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A outra história
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E-book310 páginas3 horas

A outra história

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Sobre este e-book

Em 2020 a 7Letras lança os contos reunidos da escritora Miriam Mambrini, em dois volumes independentes e complementares: "O chamado da vida" e "A outra história". São 75 contos no total, incluindo alguns inéditos e as reedições das histórias publicadas em livros, revistas e antologias ao longo de uma carreira de mais de três décadas.
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento8 de jan. de 2021
ISBN9786559050222
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    A outra história - Miriam Mambrini

    Paradise

    Poder

    Imagine-se o nada. E diante dele, alguém que pode fazer surgir imagens, sons, movimento, vida. Não há receitas nem projetos prontos. Sua liberdade não tem limites.

    Ele hesita por instantes... e ousa a primeira frase. O mundo começa a ser criado. Outras palavras se juntam às primeiras e crescem os parágrafos. O vento zune, casuarinas desamparadas agitam os braços contra o céu nublado na tarde que finda.

    Surge um carro na estrada de terra enlameada. Ao final da estrada, quase escondida pelas sombras da noite, pode-se entrever uma praia de águas revoltas onde se espalham algumas casas. O carro para diante de uma delas. Veem-se as primeiras figuras humanas, um homem e uma mulher, Adão e Eva. Ele desce do carro, ela abre a porta da casa para ver quem chega. São vultos. A idade, a aparência, os desejos e sentimentos desses seres ainda não se definiram, nem o que lhes será dado viver.

    Por instantes, o mundo, estático, aguarda o prosseguimento de sua criação. São infinitas as alternativas. Inclusive a de desfazer o começado, voltar atrás e iniciar um novo mundo, uma nova história. O fim do que recém nasceu se alarga como possibilidade. Estremecem Adão, Eva e a praia ventosa.

    Mas a criação segue seu curso. Adão é magro, tem o nariz aquilino e, se o ouvíssemos falar, saberíamos que sua voz é rouca. Eva, que tem olhos tristes, usa um velho casaco de lã e está descalça.

    A vida de Eva vai se esboçando devagar. Nasceu e sempre morou ali na praia varrida pelo vento. Tem um filho que ainda mama em seu seio e um marido estúpido. O marido bate nela quando bebe. E bebe todo santo dia. O vento agita os cabelos ralos de Eva e a faz tremer de frio.

    E este Adão magro, quem é? Um irmão de Eva que viajou para fora do país há muito tempo, ganhou dinheiro e volta agora para rever a família, da qual só ela restou? Um homem que, por anos, pensou na menina com quem brincou num verão remoto, e finalmente resolveu procurá-la? Numa tarde quente, quando não havia vento, mas, como agora, o sol acabara de se pôr, ele ousou ­beijá-la e acariciou seus seios pequenos e pontudos. Nunca mais houve seios tão doces, nem emoção tão intensa. Adão se espanta ao ver o quanto Eva mudou. Eva não reconhece Adão.

    Mas pode haver outros motivos para a presença do homem naquela praia, à porta daquela casa, motivos que não dizem respeito à mulher que o observa, uma simples criada, a vizinha, talvez, personagem secundário. Que caminho escolher entre os mil e um possíveis?

    O homem aguarda, imóvel. Por enquanto, não passa de um vulto magro que acaba de sair de um carro. Pode ser um fugitivo da justiça, um assassino maníaco à procura de uma vítima. Que melhor vítima poderia encontrar do que a mulher solitária e indefesa na porta da casa? Ou, quem sabe, um detetive obstinado perseguindo o maníaco. Ou ainda alguém muito diferente, um artista, um pintor, imagens e cores turbilhonando na cabeça. Ele e a mulher viverão um romance marinho, cheiro de algas impregnando o ar enquanto fazem amor no chão da casa de praia. O marido estúpido rastreia o casal, descobre o amor clandestino, mata os amantes a golpes de machadinha.

    Não, pintor não. O homem é, na verdade, um escritor à procura de um lugar isolado onde possa escrever em paz. Trará à luz velhos e incômodos fantasmas para exorcizá-los. Esse homem guarda um segredo. Vai morrer em breve, tem uma doença fatal, e prefere ele próprio cuidar de sua morte. A morte no mar. Doce? Menos amarga do que a que antevê, num leito de hospital, dores, morfina, tubos por todos os orifícios, definhando aos poucos.

