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Os Nômades Não Têm Vitrola.
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Os Nômades Não Têm Vitrola.
E-book280 páginas4 horas

Os Nômades Não Têm Vitrola.

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Sobre este e-book

A ditadura militar imposta pelo Golpe de 64 faz com que dois jovens tenham que se exilar nos Estados-Unidos, ilegalmente. Mas mal sabiam de todos os riscos que corriam. Em Os nômades não têm vitrola , acompanha-se a jornada sobre acharmos a nós mesmos em meio a multidão; uma história de amadurecimento que envolve muita música, cinema e encontros memoráveis. O narrador-personagem, que não tem nome, tal como não tem vitrola, compartilha conosco episódios que marcaram não só a ele, mas que se tornaram retratos de uma época. Seus olhos foram uma apurada lente, fotografando momentos dos quais o único registro é a oralidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de abr. de 2024
Os Nômades Não Têm Vitrola.

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    Os Nômades Não Têm Vitrola. - João Guilherme Gurgel

    Os nômades não têm vitrola,

    de João Guilherme Gurgel.

    (romance)

    Dedico essa porra à sharon tate, jay serbing, abigail folger, wojciech frykowski, jim morrison, ray manzarek, janis joplin, jimi hendrix, brian jones, e mais uma porrada de gente que agora me falha a memória, mas que, por infortúnios da vida, acabaram ficando pelo caminho; perecidas, mas, contrastando com meu constrangedor esquecimento, jamais desbotadas da parede da memória.

    "Follow her down to a bridge by a fountain

    Where rocking horse people

    Eat marshmallow pies

    Everyone smiles as you drift past the flowers

    That grow so incredibly high

    Newspaper taxis appear on the shore

    Waiting to take you away

    Climb in the back with your head in the clouds

    And you're gone"

    — Lennon & McCartney, 1967

    I

    Não me lembro de como parei ali, tal como não lembro da maioria das coisas que fiz na vida. Aliás, me lembro, só que a partir do momento em que se está em minha memória, já não há mais nenhuma confiabilidade. Minha memória, que é um registro da (des)humanidade perante meus próprios olhos, é completamente falha. Mesmo eu não querendo admitir, sempre soube que eu tenho algo como um par de óculos imaginário, um filtro, algo perante minhas retinas que consegue deturpar o mundo, que cria algo em meu horizonte que eu chamo de meu mundo, e por muito tempo erroneamente acreditei que o que acontece aqui dentro é a própria existência; a desilusão abriu meus olhos. Daí, advém mais uma das questões metafísicas, aquela que só a idade pode nos proporcionar; a imprecisão. Nada é preciso, tal como esta minha história. Coloquem-me diante ao polígrafo, ao laço da verdade das amazonas, e tudo que eu aqui escrever sairia assim descrito, e, mesmo assim, não há garantia nenhuma da verdade.

    E se não existisse essa tal de memória, ou se as pulsões sobrevivencialistas não se sobrepujassem em detrimento a racionalidade humana, não haveria o suposto

    ser humano. Racionalidade é o caralho. A estrada, e me refiro realmente às rodovias, me provaram que não existe mais nenhuma racionalidade. Não que eu ache que um dia tenha existido.

    Pois há um grande nada, alguma espécie de vazio que toma a conta de minha mente antes daquele fatídico exílio. O fato em questão, a apoteose narrativa, o Deus Ex Machina, o momento em que a audiência beija o abastado ingresso, só é um pretexto para escrevê-la; não falo sobre mim, falo duma época. Tudo isto é apenas pretexto para a degustação do elixir de minha própria existência; a memória.

