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Zombies em Lisboa
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E-book203 páginas2 horas

Zombies em Lisboa

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Sobre este e-book

Estamos em Dezembro de 2012. Sara tem 14 anos e acabou de matar os pais que se transformaram em zombies. Lisboa está infestada de mortos-vivos e para os poucos sobreviventes quase não há esperança – a não ser a de partirem no último cacilheiro a sair do Cais de Sodré, em direcção ao navio de guerra Vasco da Gama.

Sem outra opção é obrigada a sair de casa. Pouco depois encontra Bruno. Os dois juntam-se a um grupo de sobreviventes que se dirigem para o Cais de Sodré. Mas será que poderão confiar uns nos outros? A sobrevivência é possível? E o que os aguarda quando alcançarem o destino? Haverá mesmo salvação neste mundo infestado de mortos-vivos?

Estará o mundo inteiro perdido ou apenas Portugal?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de mai. de 2012
ISBN9781476464725
Zombies em Lisboa
Autor

Ágata Ramos Simões

Colaborou na tradução japonesa das obras “Todos os Nomes” e “A Caverna” de José Saramago.Representada com três poemas na colectânea de poesia contemporânea portuguesa, “Ventana A La Nueva Poesía Portuguesa”, editada no México pela Ediciones Desierto.Escreveu “Lisboa singular”, livro infanto-juvenil, publicado em português por uma editora francesa (Éditions 00h00).Teve uma participação no Salão do Livro em Paris, entre os dias 16 e 21 de Março de 2001, convidada pela editora Éditions 00h00.Ganhou o 1o prémio no concurso literário “António Mendes Moreira” da Câmara Municipal de Paredes com o manuscrito “À Procura de um Livro” e ganhou igualmente o 1o prémio ex-aequo no concurso literário Orlando Gonçalves da Câmara Municipal da Amadora com o mesmo manuscrito.No princípio de 2006 foi publicada a obra "Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos" pela editora Saída de Emergência.Participou no DN Jovem durante alguns anos.

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    Zombies em Lisboa - Ágata Ramos Simões

    Sou a Sara. Tenho catorze anos e matei os meus pais. O ano é 2012. O mês não é relevante. Já ninguém celebra o Natal. Há pelo menos um ano que não é celebrado. Em Lisboa. No Porto. Em todas as cidades costeiras de Portugal. O interior esteve protegido durante uns tempos. Mas isso acabou. Não é importante. Já disse a minha idade? Para que é que eu escrevo isto? Para quem é que eu escrevo isto? Já não há Internet, nem Facebook, nem Twitter, nem blogs, nem correio electrónico. Não posso enviar isto a ninguém. Nunca. O que pretendo fazer? Aliás, com quem estou eu a falar? Com quem é este invisível diálogo de surdos? Quem é o meu interlocutor? Não existe ninguém para me ouvir ou a quem eu possa escutar. Talvez escreva para mim, para o meu futuro eu. Para a minha inabalável esperança. Para mim própria. Para um arqueólogo hipotético, vindo da China, daqui a duzentos anos... quando os zombies já não existirem. Deus do céu, ninguém sabe, ninguém suspeita o tempo que eles conseguem sobreviver sem comida. Mas desmembram-se, corrompem-se, tal como qualquer outro corpo morto, em decadência. Sentimos o cheiro fétido da decomposição. É nojento. Vomita-se. Até se aprender que é um desperdício de comida e que já não há comida enlatada em quase lugar nenhum.

    Querem matar-nos. Os outros, os sãos. Os que vivem para lá das nossas muralhas territoriais feitas de água e de montanhas.

    Não há telecomunicações. Telefones são inexistentes. Quero morrer. Quero viver. Mãe, pai, porque vos matei?

    Perdoem-me, mas vocês iam comer-me as tripas.

    Iam arrebentar-me o crânio para me chegar ao cérebro.

    Iam quebrar-me os ossos para devorar a medula rica.

    Iam comer-me a carne toda do corpo. Iam comer-me viva.

    Felizmente, depois, não sobraria nada para eu própria me transformar num desses seres fétidos e nojentos.

    Tenho catorze anos e matei os meus pais.

    Deus me perdoe porque eu não consigo.

    Quanto tempo até este pesadelo acabar?

