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Réquiem para Infância
Réquiem para Infância
Réquiem para Infância
E-book826 páginas13 horas

Réquiem para Infância

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Sobre este e-book

Réquiem para a Infância é a estória de quatro amigos que pensavam ser inseparáveis, dos caminhos que tomaram e de como suas escolhas definiram seu caráter e os fizeram enfrentar os desafios que a vida lhes impôs.

"Éramos amigos porque, de certa forma, nos completávamos, nossa amizade era uma tábua de salvação, um exercício constante de olhar um pouco além do nosso limitado horizonte. Nossa amizade era um refúgio e uma forma de dividir o que tínhamos de mais precioso. Claro que só hoje é que percebo isso, naquela época não me preocupava em pensar o porquê das coisas, não me espanta nada ter sido tão feliz em meio a tão pouco."

Mateus Rocha – conhecido pelos seus amigos como Cabeça – nos conta essa estória narrando diversos acontecimentos de sua vida e de seus amigos que se interligam de tal modo que o destino de um influenciaria diretamente o destino de todos. Ao narrar sua estória, ele busca finalmente confrontar seus fantasmas e frustrações em razão de um amor perdido e do sentimento de impotência perante os erros do passado, na ânsia de encontrar alguma forma de redenção.

Mateus nos leva por quase 50 anos de narrativa, tendo como principal pano de fundo desta estória de um lado seu estrondoso sucesso como escritor e sua insatisfação por ter o mundo a seus pés e ainda assim não encontrar a paz que almejava e do outro, a ascensão das guerrilhas urbanas e o golpe militar no Brasil em 1964, quando ele e seus amigos eram ainda apenas adolescentes, e de como essa mudança dramática na História nacional influenciou suas vidas e traçou seus destinos, transformando amigos de infância em inimigos mortais e gerando consequências que os influenciariam radicalmente em um caminho trágico e aparentemente sem volta.

Essa é uma estória sobre o valor da amizade, o difícil peso das escolhas, amores que não podem ser esquecidos e erros imperdoáveis. É a jornada de um homem em busca de se conciliar com seu passado e reencontrar seu verdadeiro destino.

IdiomaPortuguês
EditoraJoao Costa
Data de lançamento30 de ago. de 2012
ISBN9781476288390
Réquiem para Infância
Autor

Joao Costa

João Costa nasceu em Natal, RN num dia ensolarado de Julho, mas mesmo assim ele gosta de dias chuvosos e acha a neve sexy. Após cinco anos de intensa esbórnia e discussões etílico-filosóficas graduou-se Bacharel em Administração pela UFRN aos 22 anos. Pensando em ganhar o mundo, picou a mula e foi morar em Londres onde já fez de tudo um pouco – desde segurança de night club e chefe de cozinha até vendedor de cosméticos e boia fria (fria mesmo porque colher cenoura no inverno não é para os fracos). Atualmente ele trabalha como executivo na área de inteligência corporativa, mas continua recebendo salário de boia-fria. O autor ainda não ganhou o mundo, mas fez bons amigos e colecionou ótimas estórias pra contar. Réquiem Para Infância é o seu vigésimo livro – um dos poucos que ele conseguiu passar da quinta página e o único que ele conseguiu terminar, e apesar de algumas semelhanças entre ficção e acontecimentos reais, todos os personagens, infelizmente, são produtos de sua imaginação... ou quem sabe? Joao Costa was born in Natal, RN in a sunny July morning; nonetheless he enjoys rainy days and finds the snow rather sexy. After five years of intense revelry and ethylic-philosophical debates, he got his bachelor degree in Management when he was 22 years old. Wishing to conquer the world, he saddled his horse and went to live in London wherein he had to make a bit of everything in order to survive – from bouncer in a dodgy night club and chef de cuisine in an even dodgier restaurant to cosmetics salesman and farm worker (picking carrots in the winter is not for the weak). Currently, he works as a sales director in a business intelligence company, but still earns as a farm worker. The author has not conquered the world yet, but he’s made some very good friends and collected great stories to tell. Réquiem para Infância is his twentieth book – one of the few he’s managed to get past the fifth page and the only one he could complete so far. Notwithstanding the similarities between fiction and reality, all the characters in the book, unfortunately, are a product of his imagination... or maybe not.

