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As Famílias de Almodóvar: Espaços Compartilhados na Clínica e no Cinema
As Famílias de Almodóvar: Espaços Compartilhados na Clínica e no Cinema
As Famílias de Almodóvar: Espaços Compartilhados na Clínica e no Cinema
E-book312 páginas4 horas

As Famílias de Almodóvar: Espaços Compartilhados na Clínica e no Cinema

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Sobre este e-book

Se a família enquanto instituição é fundamental para a constituição da subjetividade, as relações no seio familiar são sempre dramáticas! Elas podem colorir a nossa existência, dando-nos vivacidade, mas também podem assassinar as partes criativas e solidárias com a vida. Esses elementos, tão vívidos quanto as cores de Almodóvar, são matéria viva que entrelaça o ficcional, o pessoal e a experiência clínica de todo aquele que se mostra atento às experiências familiares, seja em consultório, seja em instituições como o judiciário, os hospitais, penitenciárias, abrigos, escolas, seja na nossa própria história. Diferentemente de outros cineastas, os filmes de Almodóvar não ficam datados. Isso porque sua personalíssima intimidade com o psiquismo humano torna a obra atemporal, tal qual o inconsciente. Nesta jornada pelos meandros das relações familiares, lugar de acolhimento, proteção e respeito, mas também lavoura arcaica que semeia, colhe e estoca abusos, sofrimento e violências, esta coletânea convida o leitor ao deleite de ver e rever os filmes que inspiraram as reflexões aqui contidas, a partir dos aportes da psicanálise. Veremos que são tênues e tenazes as linhas que ora separam, ora entrelaçam o individual e o grupal, o estranho e o familiar, as dores e as glórias. Este livro que formalmente se apresenta como coletânea é, antes de tudo, um entrelaçamento de histórias, de tempos, de vidas e de caminhos. É um trabalho acompanhado por memórias e também pelo prazer que a obra do genial Pedro Almodóvar suscita em todo aquele que está interessado na complexidade da vida psíquica e relacional humana.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de abr. de 2024
ISBN9786525052847
As Famílias de Almodóvar: Espaços Compartilhados na Clínica e no Cinema

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    As Famílias de Almodóvar - Cidiane Vaz Melo

    capa.jpg

    Sumário

    CAPA

    INTRODUÇÃO

    ALMODÓVAR, MELODRAMA E FAMÍLIA: APONTAMENTOS A PARTIR DA ANÁLISE DE SEIS FILMES

    Rodrigo Cazes

    O QUE FAZ NASCER E O QUE RESTA: APONTAMENTOS SOBRE OS ESPAÇOS PSÍQUICOS COMPARTILHADOS NO TRATAMENTO INDIVIDUAL E GRUPAL

    Cidiane Vaz Melo

    LUTOS E SILÊNCIOS NO FILME JULIETA: UMA ARTICULAÇÃO COM A CONSTRUÇÃO DA PARENTALIDADE ADOTIVA

    Débora Sampaio

    MINHA MÃE É TUDO?

    Manola Vidal

    DOR E GLÓRIA: O TRAUMÁTICO NO CORPO E O PROCESSO CRIATIVO

    Fernanda Ribeiro Palermo

    ABUSO SEXUAL INFANTIL, O TRAUMÁTICO E A PERVERSÃO RETRATADOS NO FILME MÁ EDUCAÇÃO

    Raquel VelosoRenata Benigno

    TRANSMISSÃO PSÍQUICA DE SEGREDOS E VERGONHA NO FILME VOLVER, DE PEDRO ALMODÓVAR

    Carla Martins MendesCidiane Vaz Melo

    FALE POR ELA: CONSIDERAÇÕES SOBRE UM FILME DE ALMODÓVAR

    Nataly Netchaeva Mariz

    TRAUMA E COMPULSÃO À REPETIÇÃO EM A PELE QUE HABITO

    Alessandro Melo Bacchini

    A LEI DO DESEJO

    Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado

    REFLEXÃO SOBRE O FILME A FLOR DO MEU SEGREDO

    Flavia Costa Strauch

    SOBRE OS AUTORES

    SOBRE A ORGANIZADORA

    CONTRACAPA

    As famílias de Almodóvar

    espaços compartilhados na clínica e no cinema

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Cidiane Vaz Melo

    (org.)