    Começou em 2011, em Janeiro. Não se sabe bem como. Teorias abundam. Não quero pensar nisso. Tenho que me alimentar. Há seis meses que vivemos escondidos no apartamento à base de comida enlatada. Farta de feijões e ervilhas. Há quanto tempo não como um gelado? Um sundae, de morango, no macdonalds. Não posso ir. Era suicídio.

    Primeiro foi o meu pai. As repugnantes criaturas tinham-no mordido dois dias antes. Ele escondeu-o de nós. Queria preparar as coisas, deixar-nos a salvo. E depois partir, ir lá para fora. Morrer com os zombies. Morrer longe de nós. No entanto a transformação foi mais rápida do que imaginou. Apanhou-me no quarto a dormir. Eram duas da manhã e eu tinha a lâmpada acesa (energia solar, já não há electricidade em quase lugar nenhum). É melhor narrar como se estivesse no presente. Talvez seja mais fácil. Talvez me recorde a vontade de viver.

    Sinto um bafo asqueroso a penetrar-me a pele branca do rosto. Acordo de supetão. Não é bem um acordar porque eu nunca durmo. Não consigo. Morro de medo que a morte me apanhe no sono. Morro de medo que a morte me leve e me deixe nas trevas. Temo transformar-me numa coisa daquelas e ir parar ao inferno, nunca mais ver a luz do dia, a luz de Deus.

    O pai debruça-se sobre mim. Pela primeira vez noto (não o notei antes porque a casa está mergulhada em constante penumbra) que tem a pele pálida, os dentes grandes demais e olheiras de meter medo. Está demasiado magro. Como diabo emagreceu tanto em três dias? Olha para mim fixamente. Estou na cama, deitada, apoiada no braço e a olhar para ele como a mosca olha a aranha que a apanhou nos seus domínios.

    - Filha - diz ele com uma voz cavernosa. Baba-se. Não faz nenhum esforço para limpar o fio nojento da boca e ele deposita-se na minha face branca e sardenta.

    Não há espaço para dúvidas. Rebolo para a esquerda, sobre mim mesma, e bato na parede. Entre o colchão e a parede há uma caçadeira que o pai me ensinou a usar. Carregada.

    Não está lá. Ele olha para mim com um sorriso sinistro e percebo que aquele já não é o meu pai. É um predador que me quer comer viva, em pedaços, e que se vai regozijar com a minha dor, a minha carne e os meus tendões.

    Saco da faca que guardei, sem dizer a ninguém (sou desconfiada por natureza) debaixo da almofada e num movimento célere espeto-a no pescoço daquela criatura que me deu vida, dois centímetros abaixo do queixo, e salto para o chão. A mãe vê da porta. Grita. Grita muito. Mija-se pernas abaixo. É nojento. Tudo isto é nojento. É esta a nossa vida? Foi nisto que nos transformámos? Que fizemos nós? Porquê nós? Não compreendo. Quero compreender. Quando começava a fazer perguntas aos pais eles calavam-me com um chiu vigoroso. Que importava isso? Só interessava a sobrevivência, mais nada. Ela bateu-me quando eu fugi pela porta em direcção à cozinha onde agarrei com rapidez na caçadeira. Veio atrás de mim e deu-me um murro a chorar, exaltada:

    - Cabra! Podíamos salvá-lo! O que fizeste ao teu pai! Cabra, cabra do demónio!

    O ranho saía do nariz e tinha a cara molhada das lágrimas. É o desespero a falar, eu sei. Corre para ele. Eu não a impeço. Sei que tenho de a seguir e desfazer-lhe o crânio com a caçadeira que ele me ensinou a usar. A caçadeira do avô. A que ele usava para matar veados e coelhos e cães selvagens que ameaçavam o rebanho. E também o compadre que andava metido com a avó.

    Vejo a mãe debruçada, de joelhos, sobre o corpo inerte do meu pai. Lentamente a mão ossuda, nojenta e em decomposição tira, como se retirasse a faca da manteiga morna, a arma do pescoço. A mãe chora e sorri, esperançada. Tem uma permanente que fez hoje. Sempre sentiu a necessidade de fazer-se bonita para ter a certeza que estava viva. Com verniz nas unhas, maquilhagem, um belo vestido e o cabelo arranjado - ela sabia que valia a pena viver. Em farrapos a minha mãe matar-se-ia. Abraçou-o, a estúpida. Pôs o pescoço a jeito. Ele logo a mordeu. Ela não fez nenhum gesto para se desprender. Deixou-o morder, arrancar-lhe um pedaço do ombro, enquanto chorava desalmadamente sem fazer som. Nunca deixou de o olhar. Nunca fez um gesto para mim. A minha mãe que tanto me amava. Supostamente. A minha mãe que tanto me queria não me quis o suficiente para lhe estoirar os miolos e continuar a viver por mim, para me salvar. Não consigo perdoá-la.