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    Réquiem para Infância - Joao Costa

    Toda estória que rebusca as memórias de infância tem que começar com os apelidos, e com essa estória isso não poderia ser diferente. Eles dizem muito do que nós éramos e do que pensávamos, de como os outros nos viam e – em nosso caso particular – de como queríamos ser vistos.

    Nós fomos quatro amigos inseparáveis e crescemos com duas coisas em comum: éramos paupérrimos e nossos pais ou aqueles que cuidavam de nós acreditavam que o estudo era a única forma de sair da pobreza e de ganhar dignidade na vida, por isso éramos forçados a ir à escola ao invés de trabalhar para ajudar no sustento da família.

    Nunca passei fome – o que é mais do que alguns meus amigos poderiam contar em certas ocasiões – mas experimentei outras privações e desde cedo percebia o nervosismo do meu pai quando teria que mais uma vez comprar fiado na bodega já no finalzinho do mês, para pagar quando recebesse seu parco salário, quando havia salário, é claro.

    Além da pobreza e dos sonhos de nossos pais dividíamos uma amizade forjada na alegria do acaso e no dissabor das circunstâncias. Éramos amigos porque, de certa forma, nos completávamos, nossa amizade era uma tábua de salvação, um exercício constante de olhar um pouco além do nosso limitado horizonte. Nossa amizade era um refúgio e uma forma de dividir o que tínhamos de mais precioso. Claro que só hoje é que percebo isso, naquela época não me preocupava em pensar o porquê das coisas, não me espanta nada ter sido tão feliz em meio a tão pouco.

    II

    Pardal era meu melhor amigo, mas não era só meu. Pardal era o melhor amigo de todo nós. Era o irmão mais velho, o conselheiro, e – para nossa sorte – o guarda-costas. Nós todos começamos na escola aos sete anos, Pardal começou aos oito e conseguiu repetir o primeiro ano. Ele era dois anos mais velho, e por consequência disto e de sua herança genética, desde a mais tenra infância ele era o maior garoto da turma.

    Mas por que chamávamos Luís Henrique Oliveira dos Anjos de Pardal? Esse era o melhor apelido. Luís Henrique era o Pardal porque ele estava em todo lugar. Se íamos jogar bola no terreno baldio, pardal já estava lá. Se pensávamos em ir ate a maré ver os caboclos pescando caranguejo, pardal já estava voltando com uma corda de caranguejos na mão e um sorriso de sol nascente nos lábios. Em toda festa ele era o primeiro a chegar. Era o primeiro também a chegar – e a sair – da missa de Domingo e nunca perdia um comício. Por ele ser mais velho e porque seu pai era caminhoneiro e quase nunca parava em casa, Pardal fazia da rua seu segundo lar, e já que não tinha hora pra chegar ou sair ele voava de lá pra cá sem se preocupar muito com nada.

    O pai de Pardal se chamava Seu Jorge Lobo dos Anjos, mas para todos, ele respondia pela alcunha de Jorjão. Era um dos poucos adultos que não tratávamos por senhor e sim pelo apelido de carinho duvidoso. E sempre que alguém o chamava de Seu Jorge ou de senhor, ele vinha com a clássica Senhor tá no céu rapaz. Vindo de uma torre humana de 1.95m e uns 150 quilos, nós chegávamos até a duvidar disso, mas ninguém o questionava.

    As más línguas diziam que a família legítima de Jorjão estava na verdade em Salvador, onde ele teria muitos filhos com uma baiana formosa que vendia acarajé no Pelourinho. Outras já falavam de uma viúva capixaba que sempre estava a esperá-lo – nunca ninguém dizia nomes ou como sabiam daquilo o que me faz realmente acreditar que tudo era fantasia. A percepção de que um homem que vive nas estradas possui sempre duas famílias e várias amantes é algo típico do imaginário popular. Mas francamente, acho que aquele homem bom tinha como segunda família o caminhão e sua amante era a estrada.