    As famílias de Almodóvar

    espaços compartilhados na clínica e no cinema

    Às famílias, de inúmeras gerações, que nos acompanham como herança

    e caminho no desejo pela vida

    A flecha

    Volto para dentro pra atirar a flecha que corre em direção ao futuro

    No porvir, de alento, reverencio o trem, o internato, a prostituta, o roceiro, o estrangeiro e a louca

    Saúdo o cheiro de manga do quintal da avó, a linguiça defumada que a mãe fazia no

    quintal

    Me encanto com tudo o que vi na Cinelândia enquanto segurava o braço do meu pai

    Reencontro os cafés no balcão e o pastel de bichinho

    Me alimento com as comidas da minha mãe e o café para dormir

    Relembro dos livros de francês que não consegui receber, do repertório dos meus

    vizinhos

    Do temido carnaval que me enfeitiçava quando olhava de soslaio aqueles carros que me

    pareciam ser de um mundo totalmente inacessível a mim

    Me junto com meus irmãos no chão sofrido da sala e recortamos os encartes de jornal

    Nesse chão somos fartos, no nosso desejo, na abundância do nosso mercado de papel

    Choro os bichos sofridos que me deram tanta ternura e encantamento

    Vibro com os gatinhos paridos no barranco, os ratos destemidos e temidos e a hamster

    que foi morar na parede e sumiu

    Me espanto com as galinhas e o galo que perderam a cabeça enquanto dormiam

    Celebro tudo o que ficou

    Ao afeto e ao desejo de vida que se transmite nas frestas

    A tudo que foi dito e não dito e maldito

    Ao que foi lembrado e ao que foi esquecido

    Aos desaparecidos

    Aos desalojados

    Aos abandonados

    Aos adotados

    Aos cacos, à placa no telhado intacta depois de trinta anos

    Ao chinelinho do meu irmão congelado no tempo

    A tudo o que está costurado, e colado, e amalgamado

    Celebro a vida que vive em cada dor, em cada riso, em cada alegria e tristeza vividos

    num tempo sem divisão entre passado, presente e futuro

    Celebro a flecha contínua que segue em disparada

    Celebro a vida!

    (Poema autoral publicado no livro: MELO, C. V. Cadernos poéticos: flor, corpo e raiz. Editora Versiprosa, 2023)

    PREFÁCIO

    A flecha poética lançada por Cidiane Vaz Melo, psicanalista e organizadora desta coletânea de artigos, capturou nosso desejo de mirar, falar e escrever sobre as famílias, a partir do caleidoscópio de cenas produzidas pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Fragmentos coloridos entre espelhos, que girados sob a luz, seduzem, atraem e nos precipitam aos abismos sombrios das relações familiares e amorosas, atravessadas por paixões e abusos, angústia e desejo, desamparo e amizade, luto e culpa, dor e glória.

    O cinema é uma das modalidades artísticas mais completas de expressão sublimatória da subjetividade humana, justamente porque, para a produção de um filme, confluem outras expressões de arte – literatura, música, dramaturgia, fotografia, plasticidade –, que, reunidas em cenas cortadas, costuradas, editadas, reproduzem a realidade psíquica dos seus personagens, criadores e diretores. No psiquismo, trata-se não da cena como reprodução fiel da realidade, mas de complexa montagem narrativa que combina imagens, palavras, cortes, intervalos entre luz e sombras, tal como no cinema. Afinal, costumamos narrar nossos sonhos como um filme.

    Diferentemente de outros cineastas, os filmes de Almodóvar não ficam datados. Isso porque sua personalíssima intimidade com o psiquismo humano torna a obra atemporal, tal qual o inconsciente. Almodóvar, ao comentar seu filme A lei do desejo, de 1987, revela que a ilusão de ser desejado sem fronteiras, não importando que não o respeitem como pessoa, faz parte profundamente de todo ser humano. A lei dos nossos desejos é um tributo bastante alto pelo qual pagamos. Tal registro nos mostra, digamos, de forma perturbadora, a ambivalência estrutural em que se aloja o sujeito, alienado ao desejo do Outro, preso à relação moebiana e promíscua entre gozo, desejo e Lei, num percurso contínuo, um dentro e fora, que não cessa de se mover, muitas das vezes, perversamente.

