As ideias conservadoras: (novamente) explicadas a revolucionários e reacionários
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Férias de fornicação e outras murmurações de um moralista Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEdmund Burke - a virtude da consistência Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
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As ideias conservadoras - João Pereira Coutinho
1
Quattordici: uma introdução
O conservadorismo não existe. Existem conservadorismos, no plural, porque plurais foram as diferentes expressões da ideologia no tempo e no espaço. Este ensaio é apenas a versão de uma delas. Ou, melhor dizendo, uma versão de uma versão de uma delas. Confuso, leitor? Não esteja.
Uma história talvez ajude a não perder o pé. No seu breve e delicioso Conservatism (1956), o filósofo e poeta americano Peter Viereck relembra a história do antigo rei do Piemonte-Sardenha que deambulava pelas ruas do reino murmurando demencialmente a palavra ottantott, versão dialectal do italiano oitenta e oito
. Para o infeliz monarca, tudo seria perfeito – ou, pelo menos, mais perfeito se o mundo pudesse voltar a 1788, às vésperas da Revolução Francesa.⁵ Ottantott era a utopia do rei destroçado, exemplo pungente de que nem só os revolucionários de esquerda têm direito a cultivar as suas utopias. Como se verá.
A história é importante por dois motivos fundamentais. O primeiro, evidente em qualquer manual de ideias políticas, porque radica na Revolução Francesa de 1789 a emergência do conservadorismo moderno como ideologia. Veremos no próximo capítulo se o conservadorismo pode ou não ser uma ideologia; e, em caso afirmativo, que tipo de ideologia será o conservadorismo. Mas, por agora, não vale a pena cansar o digníssimo leitor com essas divagações arcanas. Interessa apenas afirmar que a Revolução Francesa, e a reação a ela personificada em Edmund Burke (1729–1797), permitiu que o conservadorismo se autonomizasse como resposta antirrevolucionária e, no caso de Burke, antiutópica também. Quase apeteceria dizer que uma das consequências mais felizes do ano de 1789, para além da encomenda de Così Fan Tutte a Mozart, foi a emancipação do conservadorismo como ideologia política: em Paris, ele saiu finalmente de casa dos seus pais.
O que não significa, obviamente, que a casa paterna não tenha sido importante para que o jovem emancipado aprendesse os primeiros passos, as primeiras letras, as primeiras maneiras. São vários os autores que, em busca de alicerces teóricos sólidos para o conservadorismo moderno, recuam a manifestações mais antigas. Anthony Quinton emerge dessa galeria como o arqueólogo par excellence. Lemos Aristóteles, lemos Cícero, lemos Tomás de Aquino – e encontramos vestígios de um pensamento conservador, inarticulado como tal, que não nasceu apenas com a vigorosa e influente resposta antirrevolucionária de Edmund Burke.⁶
E, por falar em Burke, convém não olhar para o escritor e parlamentar irlandês como o primeiro homem a pisar o planeta conservador. Como sustenta ainda o mesmo Quinton em The Politics of Imperfection (1978), um tratado obrigatório para qualquer interessado nestas matérias, Burke situar-se-ia sensivelmente a meio de uma tradição britânica que começa em Richard Hooker, no século XVI, e se estende até Michael Oakeshott, no século XX.⁷ Com a devida vênia a Lorde Quinton, arriscar-me-ia também a esticar um pouco mais o manto e a cobrir ainda Roger Scruton e John Kekes em pleno século XXI. Burke pode ser o precursor do conservadorismo moderno. Mas antes de iniciar essa tradição, ele é parte de uma tradição.
Só que a história do rei que murmura ottantott com a desolação própria dos náufragos não se limita a apontar 1789 como o ano fundamental (e fundacional) para a emergência do conservadorismo moderno como ideologia política. Interessa também analisar a atitude do rei: a crença desesperada de quem via no regresso ao status quo ante o colírio salvífico para a desordem posterior. É uma atitude que permite, não apenas a distinção óbvia entre o pensamento revolucionário e o pensamento antirrevolucionário – mas que ilumina igualmente a diferença entre dois tipos de pensamento antirrevolucionário.
O mesmo Peter Viereck, partindo dos exemplos tutelares de Burke e Joseph de Maistre (1753-1821), designa-os como espírito moderado
(em Burke) e reação intolerante
(em Maistre).⁸ É uma boa distinção, apesar de algumas limitações: ao escrever as suas Reflections on the Revolution in France (1790), Burke dedicou a primeira parte da obra a reagir intolerantemente contra as inovações filosóficas e destrutivas – ou, mais precisamente, destrutivas porque filosóficas – que os franceses experimentavam em Paris e que o jacobinismo doméstico
, na órbita do reverendo Richard Price, esperava importar para Inglaterra.
Porém, Viereck tem razão se o espírito moderado
se aplicar com mais propriedade à segunda parte das Reflections e, sobretudo, aos textos finais de Burke: o irlandês podia ser, aos olhos dos seus inimigos jacobinos, a encarnação mais próxima do diabo. Mas mesmo Burke, um opositor da Revolução desde a primeira hora, não deixou de admitir que ela talvez tivesse vindo para ficar. E que de nada valia procurar ou repetir ottantott até à insanidade porque o espírito do tempo
mudara e não voltaria para trás. Nas palavras de Burke – palavras que não deixaram de provocar sério prurido intelectual em alegados conservadores⁹ – se uma grande mudança é para ser feita nos assuntos humanos, as mentes dos homens adaptar-se-ão a ela, as opiniões e os sentimentos gerais confluirão para esse destino
. E conclui