    Fosse como fosse, para nós, Jorjão era o pai de Pardal e Dona Marta, sua mãe.

    Dona Marta dos Anjos era uma mulher especial. E acho que enquanto Pardal puxou ao pai no tamanho, certamente seu coração era feito do mesmo material que o de Dona Marta. Dona Pardal era como nós a chamávamos algo que indignava minha mãe, mas que apenas fazia Dona Marta sorrir. Sempre havia doce na casa de Dona Marta para gente e quando a coisa apertava e não tinha mais doce, aí tinha manga ou goiaba, e sempre um sorriso, sempre uma palavra de afeto. Todos a amávamos como fosse uma segunda mãe.

    A família dela era toda da Paraíba. Seu pai era dono de um armazém em Campina Grande e era conhecido como um cabra valente.

    Um dia, Jorjão foi deixar uma carga na cidade dela e a viu na Praça com as amigas depois da missa. Dona Marta era mais do que apenas bela, ele era doce como a promessa de dias melhores e simplesmente encantadora, pelo menos é assim que eu a imagino. O homem enlouqueceu por ela e, numa dessas coincidências que fazem a vida imitar a arte, ela também se engraçou dele. Vai ver que na época Jorjão não tinha aquela pança e talvez não deixasse a barba sempre por fazer. Fosse como fosse, o pai dela não viu aquilo com bons olhos, e ameaçou castrar Jorjão caso ele se aproximasse dela, ou pelo menos voltasse por aquelas bandas. Jorjão, que não tinha medo de nada, voltou pouco tempo depois, e a levou embora de mala e cuia.

    Eles casaram ao chegar a nossa cidade e só depois de muito tempo ela foi dar notícias à família, por carta. Mas eles nunca responderam. O amor deles dois era uma ofensa que seu pai não poderia perdoar e Dona Marta ficou só no mundo com Jorjão, mas mesmo assim ela estava feliz.

    Pouco depois de Pardal nascer, ela recebeu a notícia de que seu pai havia falecido. Jorjão – por um desses pequenos favores da vida – estava em casa e a levou até Campina Grande para visitar sua mãe, e pedir-lhe a bênção para Pardal. A doçura de Dona Marta contrastava com a rudeza de sua família, especialmente a amargura de sua mãe que nem quis recebê-la e não se interessou em ver o neto.

    Estou certo de que eles perderam bem mais do que ela.

    Pardal foi o segundo filho deles. A primeira, uma menina, a quem eles chamariam Ângela morreu nos braços de Dona Marta pouco depois de nascer. Vez por outra ela falava do anjinho dela que estava no céu cuidando deles. Nunca souberam o motivo da morte da criança, àquela época a medicina além de ser atrasada era privilégio de poucos.

    Pardal não veio ao mundo facilmente, Dona Marta ficou quase três dias sofrendo em trabalho de parto, Pardal estava sentado e por mais que os médicos tentassem, eles não conseguiam virá-lo para que pudesse nascer. No hospital não havia recursos para fazer uma cesariana, pois o dinheiro destinado à saúde pública, mais uma vez, havia sido desviado para o bolso de políticos e burocratas corruptos. Quando tudo parecia perdido o Doutor soltou um palavrão e gritou para a enfermeira. Enfermeira, chama Mãe Santa que a mulher e a criança vão morrer!

    Mãe Santa era uma benzedeira que morava num cortiço perto da linha do trem atrás do morro, que ficava ao lado de nossa rua. Ela era o sal da terra, e a pessoa mais bela que conheci. Pequenina, não mais de 1.50m, pele morena, rosto marcado por muitos anos e muito sofrimento, quem a via de relance pensava que se desfaria ao vento, mas os que a conheciam sabiam que ela era uma fortaleza onde muitos buscavam abrigo. Ela era tão famosa na cidade quanto era pobre, pois nunca aceitava pagamento pelas suas rezas e não foi uma ou duas vezes que médicos a chamaram para benzer pacientes ou ajudar no parto, algo impensável hoje em dia.