    Lá está ela, a morte. Uma morte indomável que vem de dentro e não de fora, como a que golpearia os amantes ou a mulher na porta, que o maníaco escolheu para retalhar com sua faca afiada. A morte. Será que não é possível esquecê-la? Então, antes mesmo de ser criado, esse homem já foi condenado?

    Pobre personagem que nasceu marcado para morrer! Talvez mereça, pois não se define, não se impõe, não força o criador a penetrá-lo, conhecer seus sentimentos e lhe dar uma vida e uma história.

    Se é para que morra, não o quero, pensa o criador. A mim, não posso recriar, devo seguir meu caminho de condenado, mas posso poupá-lo desse destino. Afinal, sou eu quem cria, aqui é território meu. E por que essa mulher que se deixa espancar pelo seu homem e não se rebela? Que só tem direito a um grito estridente antes da faca do maníaco e a um sussurrado pedido de clemência ao marido que ergue a machadinha? Não, chega de vítimas!

    A mulher triste volta para casa e fecha a porta. O homem magro entra no carro e parte. Sobram a praia, o vento, as casuarinas, o sol que se põe. Não é o ambiente certo, diz o criador para si mesmo. Preciso de mais luz, mais alegria, mais movimento, um espaço onde não caiba o homem com a doença do caranguejo, que tem fantasmas a exorcizar. Talvez o dinamismo da rua de uma cidade grande, onde transita gente que faz planos, trabalha, ri, se diverte e tem esperança. Gente cheia de vida, sem passado e com muito futuro. Personagens que podem viver mais e melhor do que quem as cria. São tantas as possibilidades! Por que estar sempre voltando a esse homem magro e rouco, com seu nariz aquilino e sua condenação?

    Num único movimento de mão, quase com raiva, faz desaparecer o mundo recém-criado. Na tela cinza, o cursor pisca.

    O chinês

    Estávamos na terceira ou quarta semana da quarentena quando o chinês apareceu. Eu o vi no quarto que foi de meus filhos e virou o depósito das pranchas e brinquedos que deviam ter sido doados há muito tempo, mas meus filhos não me deixam descartar.

    Até a quarentena, o movimento era grande aqui em casa. Sempre havia um filho ou um neto para almoçar. Quando se comemorava algum aniversário, meu apartamento grande era o que mais se prestava para acolher toda a família.

    Mas surgiu o tal coronavírus. Mesmo antes da doença chegar aqui no Brasil, eu me preocupava pois ele estava devastando a Itália. Amo a Itália. Quando eu e Cláudio fizemos 40 anos de casados, nossos filhos se juntaram e nos deram uma viagem pra lá. Só de ver na televisão as imagens das cidades vazias e ouvir os números absurdos de mortes, eu chorava.

    Rápido, o vírus chegou no Brasil. Eu estava perto dos 70 anos, era de risco e tinha que ficar isolada para não pegar a doença que certamente me mataria. Ninguém podia mais almoçar nem jantar comigo pra não me passar o vírus. Perguntei ao Renato se pelo menos o Zezinho, meu bisneto de 3 anos, podia vir pra cá depois da creche como sempre fazia, enquanto os pais não voltavam do trabalho. Ele gostava de ficar comigo. Líamos um monte de livros infantis e brincávamos de esconder, eu adorava ficar com o Zezinho. Mas não podia, Renato disse que as crianças são um perigo, pegam o vírus mas ficam assintomáticos, ninguém sabe se estão doentes ou não. Acabam sendo os assassinos de avós apaixonadas como eu.

    Me encerraram em casa. Telefonavam sempre para saber de mim, mas não vinham aqui. Às vezes me traziam empadas ou bombons, e deixavam na minha porta. Quando eu abria e chamava, eles já estavam no elevador. Se eu precisava de algum remédio, eles logo compravam e me traziam. Deixavam no chão, tocavam a campainha e fugiam.