    Assim, apesar de continuarmos achando estranho, não é para se estranhar que a família vele e revele segredos, vindo a se tornar, muitas vezes, o oposto de sua acepção primeira. De lugar de acolhimento, proteção e respeito, para se tornar celeiro de traumas. Lavoura arcaica que semeia, colhe e estoca abusos, sofrimento e violências tantas, sufocadas pela hipocrisia e pelo desmentido. Assim como aconteceu comigo, para prefaciar este livro, creio que você, leitor, terá um irresistível e emergente desejo de ver e rever os filmes desejo de ver e rever os filmes comentados, a partir dos aportes da psicanálise.

    Em Almodóvar, melodrama e família: apontamentos a partir da análise de seis filmes, Rodrigo Cazes faz um panorama da obra de Almodóvar, passeando pelos gêneros cinematográficos, com destaque às influências recebidas de outros diretores, na escolha e importância da música, das cores, dos atores-fetiche em meio às emoções exageradas próprias do melodrama renovado, quase sempre desprestigiado pela intelectualidade como algo menor.

    Cidiane Vaz Melo, no artigo O que faz nascer e o que resta: apontamentos sobre os espaços psíquicos compartilhados no tratamento individual e grupal, credita à escuta psicanalítica das famílias a possibilidade de fazer fluir aqueles conteúdos psíquicos represados, evitando que o rompimento do dique ameace a mantença dos laços afetivos. Também identifica esses aspectos como parte do autêntico encontro psicanalítico, que se constitui como desafio para os analistas na clínica.

    Em Lutos e silêncios no filme ‘Julieta’: uma articulação com a construção da parentalidade adotiva, Débora Sampaio traz uma perspectiva nova de interpretação do filme Julieta, sob o enfoque da construção da parentalidade adotiva – biológica ou afetiva. A partir dos acontecimentos trágicos que marcaram a vida da protagonista, articula seu próprio desamparo com a impossibilidade de adotar e amparar sua filha biológica, em meio ao binômio luto e culpa, enclausurado pelo silêncio.

    A complexa relação e discussão acerca das posições masculina e feminina na subjetividade propostas pela Teoria Queer é o ponto de partida de Manola Vidal no artigo Minha mãe é tudo?, que faz uma inversão da forma afirmativa do título original: o que significa ser homem ou mulher, o que é masculino ou feminino e o que é ser pai e mãe na contemporaneidade. O desejo de querer saber-se no desejo do Outro – pai ou mãe – sempre se atualiza nas múltiplas relações afetivas derivadas. Enigma sobre origem e destino.

    Já em ’Dor e glória’: o traumático no corpo e o processo criativo, Fernanda Ribeiro Palermo discorre sobre a penosa elaboração do luto dos ideais de si, refletidos no amor perdido e nas expectativas frustradas do Outro materno, a gerar culpa e dor, também no corpo, tributando tais sintomas à transmissão psíquica transgeracional. No entanto, é a partir da sublimação da dor, através da arte, que os cômodos da casa da alma – o corpo – passam a ser ventilados e renovam a vida com criatividade.

    No artigo Abuso sexual infantil, o traumático e a perversão retratados no filme ‘Má educação’, Raquel Veloso e Renata Benigno se debruçam sobre os muros do silêncio, que ocultam episódios de abusos sexuais infantis e seus efeitos devastadores na subjetividade. Como pontuado no artigo, a perversão e as violações praticadas pelas instituições que deveriam proteger, cuidar e educar a criança – família, escola e igreja – representam para a criança uma ruptura significativa em sua vida, como denunciado por Almodóvar em seu filme.