    Até o padre a respeitava e acreditava em suas rezas, mesmo porque Dona Santa era devota de Nossa Senhora Aparecida e ia à missa todos os Domingos, apesar de nunca se confessar. Tem coisas que a gente só deve falar com Deus, meus filhos. Ela viria a nos dizer muitas vezes.

    Quando Mãe Santa chegou ao hospital Dona Marta estava tão cansada que já nem conseguia falar, ela alisou-lhe a testa e sussurrou em seu ouvido: Não se avexe minha filha, que esse anjo aqui fica na terra, o seu outro anjo lá do céu tá olhando pra ele agora. Só aquilo já foi suficiente para acalmá-la. Mãe Santa orava segurando uns ramos de capim santo e empurrava a barriga dela fazendo força para que o menino se ajeitasse e pudesse nascer. O médico e a enfermeira apenas olhavam atônitos, pois que sabiam que nada mais podia ser feito e já tinham como certo a morte da mãe e da criança. Porém em menos de meia hora as contrações aumentaram e Pardal começou a vir ao mundo. A enfermeira desatou a chorar e disse que aquilo era um milagre. Mãe santa apenas retrucou suavemente. Todo nascimento é um milagre minha filha, pois é da vontade do Nosso Senhor.

    E assim Pardal nasceu.

    Nas primeiras semanas Dona Marta ficava de vigília como se esperasse o pior, mas Pardal era saudável como um touro, e aos nove meses já estava dando os primeiros passos.

    Ele era a vida e o orgulho do Jorjão, quando ele não estava na estrada ou de pijama em casa, ele estava andando pra cima e pra baixo com Pardal no cangote, carregando o filho como o troféu que ele bem merecia. Quando Pardal adoeceu de meningite aos seis anos e todos deram por certo que ele iria falecer, essa foi a única vez que alguém viu Jorjão chorando, ele soluçava e pedia a Deus que não levasse o seu filho. Depois de muito remédio e muita reza – especialmente de Mãe Santa, é claro, Pardal melhorou e acho que dali para frente Jorjão não pediu mais nada a Deus, apesar de ainda ter muito que pedir.

    III

    Entre os amigos Pardal era melhor em tudo. No futebol não tinha pra ninguém, era mais rápido, mais forte e mais ágil que todos nós, e tinha aquela característica que faz parte dos gênios, na frente do gol ao invés de ficar nervoso, ficava mais calmo e escrevia poesia com a bola. Foi vendo Pardal jogar que eu aprendi a amar o futebol, apesar de jogar mal e porcamente, sendo condenado desde cedo a ser sempre zagueiro perna-de-pau ou goleiro frango. Mas pelo menos jogava; se não fosse por Pardal, eu jamais teria passado de gandula.

    Na bola de gude – que chamávamos de biloca – Pardal era rei. Raramente errava, e jogar com ele significava ouvi-lo dizer repetidamente tilei que era como gritávamos quando acertávamos uma jogada. O curioso é que ele não colecionava as bilocas, por isso após ganhá-las, distribuía com os amigos, o que nos garantia um suplemento quase ilimitado de bilocas para perdermos no jogo, Pardal sempre foi alguém desapegado a bens materiais, e para ele estar de bucho cheio era a única coisa que contava, o resto era lucro.

    Quando empinava pipa parecia que o vento obedecia ao seu sorriso, e sua pipa sempre voava mais alta e também ele era o último a ficar no céu quando competíamos entrelaçando as pipas em pleno ar para assim cortar as linhas uns dos outros. Muitas vezes vi seus dedos ficarem em carne viva devido ao cerol, uma substância resultante da mistura de cola e vidro, com que molhávamos a linha da pipa para deixá-la preparada para a batalha. E ele parecia nem sentir dor, era como se ele fosse a pipa lá nos céus a nos observar e rir de nós, pois não conseguíamos sair da terra.