    A memória não te foderá. Escrevo, pois, a memória, em meu caso, é como membros de família, onde não importa o inseticida ou vermicida que tome, sempre estarão lá para atazaná-lo. Fostes em tal instituição falida e reprovada marxistamente que a epopeia iniciou-se, naquele tempo em que todo casal usuário da planta do cânhamo ou estudante de disciplinas ligadas aos dilemas que tecem o Homo sapiens queria ser, dali trinta anos, os novos Sartre & Simone. O Proibido Proibir era um estilo de vida que definia sua aprovação na sociedade, ambiguamente; creio que todo jovem oriundo desta época ficava a todo tempo entre a cruz e a espada, entre os polos de um termômetro. Não sei se é certa síndrome de repetição de comportamento, ou uma simples pulsão humana, mas há alguma coisa no psiquê que nos faz, na fatídica época que ainda não temos o aparato cognitivo completo, querermos seguir os passos alheios a todo custo; em terras juvenis, sempre o espírito anárquico consome toda a racionalização.

    Sempre houve uma divisão muito clara entre os jovens; tem os clássicos, os pastinhas, aqueles que ainda dão ouvidos aos seus conservadores e retrógrados pais (que em noventa e nove porcento das vezes estão certos), que ajudam as idosas a atravessarem as ruas, que vão a igreja e cultuam uma imagem europeizada de algum ser que pelo menos trezentos anos antes ficou com fama de milagreiro, que estudam de verdade, pelo gosto ao conhecimento, que até possuem certo constrangimento por serem jovens... e o outro grupo, que eu costumo denominar com o termo foda-se. Digamos que eu fiz parte do último; e nisso não há pecado.

    Querer parar um jovem é como querer parar um trem com um palito de fósforo. O

    conflito em questão se deu ao contexto, a época. Era uma época difícil, pelo menos para quem teimasse em ser do segundo-grupo-de-jovens, o que era meu caso. Nas ruas, exalando dos bueiros, das sarjetas, das pessoas, emanava algum tipo de medo, que não era bem um medo, mas como uma angústia, uma náusea, um sereno enebriado; em todos os lugares em que botávamos os pés, era como se sentíssemos uma profunda agonia, um mal-estar societário nada freudiano, um sentimento indefinível que consumia nossas almas aos poucos; e, mesmo com todos nós na época de nos revoltarmos com tudo, jamais ousávamos tocar neste assunto; este mal-estar nos calava. Tirava nosso ímpeto de juventude.

    Havia um medo de tudo, uma precaução em todo tipo de ato. Não fodíamos da mesma forma, não líamos os jornais da mesma forma, não andávamos para frente sem, de canto de olho, estarmos sempre olhando para trás. Até para cagar tínhamos cuidado, precaução, medo. E numa dessas cagadas me livrei de uma; nos domingos em que eu religiosamente visitava minha avó, ela religiosamente me alertava sobre os perigos da recém-chegada pós-modernidade, com seus clássicos oh meu filho cuidado com esse pessoal que tu andas visse, e eu religiosamente tentava a acalmar com aqueles tá bom vovózinha tá bom, mas meio que era em vão, para os dois lados. Comia aquelas tortas maravilhosas em sua casa, e numa dessas cheguei na república quase me cagando. Tive que sair tantas vezes de madrugada para ir ao banheiro que acordei Patrícia, que já estava meio puta comigo por eu não ser tão engajado naquelas coisas estudantis tal como ela. Nos primeiros raios de sol seguintes liguei para o escritório e cancelei minha ida, ocultando informações sobre o meu estado insalubre e, voltando a dormir, pude sentir seu beijo, mesmo estando em cóleras comigo.

    Creio que tudo que vivi fora como um filme, dado ao choque daquele dia; analiso e chego à conclusão de que consegui memorizar cada segundo regresso e progresso a este momento, o mesmo da cena que encerra toda essa jornada. Não que naquele dia tivesse algo que fissuraria minha alma; fora algo que me marcara.

    Em meio a várias idas ao banheiro, liguei ao rádio (que, convenhamos, era um lixo) e tentei ir mudando de estação em estação. Tinha aquelas sintonias horríveis, que só tocava música de gente esquisita, aqueles Villa-Lobos dos quais todos que gostam são, no mínimo, virgens de carteirinha ou consideram o aperto de mãos um ato sexual. Tinha aquelas que passavam as propagandas militaristas, é óbvio, e naquele momento nunca quis cuspir tanto nas bandeirinhas verde e amarelas.

