhecido como Brasil, quando da chegada dos colonizadores.

    Nossa população é constituída pela mistura de várias etnias e por isso temos várias cores. Mas os colonizadores se sobrepuseram e definiram muitos aspectos de nossa vida social. Qual a herança de gerações e gerações de descendentes de pessoas escravizadas e exploradas? O trabalho. O fato de não possuir bens materiais e reservas de capitais fez com que uma grande parcela da população brasileira tivesse como meio de sobrevivência apenas a venda da sua força de trabalho.

    Aquele que nasce no seio de uma família pobre compreende desde cedo que trabalhar é uma necessidade. Em contextos rurais isso é ainda mais premente, tendo em vista que as atividades laborais no cultivo da terra demandam muito esforço físico. Sendo assim, desde cedo as crianças que nascem no campo aprendem a realizar pequenas tarefas, seja retirando a erva daninha e afugentando pássaros das plantações, ajudando na colheita ou, ainda, realizando atividades domésticas.

    No imaginário nacional se construiu uma percepção distorcida de que uma criança trabalhar é algo importante para a construção do seu caráter. Mas, perceba, isso se refere à uma criança pobre. Não se espera que uma criança rica trabalhe, é como se somente o fato dela ser rica lhe conferisse caráter. O pobre deve aprender desde tenra idade o valor do trabalho, porque, numa sociedade altamente desigual, espera-se que ele passe a vida inteira vendendo a sua força de trabalho. Caso isso não ocorra, o indivíduo pode se tornar um desviante, passando a cometer delitos que tenderão a comprometer a estrutura social estabelecida.

    Nesse contexto, é preciso destacar que o próprio conceito de trabalho é desenvolvido e disseminado de acordo com os interesses do capital. De um ponto de vista geral, o trabalho, no âmbito de uma sociedade, pode ser entendido como sendo o conjunto de atividades, físicas e mentais, realizadas por alguém com a finalidade de alcançar um determinado fim. Levando em consideração este conceito, até a atuação de um ladrão pode ser compreendida enquanto sendo um trabalho, tendo em vista que essa prática envolve questões como planejamento, conhecimento prévio, disponibilidade de artefatos, etc. Obviamente trata-se de uma atividade ilegal, mas a ilegalidade não anula a sua natureza enquanto trabalho.

    Por certo que a percepção do roubo como um trabalho é uma ideia que precisa ser combatida, pois ela atenta contra a ordem social desigual estabelecida. Sendo assim, qual é o ideário de trabalho difundido entre as camadas mais pobres da sociedade? Observe que é a ideia de que ele demanda considerável esforço físico e o empenho de várias horas de vida. Associado com baixo retorno financeiro. Tudo isso sobre a falácia da natureza não qualificada da atividade desenvolvida, que serve para justificar a alta exploração do trabalhador.

    Os pobres desde cedo são educados na crença de que a preguiça é um vício a ser combatido e que o trabalho extenuante é o que dignifica. O lado mais cruel é o fato de que o trabalhador se vê obrigado a vender o seu bem mais preciso e impossível de ser reproduzido, o tempo. Pessoas detentoras do capital ampliam essa grande riqueza, o tempo, comprando-o do trabalhador, para realizar as tarefas que ele não quer fazer. Assim lhe sobra tempo para se dedicar a tarefas mais agradáveis.

    Dessa maneira, muitas mulheres contratam empregadas domésticas para realizar as tarefas domésticas no seu lugar. Graças a isso ela pode se dedicar a tarefas de lazer ou vender a sua mão de obra qualificada a um preço bem maior do que aquele que paga à empregada.

    Ao observarmos as oportunidades existentes para os filhos de pessoas pobres no Brasil, perceberemos que elas são limitadas. O pânico da classe trabalhadora é ver os seus filhos envolvidos com a bandidagem. Por isso, desde cedo, faz parte da educação das crianças introduzi-las no mundo do trabalho. Seja na manutenção da casa ou no cabo da enxada.

    Essa alienação intencional acerca do trabalho traz graves consequências para a formação desses indivíduos enquanto cidadãos. Nesse contexto, o ócio é visto como algo negativo, um desvio de caráter manifesto pela preguiça. A alcunha de preguiçosa é algo a ser evitada, comumente utilizada para denegrir as pessoas. A possibilidade de ter o ócio enquanto processo mental produtivo, tendo em vista os resultados da atividade intelectual, é algo historicamente negado à classe trabalhadora.

    Essa impossibilidade de dedicar um tempo de qualidade ao lazer, ao pensamento livre e ao próprio descanso compromete sobremaneira a formação das pessoas pobres. A própria atividade de leitura ou escrita são vistas como algo negativo, coisa de gente preguiçosa ou esnobe. Quando se analisa a questão do ponto de vista de gênero, percebemos que com as mulheres as exigências são ainda maiores. Isso porque, além de auxiliar no trabalho do campo ou trabalhar fora, elas precisam fazer os serviços domésticos. Ver uma mulher sentada, sem fazer nada, em plena luz do dia, é algo absolutamente reprovável. Por isso, sempre foi comum as mulheres, enquanto sentadas, estarem cozendo, bordando, tricotando, etc.