    Tem coisas que o vento leva e traz de volta. Em Transmissão psíquica de segredos e vergonha no filme ‘Volver’, de Pedro Almodóvar, Carla Martins Mendes e Cidiane Vaz discutem a transmissão psíquica de conteúdos traumáticos mantidos em segredo, tomando por base Volver e a genealogia familiar composta pela história de três mulheres. Se sabe que é pela linguagem que se transmite, na família e por gerações, os desejos alheios, e também silêncios, segredos e vergonhas, capazes de levar à ruptura do laço social e familiar, especialmente quando violações como o incesto e estupro restam não verbalizados.

    No artigo Fale por ela: considerações sobre um filme de Almodóvar, Nataly Netchaeva Mariz aborda o jogo de papéis que perpassam a conjugalidade com seus encontros e desencontros, sendo digna de destaque a imobilidade da mulher desejada pelo homem, calada e estática, para seu deleite, uso e abuso. A paixão-imagem do personagem principal, fixada na mulher-coisificada, como fetiche, bem representa a impossibilidade subjetiva de lidar com a castração.

    Alessandro Melo Bacchini percorre os mais importantes conceitos e construções da psicanálise em seu artigo Trauma e compulsão à repetição em ‘A pele que habito’, para analisar os efeitos do trauma na compulsão à repetição. A superfície da pele perfeita, entregue sob encomenda ao gozo narcísico, encobre corpo e subjetividade, ambos mutilados, revelando o que há de mais primevo, familiar e estranho no homem.

    Os personagens que vivem em A lei do desejo nos colocam como voyeurs, segundo Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado, diante da vertente ant’edípica do complexo de Édipo, na qual a interdição do incesto não conseguiu operar naquela trama dramática. A autora percorre as distâncias e as proximidades entre as estruturas clínicas da psicose (paranoia) e perversão, para identificar nos personagens, o narcisismo arcaico e as consequências fatais decorrentes da ruptura ou divisão abrupta dos territórios subjetivos indivisos até então, entre o eu e o Outro.

    No último artigo da coletânea, Reflexão sobre o filme ‘A flor do meu segredo’, Flavia Costa Strauch acompanha a travessia do luto da separação amorosa, vivida pela personagem principal do enredo, para pensar a diferença entre dor e sofrimento e as possibilidades de ressignificação da vida, própria do trabalho do luto, que pode ser melhor conduzido na clínica psicanalítica.

    A psicanálise em extensão cumpre assim o seu destino de crítica à cultura, na medida em que, aparelhada à arte, potencializa sua função simbólica de fazer frente à falta de sentido do real, sempre traumático, e oferecer à cápsula espelhada do imaginário possibilidades de abertura para o mundo. A família ideal é a família dos laços possíveis, costurados e refeitos, para abrigar com generosidade e respeito seus entes, tal qual a amizade.

    Rio de Janeiro, abril de 2023

    Julio Cezar de Oliveira Braga

    Advogado, mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida. Docente em diversas instituições, psicanalista associado ao Corpo Freudiano Escola de Psicanálise do Rio de Janeiro e diretor do Instituto Multidisciplinar Oliveira Braga — por um Direito dos Afetos (IM/OB).

    APRESENTAÇÃO

    Se a família enquanto instituição é fundamental para a constituição da subjetividade, as relações no seu âmago são sempre dramáticas! Elas podem colorir a nossa existência, dando-nos vivacidade, mas também podem assassinar as partes criativas e solidárias com a vida. Esses elementos, tão vívidos quanto as cores de Almodóvar, são matéria viva que entrelaça o ficcional, o pessoal e a experiência clínica de todo aquele que se mostra atento às experiências familiares, seja em consultório, seja em instituições como o judiciário, hospitais, penitenciárias, abrigos, escolas, seja na nossa própria história. O próprio diretor em entrevista recente¹ afirma que sua obra está diretamente relacionada às suas experiências, sobretudo àquelas junto a família de origem, à sua mãe e demais mulheres que povoaram a sua infância, bem como os conflitos que presenciou entre a mãe e sua irmã e os seus próprios emaranhados.