    Nestas mesmas rádios tocava aquele lixo da Jovem Guarda, um tipo de música que sempre foi um expectorante natural para meu estômago; desde jovem, a voz do Roberto Carlos me faz querer vomitar. Não deu outra; despejei a torta do dia anterior ainda no corredor, no caminho para o vaso. Limpando meu queixo com a camisa, botei numa sintonia qualquer, que tocava aquela do eu tomo uma coca-cola ela pensa em casamento, depois aquela do estava à toa na vida, e até que a voz do locutor interrompera a passagem da banda.

    — ATENÇÃO! CONFUSÃO NO CENTRO DA CIDADE! CONFUSÃO NO CENTRO

    DA CIDADE!

    Barulhos de tiros acompanhavam aquele anunciar. Tinha uns plecs plecs plecs que, julgando ser tiros, posteriormente entendi serem cavalos. De súbito fiquei trêmulo, com o coração palpitando, com a sensação de que Patrícia estava envolvida com tudo aquilo. Tentei sair e pegar um ônibus para seu trabalho, mas

    todos os transportes da cidade maravilhosa tinham sido desligados de seus serviços. Telefonei uma porrada de vezes para seu serviço e ninguém me respondia.

    Liguei para amigos; em vão. Mantinha meus ouvidos colados a rádio, e ouvia cada notícia com afinco.

    — Um militante, trajado com armas brancas e de fogo, partira para cima dos guardas; a informação é que a polícia abrira fogo. Atenção!, a informação é que a guarda-armada abrira fogo!

    Nem preciso dizer que, com o cu na mão, já tinha traçado todo o meu futuro por um simples anunciar do rádio; tinha certeza de que nunca mais ia ver Patrícia. Mal sabia eu que, anos depois, eu realmente nunca mais a veria, e isto nem é outra história, isto é exatamente essa história, e isto fica mais para frente. Talvez, se eu soubesse disso na época, ficaria em um estado colérico que remontaria as burguesas épocas do Romantismo. A ideia de revolução (social e econômica) mesclava a própria revolução (sexual) que eclodia na época; muito melhor do que o relacionamento em si era saber que os nossos pequenos atos eram revolucionários; tudo era transgressor. Talvez o sentimento mais lindo da juventude.

    Indubitavelmente piegas, mas se não fosse assim, não seria jovem.

    Encurtando a epopeia, Patrícia chegara de madrugada, com contusões sobre todo o corpo, andando como uma espécie de zumbi. Não estava muito diferente da forma que saia das festas universitárias; e, se eu não a conhecesse, a julgaria como qualquer outra universitária que se prese. Seus olhos estavam diferentes, mudados da sua impassibilidade cotidiana ou das risadas diante as autoridades. Alguma coisa em seu olhar, em sua postura, em sua forma de trotar da porta até o encardido sofá, mostrava que ela precisava de ajuda. O amor entre as pessoas sempre foi o maior catalisador da cicatrização; abracei-a, e o pranto veio. De ambos, não sei por quê.

    Era como se aquilo fosse um desabafo sem palavras, um desopilar de almas em um simples afago, uma cura que nenhum médico pode receitar; afeto. O pranto, em conjunto, era como dois enfermos se reconhecendo. Naquele dia não havia luta, protesto ou fúria militante; só queríamos a nós mesmos, um local quente para se chorar.

    — Vão protestar... — dizia com seu rosto colado ao meu, criando um sincretismo de lágrimas. — Vamos protestar com eles. E acabou.

    Não creio que posso dizer, com precisão, a minha interpretação do final de sua frase. Na hora, nada vinha a mente. Eu apenas queria um colo para chorar. Ela também, e nossas cicatrizes eram capazes de formar uma nova tez. Nos abraçamos e ficamos encolhidos por horas, sem tensão sexual, sem libido, e até sem amor.