    Eu já não aguentava a solidão, então dei para descer e conversar com o porteiro ou com algum morador que não estivesse confinado e voltasse do trabalho ou do mercado. Alguém me dedurou para Letícia, minha filha, metódica, certinha, chata, não sei a quem saiu, a mim não foi nem ao Cláudio, meu falecido marido, que todos achavam um boa-praça.

    Sem que eu percebesse, Letícia me trancou em casa e levou as chaves. Quando eu descobri e telefonei para ela, a danada, disse, vejam só, que era para o meu bem. Ela não queria que eu pegasse o vírus e morresse. Perguntei se os irmãos tinham concordado, ela disse que sim. Eu me portava como uma criança, o jeito era me trancar.

    Agora, quando eu precisava de alguma coisa, eles iam levar tarde, sabiam que eu andava dormindo cedo pois o dia ficava muito comprido, ou entravam pé ante pé e deixavam as coisas na cozinha. Ás vezes eu ficava acordada só para ver se pegava alguém, mas sou um pouco surda e não ouvia o barulho da porta nem dos passos.

    Posso ser velha e surda, mas não sou burra, tenho rádio e televisão e leio os jornais do dia anterior que meus filhos trazem para mim. Então desde o princípio soube que o vírus veio da China. Era um vírus de morcego. Um chinês qualquer, apreciador de carnes exóticas, ia num mercado especial, comprava morcegos e comia. Na certa ainda chupava as asinhas. Só de pensar nisso, sinto um nojo tão grande que fico com vontade de vomitar. Aliás não devia ser só um chinês que fazia isso, eram muitos, pois eles são tantos que não se pode pensar na unidade. Eles não são indivíduos, são multidões. Assim, um milhão de chineses correspondem a um brasileiro, pois diante dos bilhões que eles são, um milhão é como se fosse um só.

    Se eu já não gostava dos chineses, que tem aqueles olhos oblíquos, pra mim, sinal de falsidade, agora, depois da pandemia, mesmo elegantes, usando ternos e roupas de grife, é que não gosto mesmo. Fui buscar um travesseiro no quarto dos meninos e o que eu vejo? Um chinês de terno, sorrindo, com muitos dentes, eles têm mais dentes do que a gente.

    Tomei um susto e saí correndo. Santa mãe de Deus, valei-me! O que esse chinês quer de mim? Entrei no meu quarto e tranquei a porta. A televisão estava ligada e falavam que na tal cidade do vírus, a epidemia já estava acabando. Não tinha se espalhado para outras cidades próximas, nem Pequim, nem Nanquim, nem sei lá mais o quê. Mas tinha percorrido mais de 17.000 quilômetros e chegado aqui. Estranho, não? Achei que o chinês do quarto dos meninos era mais um dos emissários deles e vinha entregar a domicílio um vírus especialmente para mim.

    Corri para o telefone ainda tremendo e contei ao Renato que tinha um chinês aqui em casa.

    Ele ainda está aí? perguntou o Renato.

    Não sei. Quando o vi, saí correndo, mas ele pode ter se escondido em algum lugar.

    Mãe, você não viu chinês nenhum, isso é imaginação. Fica calma!

    "Então me dá a chave da casa. Não fico presa aqui com esse chinês nem morta.’’

    A chave está com a Letícia.

    Pega ela e traz para mim.

    Se a chave estivesse com ele ou o Ronaldo, tudo bem, mas com Letícia... Conheço a peça, ia dizer que inventei o chinês pra ficar com a chave.

    Faz uma cópia da chave, Renato.

    Vou conversar com meus irmãos.

    Diz a eles que com o chinês aqui em casa, eu não fico. Se não me derem a chave, eu me jogo pela janela.

    Foram minhas palavras finais. Renato disse Está bem, mãe, e desligou.

    Resolvi voltar ao quarto dos meninos para confirmar. Não entrei. Ouvi um lig-lig-lé por lá, meti o olho na abertura e vi que já tinha um número enorme de chineses, todos me cumprimentando. Um pozinho prateado caía no chão quando eles se curvavam. Deviam ser os vírus. Corri para o quarto de Letícia, que era ao lado, e vi que tinha chineses por lá também.

    Fui de novo para meu quarto. Dessa vez liguei para Letícia.

    É pra falar de novo no tal chinês? Ora, mãe, isso é delírio. A senhora está delirando. Mas nós vamos aí. Todos três.