    Ao longo da trajetória clínica, segredos de família, relações francamente incestuosas e incestuais, violências de todos os tipos, repetições de aspectos transgeracionais, sofrimentos identitários, lutos enquistados, espaços de predomínio do irrepresentável, comunicações paradoxais, perversões narcísicas, angústias inomináveis, dentre tantos outros aspectos vêm sendo evidenciados, nomeados e estudados, dado o nível de complexidade e desafio para o trabalho terapêutico. Entretanto, se a arte imita a vida, fazer psicanálise exige também uma grande dose de arte, de nomeação, de transformação e persistência. Quem dera as situações apresentadas por Almodóvar se restringissem às telas de cinema! Trata-se de situações comuns e cotidianas, profundamente mobilizantes durante o trabalho clínico e, nesse sentido, que merecem ser conhecidas e estudadas; o cinema de Almodóvar se constitui em um rico reservatório de histórias, imagens e dinâmicas relacionais que podem servir como ilustrações para situações que povoam a clínica psicanalítica, seja no trabalho individual, seja com grupos, incluindo a família.

    É nesse ensejo que, em meados de 2017, à época, eu ainda às voltas com o final do meu doutorado, nasceu a ideia para a elaboração deste livro, que não pôde ser concretizado naquele momento por inúmeras circunstâncias. De lá para cá, a vida teceu caminhos que me levaram a muitos espaços, a trocas com pessoas e com ideias, e o que foi imaginado inicialmente como uma empreitada individual foi reinventado no ano de 2021 como desejo coletivo, nascido no meio da pandemia de Covid-19.

    Trata-se, portanto, de um livro que nasce dos diálogos realizados a partir de encontros ocorridos no âmbito do projeto de extensão universitária Psicoflix-se², da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Departamento de Psicologia do Campus de Rio das Ostras, onde atuo como professora. Esse projeto emerge como desejo de criação de espaço de discussões que pudesse favorecer o sentimento de pertencimento institucional e trocas afetivas, aspectos tão afetados pela pandemia. Tratava-se então, de promover discussões sobre psicologia, psicanálise e as produções audiovisuais. Os encontros aconteceram no ano de 2021, com discussões muito interessantes e enriquecedoras e, após todos eles, surgiu a possibilidade de transformá-los em livro. Neste livro reúno os trabalhos de meus parceiros de percurso, de labuta e de sonhos, a quem só tenho a agradecer. São pesquisadores, pessoas com uma longa estrada na escuta de famílias e de aspectos ligados à violência, com sensibilidade, formação e atuação consistentes. Escrevendo esta nota, ratifico o pensamento de que a profusão de assuntos e a complexidade das discussões que foram suscitadas só poderiam ser abarcadas por uma rede de afetos, de amizade, de solidariedade, de proteção e do desejo partilhado de compartilhar nossas experiências, nossos aprendizados e intervenções. Este livro que formalmente se apresenta como coletânea é, antes de tudo, um entrelaçamento de histórias, de tempos, de vidas e de caminhos. É um trabalho acompanhado por memórias e também pelo prazer que a obra do genial Pedro Almodóvar suscita em todo aquele que está interessado na complexidade da vida psíquica e relacional humana.

    Para não me alongar demasiadamente, gostaria de reafirmar o quanto a organização deste livro me deu imenso prazer e orgulho e quero agradecer a todos os autores, a Júlio Braga, amigo feito em tempos de pandemia que prontamente aceitou escrever o prefácio, Aldene Rocha, que fez a capa, e às minhas alunas Mariana de Aquino, Kamilly Crespo, Stefany Camacho, Stella, Waleska, Angela Maria Alves, Larissa Soares, Camila Gonçalves, Laura Nobre e Gabriela do Nascimento, que são fonte de inspiração, de alegria e de ânimo.

    Rio de Janeiro, dezembro de 2022

    Cidiane Vaz Melo


    ¹ Entrevista do diretor intitulada Três perguntas para Pedro Almodóvar, feita por Duda Monteiro de Barros e publicada pela revista Veja em 2 de fevereiro de 2022. Leia mais em: https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/tres-perguntas-para-pedro-almodovar/.

    ² Todas as conversas que se desdobraram nos trabalhos aqui contidos podem ser acessadas na página do Instagram @psicoflix.se (https://www.instagram.com/psicoflix.se/).