    Nossas cabeças estavam em um estupor tamanho que nada merecia ser posto em nossos neurônios; pensar em rosas faria desabrochá-las, e invernaria qualquer arvore repleta de folhas.

    E fomos. Mataram aquele pobre rapaz no Calabouço, e não tardou para todos nós nos reunirmos no centro da cidade. Entoamos o ouviram do Ipiranga (quando isso era um marco cívico, não reacionário), a Internacional (o russo foi para o caralho), o não posso fazer serenata a roda de samba acabou, o já podeis da pátria filhos (o jovem nem sabe que porra é essa), e em meio a outros cantos universitários, bastou alguém gritar o clássico vem vamos embora que esperar não é saber para a porrada começar. Levamos bombas de efeito moral (que só faziam

    aumentar nossa moral), as porradas na cabeça, as pedradas, aquela porra toda. Eu e Patrícia entramos tipo numa Kombi e fugimos daquela porra. Chegamos exaustos, mas, simultaneamente, com um gás que sabíamos que se dissiparia rápido.

    Estávamos naquele tipo de momento que sabemos de sua momentaneidade, naquele exato segundo que sabemos que bastarão outros segundos subsequentes para tudo aquilo tornar-se memória. E antes de qualquer reação, partindo de qualquer um de nós, nos olhávamos e sabíamos que tudo era pretexto; daríamos qualquer motivo para fugirmos. Não deixaríamos tudo para trás; ainda tínhamos a nós mesmos. Havia a certeza, com uma pitada nostálgica e consequentemente triste, que a juventude estava acabada, que a mocidade estava perdida, como em um poema Drummondiano, e ali, olhando para trás, penso que foi um dos poucos momentos em que genuinamente eu estava num agora ou nunca, oito ou oitenta, gelo ou fogo, e não apenas a jovial sensação de estarmos no fim do mundo. Ou talvez não. Sei lá.

    Deixamos tudo. Móveis (que eram do proprietário daquela pocilga), objetos pessoais (até os Marx, os Victor Hugo, os Zola, os Woolf, e até o desconhecido Kundera; tudo isso fora jogado no lixo por aquele espanhol maldito que alugava aquela joça), e nossas memórias. Parecia que queríamos exilar nossas memorias de nós mesmos. Anos depois tentei voltar naquele mesmo local, mas não foi da mesma forma. O local estava como sempre estivera, mas senti que nunca mais conseguiria fazer memórias da mesma forma. O que trazia a mágica em nossas vidas era aquele tempo, e aquela realidade jamais iria voltar; por um lado, felizmente, e por outro, aquele sentimento que mescla a felicidade com a finitude, que comumente chamamos de nostalgia.

    Agora tenho que, inevitavelmente, falar de meu irmão, mesmo ele não tendo muita relação com essa história, sendo que na verdade até tem, mas é aquela coisa né, o efeito borboleta, se apenas uma pequena coisa estivesse diferente, algo batido e ignorado por nosso senso de nossa própria história, essa pequena coisa poderia mudar o curso de nossa existência. Vale ressaltar que, como em um conto grego e/ou bíblico, tínhamos uma relação semi-antagônica. Tenho que admitir que essa rivalidade sempre foi instigada por minha própria pessoa; olhem só, meu irmão sempre foi o banana, o certinho, o engomado, o sonho de qualquer família, que sempre viveu no cabresto de meus progenitores; de forma dionisíaca, se me permitem o trocadilho, sempre fui seu contrário. E isso não era sinônimo de conflito, pelo menos não com o próprio; as vezes me pego chorando até tarde, sozinho em casa, refletindo que fui eu que afastei pessoas como ele de minha vida, pessoas que eu sabia que me amavam e, mesmo assim, eu fora tolo o suficiente para acreditar que eu estava certo. A finitude fez seu efeito; enquanto fui engolido pela própria vida, ele a tirara com uma bala na boca, mas isso é outra história. Meu irmão sempre quis ser próximo de mim. Queria me salvar, e a cada vez que estendia a mão, era como se seus dedos tangenciassem uma lâmina presa em meu peito, tremulando meus nervos cardíacos e produzindo uma lancinante dor. Os tempos eram tortuosos, e era como se ele se sentisse na obrigação de tentar me salvar, como se ele, com seus ritos cristãos e quase militares, pudesse ser o antídoto para alguma doença dentro de mim.