    Rebentei-lhe primeiro a cabeça a ela e depois foi a vez dele. Dois tiros retumbantes e certeiros. No meu quarto ficaram dois corpos sem cabeça, abraçados no chão, como se enlaçados num último e definitivo adeus. Como se aquela tragédia fosse o nosso privado vulcão, o que trespassa a cidade inteira, a submerge em chamas, lava e cinzas. Quem me dera que tivesse sido isso.

    O meu nome é Sara e matei os meus pais porque me iam comer viva. E agora não sei o que fazer. O que será de mim? Quero viver, não consigo aceitar a morte. Não a quero ainda. Eu...

    Eu queria ser médica.

    Agora só desejo sobreviver.

    Para quem é que eu escrevo isto? Quanto tempo até tirarem esta cidade do mapa? Quanto tempo até nos despejarem uma bomba atómica em cima? Quanto tempo até terraplanarem todo o nosso país? Onde é que isto começou e porque nos atingiu a nós? Que mal tão grande cometemos nós? Que mal é esse para que Deus tenha sentido a necessidade de acabar com a nossa raça?

    Não posso morrer sem saber as respostas a estas questões.

    Os zombies de certeza ouviram os tiros. Virão directos ao apartamento. Eu tenho de sair, desaparecer daqui, rapidamente. Felizmente o pai ensinou-me a manter sempre pronta a mochila com os mantimentos essenciais. Pego nela, vermelha, a minha antiga mochila da escola, na caçadeira e noutra mala cheia de armas, facas e munições.

    2

    Abandono o prédio onde vivi toda a minha vida e vou na direcção da estação de Metro do Lumiar. Não se vêem os zombies. Estão escondidos, a hibernarem quase. Não têm comida. Sem alimento mal se mexem. Entram numa espécie de estado de hibernação. Não raciocinam bem. Têm de comer miolos para recuperarem o juízo, a vontade estratega. Só pensam em comida, em extirpar humanos, em comê-los até ao tutano. Já quase não há humanos que lhes possam servir de alimento. Sei que me vêem e em pouco tempo estarão atrás de mim. Porém há que poupar balas. Não as posso desperdiçar. Corro por entre a rua deserta. Não há carros nem cães nem pombos. Sei que não têm capacidade de correrem tanto como eu. Sem alimento, pelo menos. Seguem-me aos tropeções, primeiro dois e depois outro. Corro, corro como o vento. Deixo-os para trás. Vou até à igreja, em frente ao museu do traje e ao lado do cemitério. Todas as campas estão vazias. Os humanos, em pânico, julgavam que os mortos (já mortos) também se transformavam. Desenterravam-nos para os decapitar. Ninguém sabe como isto começou. Um vírus disseminado através do ar ou da água. Não aguento isto. Quero acordar e estar em casa. Não quero estar aqui. O pai disse:

    - Há um navio de guerra, ancorado no Atlântico, perto da foz do Rio Tejo. Estão a recolher sobreviventes. É para lá que nós vamos.

    - Quando, pai? Como? Como vamos?

    - Estou a tratar disso - dizia. Há seis meses encerrados no apartamento, a viver de enlatados. Precisamos de um barco, dizia. Não queria pensá-lo, mas pensava-o: o meu pai era um covarde a adiar o inevitável: a nossa morte. Ninguém ali sabia navegar um barco, nem sequer a remos. E ele recusava a ajuda de quem quer que fosse. Estávamos encerrados no nosso pequeno covil, à mercê dos elementos. Se não os tivesse morto ainda estaria lá, à espera, a aguardar a morte certa. Sinto culpa imensa ao dizer isto. Um novelo de lã e chumbo na garganta a arrepanhar-me, a nascer como víbora nas minhas entranhas, a querer comer-me o cérebro como os malditos seres necrófagos. Não me posso deixar afundar nesta maldita culpa. Sou a Sara, tenho catorze anos e acabei de matar os meus pais porque me comeriam as tripas, as pernas, tudo. Tenho saudades do Félix, o meu gato malhado.