    Com base nesses fatores, imagine como foi complexa a inserção da escola regular no meio rural brasileiro. Além de não se ter uma cobertura adequada, a ida dos filhos para a escola significava menos tempo para auxiliar nas tarefas domésticas e no trabalho rural. Nas décadas de 1950 e 1960 o Brasil teve um expressivo crescimento nas taxas de alfabetização, mas não podemos perder de vista que a maior parte da população passou a residir em cidades. Portanto, no meio rural as condições não foram exatamente as mesmas.

    Estudar sempre foi um privilégio reservado às classes dominantes do país. Com o avanço da industrialização e do próprio processo de urbanização, a demanda por trabalhadores ditos qualificados aumentou. Isso fez com que se ampliasse o acesso ao ensino regular no Brasil. Contudo, ainda hoje, estudar não é para todos. Muitos jovens das classes trabalhadoras são obrigados a abandonar os estudos ou nem mesmo chegam a iniciá-los. Os motivos são os mais diversos, desde a necessidade de trabalhar para auxiliar no sustento da família, até por questões de discriminação e preconceito.

    Como já sabia Condorcet, a desigualdade de instrução segue sendo a mais perversa de todas as desigualdades.

    ****

    Era apenas mais um dia quente de sábado no Pão de Açúcar, um lugar perdido em meio a outro lugar perdido no Vale do Jequitinhonha. No céu as nuvens passeavam prometendo chuva, geralmente não passava disso. O calor e o mormaço pareciam intimidar até mesmo as moscas, que vagavam sem rumo sobre o coador de café. Na parte da frente da choupana uma criança torturava uma minhoca com uma vara. Sua atividade só cessava quando ouvia os gritos estridentes que vinham de dentro da choça. Quando isso ocorria, suas mãos voavam para as laterais da cabeça, numa tentativa vã de barrar a penetração do som.

    Aquele tormento teve início já nas primeiras horas da manhã, eram duas horas da tarde e os berros continuavam, só que agora mais intensos. Na penumbra do único espaço privativo do casebre ouviu-se um choro fraco de criança recém-nascida. Quando a parteira lhe conduziu pela mão, Aurea se emocionou diante daquele pacote com olhos, embrulhado em trapos. Era sua irmã.

    Aquela não foi a sua primeira experiência com partos, mas lhe pareceu assustadora. Muitas outras viriam, algumas ainda mais apavorantes. De fato, perderia a conta do número de vezes que a mãe engravidou, porém nada limparia de suas memórias os momentos de terror vivenciados quando o bebê estava virado. O que ocorreu algumas vezes.

    Quando isso acontecia era necessário montar uma verdadeira força tarefa para que a mãe recebesse cuidados médicos. A primeira dificuldade era conseguir retirá-la da cama, tendo em vista a sua obesidade. Homens se juntavam e construíam uma espécie de maca, com varas de árvores derrubadas nos arredores e um amplo e resistente cobertor. Em seguida era necessário carregá-la alguns quilômetros até a rodagem, onde um carro a levaria para o hospital da pequena cidade de Jacinto.

    Nelza engravidou treze vezes, alguns nasceram mortos, outros morreram ainda na primeira infância. Sete vingaram. Aurea, Marilene, Vânizia, Jovelina, Aldemir, Roberto e Márcio. As limitações impostas por uma vida no campo lhe trouxeram filhos na mesma medida que os levou.

    Os dias na fazenda transcorriam com uma monotonia agoniante. O pai passava os dias na lida da roça, voltava para casa no final da tarde. Isso quando não era dia de pagamento. Nos dias de pagamento ele não tinha hora pra chegar. Entre um gole e outro, enquanto fazia a feira, se perdia no tempo e às vezes perdia até a própria feira.

    O casebre construído pelas mãos do próprio Teotônio, nas terras cedidas pelo padrão, não apresentava conforto algum. Dois cômodos, chão batido, paredes de pau-a-pique e telhado de palha. Ao lado de fora uma pequena cobertura para o fogão a lenha. Energia elétrica era coisa de sonho futurista, a noite a vida era iluminada pela lamparina. Dormia-se cedo, para economizar querosene e porque pela manhã a lida começava antes mesmo do raiar do sol.

    Dona Nelza geria a casa e ajudava na lavoura. Enquanto as crianças iam crescendo, uma passava a cuidar da outra. Alguns cocões eram sempre distribuídos a título de estímulo. Quando o trabalho apertava na roça, todos que tinham condições eram convocados. Neste então, descascar e moer mandioca se tornava brincadeira.

    Na imaginação fértil de crianças com tantas possibilidades à disposição, qualquer coisa se torna brinquedo. As irmãs eram comumente vistas escolhendo sabugos e palhas de milho após a debulha. Uma folha mais larga poderia representar um vestido mais vistoso para a futura boneca. Gravetos e pedras se tornavam deslumbrantes currais e boiadas. A imaginação não tinha freio.

    Vez ou outra a discórdia se instalava, geralmente relacionada com a distribuição das tarefas domésticas. Certa feita, Marilene chegou a ameaçar Vânizia com um cutelo. Recebendo como revide uma bela dentada na barriga. Cada uma recebeu a sua cota de cicatrizes.

    As mudanças vieram com a entrada

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