    Eu não o julgo; mal sabia ele que eu não tinha salvação. Não era muito mais velho que eu, mas já tinha conseguido um puta emprego no aeroporto. Naquele momento, descendo aquelas escadas antigas com minha então namorada, não sabendo para

    onde ir, descendo quase como em um instinto animal, apenas consegui pensar em meu irmão. E me arrependi. Me arrependi não por uma questão persuasiva, não pelo fato que eu estava prestes a implorar a um parente quase desconhecido (mesmo com o compartilhamento de pai e mãe), não pelo fato déu querer colocar comida em um prato não só cuspido mas sim escarrado pela minha própria pessoa; o tempo perdido viera à tona. Eu estava fugindo; mesmo não conseguindo fugir deste país, saberia que não veria meus parentes tão cedo, - seja por estar no exílio, ou invariavelmente estar há cinco palmas debaixo da terra, em um terreno baldio jamais ocupado. Se furei os natais, as páscoas, os aniversários, era o ponto final.

    Nunca mais iria. Acabara, enfim, qualquer chance déu me endireitar, déu ser como todo mundo, como meu irmão, de simplesmente fugir daquela vida de fugas, da pressa, de dormir com um olho aberto e outro fechado, de fingir não se importar com os carros pretos estacionados do outro lado a rua e/ou de nossos amigos sumidos e/ou das cartas anônimas intimidadoras.

    Pela primeira vez realmente acreditei que eu poderia estar cavando minha própria cova. E, ao sair daquele prédio naquela madrugada tempestuosa, em um Rio de Janeiro decadente e comandado por praças, acreditei que estava encarando algo pior que a morte; eu seria mais uma entre as milhares almas de um cemitério de vivos.

    II

    Encurtando; sussurrando em um dos primeiros orelhões da cidade, em alguma praça escura (e dominada por mendigos) que agora não lembro o nome, em um bairro (estudantil, em que das janelas escutávamos os camburões do exército passar) do qual não lembro o nome, com as mãos trêmulas e com Patrícia ofegando ao meu lado, olhando para os lados para ver se não haveria nenhum homem despretensiosamente lendo um jornal (de madrugada), algum casal em algum canto despretensiosamente nos olhando (de madrugada), ou se simplesmente não sairiam homens de suspensório e bigodes de detrás das arvores (eles só trabalhavam de madrugada), eu comecei a chorar no telefone com meu irmão. Foi humilhante, mas pensando bem, com o olhar mais maduro, foi um dos momentos mais genuínos de minha vida (não que eu goste de refletir sobre a juventude com os olhos de hoje; por mais dantesco que pudesse ser o simples acordar em todas as manhãs, toda vez que lembro daquele tempo volto a ser jovem). Chorava copiosamente, tentando ofuscar os barulhos. As lágrimas embargavam minha voz; eram de um sentimento um pouco indefinível, tal poética indefinível dos sentimentos humanos, estas sendo a aglutinação de pulsões ofuscadas pelo tempo com um desespero que apenas a tenra juventude pode nos dar. Tenebroso de viver. Mágico de recordar, paradoxalmente.