    Eu tinha pensado em pedir que ela me trouxesse um ferro de passar antigo que estava com ela, a coisa mais pesada que eu conseguia me lembrar, para dar com ele na cabeça do chinês, mas agora que eles eram tantos, não ia adiantar de nada. Disse apenas: Venham logo!

    De fato, não demoraram. Vieram os três, Letícia, Renato e Ronaldo, para livrar a mãezinha deles do chinês ou da loucura. Quando me aproximei da porta, gritaram para eu ir pro meu quarto, não me queriam por perto. Deixei a porta do quarto entreaberta e fiquei espiando o passeio deles pelo apartamento.

    Aqui não tem nada, disse um. Nem aqui. Saí do quarto e fui ao encontro dos meus filhos, que recuaram como se eu fosse uma leoa faminta. Sai, sai, vai para o quarto, Põe a máscara. Letícia tirou da bolsa uma máscara estampada e jogou para mim. Peguei no ar, meus reflexos ainda estão bons, e botei de qualquer jeito. Não é assim, tem que segurar pelos elásticos.

    Tirei a porcaria da máscara e perguntei, ameaçando avançar: Cadê a chave? Para trás, disse Ronaldo. Nós andamos pela rua, podemos estar contaminados. Então joguem a chave. Renato chegou a enfiar a mão no bolso, ele é o mais legal de meus filhos, deve ter mandado fazer uma cópia para mim. Não, gritou Letícia, Se você der a chave, ela vai fugir, pegar o corona vírus e morrer. O culpado vai ser você, Renato.

    Prefiro morrer do que ficar trancada aqui com os chineses. Renato tentou me acalmar: Examinamos tudo, mãe, não tem chinês nenhum. Como me aproximei, os três correram para a porta e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, saíram. Ouvi o barulho da chave girando na fechadura. Pronto. Estava perdida. Sozinha com os comedores de morcegos. Gritei: Vocês são uns desnaturados. Eles ainda estavam atrás da porta e se defenderam como puderam: Eu trouxe doce de leite pra senhora. E eu o estrogonofe de frango que a senhora gosta e que eu mesma fiz. Eu trouxe chocolate da Kopenhagen. E fruta também, tem até caqui. Está tudo na bancada da cozinha!

    Pronto, já tinham dado seu recado. Ouvi o barulho de seus passos se afastando e comecei a chorar. De repente, me veio uma esperança. A vassoura! Eu podia dar com a vassoura na cabeça deles, ou pelo menos varrer os vírus que eles tinham derramado no chão.

    Tirei o chinelo para não fazer barulho e entrei no quarto dos meninos de vassoura em punho. Mas a confusão entre os chineses era tão grande que não pude bater neles. Ficavam todos se curvando, rindo e soltando o pozinho prateado. Vi que já havia alguns na sala. O meu quarto era o único em que ainda não tinham entrado.

    Corri para lá e fui até a janela. Comecei a gritar: Socorro, socorro, estou presa aqui! Mas isso não era suficiente, eu tinha que mostrar a urgência de me tirarem de lá, e se falasse nos chineses, poderiam achar que era loucura, como acharam os meus filhos. Então gritei: Chamem os bombeiros! O apartamento está pegando fogo!

    Repeti: Fogo, fogo! Bombeiros, bombeiros!

    O vizinho do quinto andar (moro no sexto) subiu pelas escadas, veio até a porta da cozinha e começou a gritar: Abra, abra, e a bater com força. Respondi também gritando Não posso, Não tenho a chave!

    Ouvi o alarido de outros moradores chegando. Calma, calma, disse alguém, onde é o fogo? Aí me dei conta de que tinha que haver fogo. No quarto dos fundos, respondi.

    Peguei rapidamente a caixa de fósforos e uns jornais velhos e fui até lá. Passei entre os chineses, fiz umas tochas com os jornais e taquei fogo nos dois colchões e em uns cadernos de folhas grampeadas que estavam numa gaveta. Acho que era a tese de mestrado do Ronaldo, mas ninguém queria saber daquilo, era uma bobajada. Tinha mais umas pastas de papel ali. Ótimo.