    INTRODUÇÃO

    Esta coletânea é fruto de interlocuções que têm como território comum os espaços partilhados na clínica, a partir da relação transferencial/contratransferencial; nas famílias, com sua intrincada trama entre os laços saudáveis e os mortíferos que compõem os vínculos; e no cinema de Pedro Almodóvar, um dos maiores diretores de todos os tempos.

    A articulação entre a clínica e a cultura é por si só interessante, mas, além disso, aqui são propostas reflexões que buscam compor ampliações que façam avançar as análises restritas às perspectivas individualizantes e restritas ao campo do intrapsíquico. Esta coletânea se detém na abordagem daquilo que é da ordem do entre, do vínculo e do laço. Trata-se, portanto, de não contrapor intrapsíquico e intersubjetivo, clínica e cultura, psíquico e social, mas de articulá-los. Ademais, compõe-se como material que pode ajudar na elaboração de debates no contexto das universidades e formações psicanalíticas, enquanto conteúdo rico para fomentar discussões em cineclubes e em outros espaços. Trata-se também de um convite para que se revejam os filmes de Pedro Almodóvar a partir de interlocuções entre a lente do diretor e a dos autores que compõem esta obra.

    Espero que este livro chegue até você como convite para ampliar o olhar, a escuta e à feitura de laço. Nesse terreno, para além de qualquer perspectiva idealizadora sobre as famílias, são destacados os aspectos dramáticos que precisam ser recebidos, olhados, escutados na clínica, mas também se evidencia um desafio: escutar famílias não é algo simples. Mobiliza aspectos recônditos comuns a todos nós e exige não apenas estar a par das especificidades das análises com o grupo-família, mas também requer um consistente trabalho analítico que contemple as próprias experiências familiares.

    Neste livro, partimos das famílias retratadas em alguns filmes de Almodóvar para trazer à cena, do ponto de vista da psicanálise, a outra cena, território do inconsciente profundo que se atualiza nos tratamentos psicanalíticos e que é compartilhado em sua dimensão de transmissão, de ataques e defesas atuantes no grupo família em tratamento. Nesta coletânea são abordadas temáticas relativas aos espaços psíquicos comuns e partilhados naquilo que os atravessa frequentemente, como a transmissão transgeracional, os segredos, os lutos não elaborados, as violências que passam a compor o rol de conteúdos indizíveis e impensáveis, marcados por angústias inomináveis, pelos brancos de representação e pelas perversões. Buscamos destacar que tais aspectos, apesar de penosos, não se compõem como exceção na clínica, mas fazem parte da psicopatologia do cotidiano e do campo relacional partilhado e, por isso mesmo, merecem escuta apropriada e ferramentas para o seu manejo na clínica.

    Espero que você, leitor, seja contaminado pelo prazer e pelo compromisso de caminhar neste território dramático e desafiador, mas igualmente emocionante.

    Cidiane Vaz Melo

    A organizadora

    ALMODÓVAR, MELODRAMA E FAMÍLIA: APONTAMENTOS A PARTIR DA ANÁLISE DE SEIS FILMES

    Rodrigo Cazes

    Os gêneros cinematográficos e o cinema de Pedro Almodóvar

    Os gêneros cinematográficos são um fenômeno sobre o qual é possível oferecer tanto uma perspectiva conservadora quanto uma perspectiva de renovação das narrativas cinematográficas. Na primeira perspectiva as convenções genéricas servirão como molde a uma orientação comercial de produtos audiovisuais feitos em ciclos após ciclos. Um ciclo de filmes existirá até que haja um esgotamento total do interesse do público por aquele tipo de produto e, somente então, sejam buscadas variações na forma contar histórias, outras possibilidades narrativas sejam aventadas, mesmo que com pequenas variações. Mas os gêneros cinematográficos também podem servir como possibilidade de renovação das narrativas: Talvez a forma mais proveitosa de utilizar o gênero seja entendê-lo como um conjunto de recursos discursivos, uma ponte para a criatividade [...] Deslocamo-nos, desse modo, do campo da taxonomia estática para o das operações ativas e transformadoras (STAM, 2019, p. 151).

    Na perspectiva

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