    Fomos para sua casa (não antes de cruzarmos as terras cariocas pelas sombras, içando as malas, não ousando passar em ruas movimentadas; a cada carro do exército ou veículo completamente preto, nos escondíamos; ao nos aproximarmos de seu endereço, nos sentíamos cada vez mais deslocados do bairro; se estendêssemos as mãos, havia a chance de um bom samaritano nos entregar uns trocados). Após um longo (e choroso) abraço, tecemos o plano de como fugiríamos do país (foi de respeitável-cidadão para subversivo em segundos). Não sei porquê, mas fiquei muito emocionado em toda aquela estada (de um dia) em sua casa, e me lembrar daquela ocasião também me emociona, mesmo eu sabendo que não havia

    nada de mágico. Talvez eu soubesse que a única forma de eu acentuar minha relação com meu próprio irmão era com as minhas cagadas. Independentemente de meu envolvimento subversivo, com aspas, meu irmão em nenhum momento nos negou dar moradia e comida por um dia, tal como facilitar nossa fuga do país. E a culpa me consumiu. Culpa por ter renegado alguém que sempre esteve ao meu lado, mesmo eu não tendo o visto por todo esse tempo (ou talvez até pior; tendo optado por não o ver).

    Era inevitável aquela tensão no ar. Meu irmão queria avisar nossa mãe, mas tive que segurá-lo para não o fazer. Ele olhava-me de cima a baixo, e eu ficava me questionando o que ele tanto pensava sobre mim. Não sei se era o caso de se impressionar com meu estado, magro, caquético, onde eu achava que os livros eram capazes de me alimentar por completo, ou se me olhava aliviado, pensando que apesar de todos os pesares eu ainda estava ali, com certa decrepitude, mas ainda ali. Pois, mesmo eu não admitindo nem no pau de arara, eu queria voltar exatamente para como eu era em sua memória, aquele jovenzinho que ainda não conhecia a perversão, o capitalismo, a fome, a ecologia, o sexo, que achava que militarismo eram aquelas paradas no centro todo Sete de Setembro, que crera que Marx, Engels, Proudhon, Luxemburgo, Gramsci, Lenin, o abominável Trotsky, o grandioso Stálin, eram só nomes em uma língua estrangeira, e não mundos, reais poços de conhecimento que, ao se mergulhar, podem simultaneamente deixá-lo vivo ou matar-te por completo, afogando-se perante tantas informações. E sentia pena. Não de mim, o causador de toda aquela situação, mas sentia pena de meu irmão.

    Pensava que apenas uma real alma franciscana poderia ser capaz de se solidarizar ao ponto de ajudar alguém que tanto o desprezou. Naquele momento, era como se eu estivesse o sujando, contra a sua vontade. Ele, que sempre contara tudo a nossa mãe (na adolescência chamava-o de algoz de minha farra), que sempre andara na linha, e agora estava ali, ajudando um casal hipongo, subversivo e baderneiro, o consumindo com nossas questões. Estaria sujeito a correr risco; eu estava pondo em risco alguém que nunca teria se rebelado.

    Assim chegara o grande dia (ficamos apenas uma noite em seu apartamento, mas em minha memória passaram-se léguas de tempo e ainda estávamos ali, aflitos, perdidos, sem sabermos o que fazer) em que fugiríamos do país. Lembro bem que acordamos cedo, meio sem saber que rumo iríamos tomar, um sentimento que era bem comum a nós naquele tempo, e no dia em questão parecia estar exponencialmente maior. Meu irmão trabalhava na área administrativa do aeroporto, e mesmo essa época ainda estando muito longe daquele negócio das torres caindo, a segurança era bem reforçada (a.k.a. havia militares em todos os lugares, e bastaria puxar uma ficha para saberem que estávamos fazendo horas extras no quesito liberdade).

    Resolver sobre como iríamos proceder me deu um novo significado ao termo suplício; era como se eu estivesse pisando em ovos, querendo bolar uma ideia para nos safarmos, mas que simultaneamente não causaria danos a meu irmão, e quanto mais eu percebia que eu estava em um beco sem saída, tendo colocado quem sempre andou na linha no mesmo barco que o meu, mais eu me enfurecia. Me enfiei debaixo do banco traseiro de seu carro enquanto Patrícia, que era bem mais magra e conseguia se enfiar em pequenos buracos, conseguiu ficar agachada na parte traseira, com um cobertor logo acima de sua cabeça cobrindo seu corpo (sim, o carro era tão velho que não

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