    Depois que vi que o fogo tinha pegado direitinho, os chineses estavam até tossindo, fui ao quarto da Letícia. Havia poucos chineses por lá. Foi fácil botar fogo no tapete e na colcha. A cortina pegou fogo num instante. Na sala já havia chineses, cantando lig-lig-lé. Pus fogo no sofá, era a minha chance de me livrar daquilo, desconfortável, cor de burro quando foge, não sei onde estava com a cabeça quando o comprei.

    Voltei à porta da cozinha, onde os vizinhos gritavam meu nome: Dona Elza, dona Elza! Onde está a chave?, perguntou uma mulher que chegara atrasada.

    Os assaltantes levaram, respondi. Puseram fogo na casa e me prenderam aqui. Teve assalto também?

    Não respondi. Fui ver como andava o fogo. Lindo, crepitando, tanta fumaça que nem dava pra ver os chineses. Voltei à porta da cozinha. Alguém abra essa porta, o fogo está tomando tudo.

    A porta balançava, os vizinhos tentavam derrubá -la.

    Ouvi a sirene do carro dos bombeiros. Logo eles ligaram as mangueiras e começaram a jogar água pelas janelas. Um deles subiu pelas escadas com um machado e derrubou a porta. Pronto, eu estava livre. Saí de casa correndo. As pessoas perguntavam: O que aconteceu, Dona Elza?

    Contei que uma quadrilha entrou aqui não sei como, remexeu a casa toda procurando dinheiro e joias. Ficaram umas feras porque não encontraram nada e disseram que iam me trancar pra eu aprender que tinha que ter uns dólares, uns relógios, uns reais mesmo serviam, para pagar o trabalho que eu dera a eles. Aí tacaram fogo nos colchões e saíram levando as chaves.

    Me perguntaram como eles eram, disse que pareciam chineses. Tive que mentir sobre o número. Se eu dissesse que eram centenas, ninguém acreditaria. Disse três, um bom número.

    Meus filhos chegaram esbaforidos, o porteiro telefonara para avisá-los. O que houve, mãe? Foram os chineses. Não tinha chinês nenhum quando estivemos aqui. Vocês não procuraram bem e não quiseram me ouvir. Eles se esconderam no meu quarto, enquanto vocês procuravam pelo resto de casa.

    Por fim, tudo se acabou. Meu apartamento estava destruído pelo fogo e água mas não tinha chinês nenhum.

    E agora, como fica a quarentena?, perguntou Letícia. Os meninos se entreolharam. Lá em casa é difícil, já estão o Juca, a Luiza e o Zezinho. Na minha não tem quarto disponível, e eu trabalho todo o dia, entro e saio. É perigoso. Na minha, a questão é a Beth. Mamãe e ela não se dão.

    O general Garcia, militar reformado que mora sozinho no segundo andar, disse que não tinha problema, eu podia ficar no apartamento com ele. Também estava fazendo a quarentena.

    Meu filhos acabaram concordando que a melhor solução era eu ficar na casa do general. Achei ótimo. Garcia ainda era um velho apresentável e logo que fiquei viúva saímos juntos algumas vezes.

    Então me mudei para o segundo andar e não saí mais de lá.

    Xadrez

    Tem um moço querendo falar com você, pai.

    Da mesa onde janto com Rosita e as crianças, vejo o estranho em pé na porta. Está de terno e gravata. Deve ser um pouco mais jovem do que eu, tem olheiras e um ar desamparado. Na rua sombria, por trás dele, as lâmpadas acesas abrem clareiras circulares.

    Enxugo a boca com o guardanapo, levanto-me e vou recebê-lo.

    O senhor é o filho de Genésio Ramos?, pergunta ele.

    É a primeira vez em muito tempo que ouço alguém pronunciar o nome do meu pai. Respondo que sim e espero, curioso, que diga o que quer.

    Ele me olha fixamente. Uma sombra passa em seu rosto, onde a barba nasce rala aqui e ali, barba de adolescente em homem feito. Engole em seco antes de dizer:

    Me chamo Vítor Dantas. Seu pai matou o meu pai.

    Lembro-me vagamente de um homem de terno cinza em pé na porta (na verdade, apenas seu contorno mais escuro contra o escuro da

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