    Corro até à igreja. No início foi o bunker onde a população sã (sã?) se escondeu dos zombies. Pouco a pouco foram-nos apanhando um a um quando não estávamos a ver. Ainda sei onde está a chave. É uma fortaleza. Ninguém entra sem chave.

    Está na árvore. Escalo por ela acima. Tiro-a. Ao longe vejo um zombie. Vem atabalhoadamente na minha direcção, aos tropeções, cai, reergue-se. É patético. Quase tenho pena. Não vou desperdiçar uma bala. Ele não consegue entrar na igreja, o nosso antigo quartel-general. Sei que há um rádio de ondas-curtas. Não sei se funciona, não importa. Consigo arranjá-lo. Aprendi no livro de cabeceira, o manual que nos ensina o necessário.

    Entro na penumbra. Antes pus os óculos para ver na escuridão. Agacho-me. Ponho-me à escuta. A igreja tem o cheiro de todas as igrejas, um misto de sagrado e antiquíssimo, a calma serenidade que busco. Entrelaçado a esse antigo odor vem outro. Nojento. Asqueroso. Revoltante. Reprimo o vómito. De manhã a única coisa que tomei foi chá verde. Já não tínhamos café. É fundamental estar acordado. Não conseguia dormir. Há mais de seis meses que não conseguia dormir. As minhas olheiras são semelhantes às destas asquerosas criaturas. O meu nome é Sara, tenho catorze anos e um metro e sessenta. Peso quarenta e sete quilos e hoje estoirei os miolos aos meus pais.

    3

    Tenho todo o tempo do mundo para pensar. Na mente oiço o que desejo ouvir desde há muito: o som das ondas a bater na praia e nas rochas. A maresia vem contra mim, como o vento hostil que me quer bater, mas só me faz bem. O vento gelado do mar no Inverno, que me bate e acaba a abraçar-me. Tudo isso é o que me protege do odor asqueroso, revoltante e nojento. A este cheiro fétido que é a minha realidade actual contraponho o olor e o som da praia. Há mais de um ano que não a vejo nem a sinto. As criaturas são lentas e estúpidas. Só se tornam rápidas e astutas depois de comerem. Como os humanos, suponho. Tenho os óculos de ver no escuro. Electricidade há meses que não existe. Não existe nada, apenas uma terra desolada que regressou contra vontade à Idade Média, à Idade Negra e Obscura. Vejo na escuridão, a verde, pelo menos cinco seres nojentos. Um está aos meus pés. Não tem forças para levantar-se. Ergue timidamente o braço para mim. Se pudesse comia-me. Tiro a faca e corto, após três golpes, o pescoço. Separo o crânio da cabeça. Ele mexe os lábios. Dou-lhe um chute displicente. A cabeça rebola até a um dos bancos. Ao fundo vem na minha direcção um homem. Usa os resquícios de um fato. A gravata perdida há muito. É alto. Deve ter sido corpulento. Hoje está ressequido. Consegue andar, ao menos. Vê-se que faz um tremendo esforço para caminhar. Tem o braço direito erguido na horizontal. Arrasta a perna esquerda. Quase tenho pena. Parece vítima de um AVC. Deixo-o aproximar-se. Não tenho medo. Sei que devia. Sei que são infinitamente mais perigosos e que por serem lentos deixamos que se aproximem demasiado. É um erro. Quantos morreram por erros idiotas deste calibre. Riem-se e outro, que não viam, consegue mordê-los. No fim um grupo de dois ou três zombies regozija-se com a carne dos desprevenidos. Mas tenho muita raiva, muito ódio. Quero a oportunidade de extravasá-los. Quero matar este filho da mãe. Outra vez. Dou uma corrida e enfio-lhe a faca no pescoço, tal como fiz ao pai. Aquela coisa que já foi um homem cai de joelhos e com a mão direita tenta sacar, lentamente, a faca. Eu saco de outra e separo o crânio do resto do corpo. O corpo ainda fica uns momentos de joelhos até que cai inerte, no chão, espalhando um líquido negro e fétido no marmoreado local de culto, o chão

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