    Ele fazia o peão ‘dormir’ na unha do polegar sempre que queria; na corrida ele sempre voava um pouco, no esconde-esconde achava o lugar mais difícil, no bafo constantemente virava as figurinhas mais raras, no baralho ele ria da sorte e até na amarelinha, para desespero das meninas, Pardal pulava como um saci. Em tudo Pardal era o melhor – menos na escola – mas se tinha algo que ele se destacava com amor, era na capoeira.

    Pardal tornou-se mestre de capoeira aos 17 anos, o mais novo mestre da nossa cidade – e acredito do Brasil àquela época. Seu professor era o Mestre Sabiá, um angoleiro de classe que ria qual criança quando Pardal dizia satisfeito Eu jogo bem capoeira, porque capoeira é coisa de passarinho!

    Mestre Sabiá era um baiano que morava quase vizinho à casa de Pardal. Era um dos poucos amigos de Jorjão. Eles se conheciam há alguns anos e se respeitavam bastante, mas não sei sob que circunstâncias vieram a se conhecer, Jorjão viajou o Brasil todo e conhecia gente de todos os Estados, até mesmo do Acre, o que para mim, naquela época, parecia o fim do mundo.

    Em nossa cidade Mestre Sabiá trabalhava como vigia no mercado central das oito da noite quando o mercado fechava às cinco da manhã quando os portões se abriam para os fregueses, e ele já havia feito de quase tudo na vida. Nascido na pobreza em Vitória da Conquista, o único bem que a família possuía era a capoeira, que corria nas veias de seus ancestrais desde a época da escravidão. Seu pai o ensinou o que aprendera do pai dele um dos maiores angoleiros do Brasil, filho de escravos, que tragicamente teve os Tendões de Aquiles cortados por um soldado por jogar e ensinar capoeira – algo que era proibido no começo do século em todo Brasil. Seu avô não morreu dos ferimentos, mas nunca mais pôde jogar capoeira e, como o pai de Mestre Sabiá mesmo dizia ele amofinou que nem passarinho que não avoa e morreu de tristeza.

    Já adulto, Mestre Sabiá e dois de seus irmãos que também eram angoleiros exímios – mas não tão bons quanto ele – mudaram-se para Salvador, pensando em ganhar a vida jogando capoeira. Claro que não conseguiram. Hoje a capoeira é considerada um esporte nacional e é muito valorizada, mas naquela época – apesar de já não ser proibida – era vista não apenas como coisa de pobre e de preto, mas como sinal de marginalidade, minha mãe mesmo dizia que Pardal um menino tão bom, filho daquela santa iria se perder por causa da capoeira.

    Mestre Sabiá e seus irmãos tiveram então que se virar para poder sobreviver. Mestre Sabiá foi ajudante de pedreiro, borracheiro e segurança de políticos – o que lhe rendeu algumas amizades importantes. Antes disso chegou a passar alguns meses viajando com um circo pelo interior do Nordeste fazendo acrobacias – mas foi embora quando o dono sugeriu que ele se vestisse de palhaço para dar mais vida ao seu número. Seus irmãos, menos pacientes, eventualmente rumaram para o Sul do país e lá se perderam na vida, o que, para Mestre Sabiá queria dizer pararam de jogar capoeira. Mestre Sabiá recebia poucas notícias deles e mandava menos ainda.

    Como já disse, não sei como ele e Jorjão ficaram amigos, mas sei por que ele foi morar em nossa cidade. Tudo começou quando Mestre Sabiá matou um homem em Salvador. Foi legítima defesa, pois o meliante estava armado com uma faca e o atacou para roubar-lhe o minguado salário. Apesar de ser um mestre de capoeira e exímio brigador, Mestre Sabiá tinha pouco mais de 1.60m, já tinha quase 50 anos e era magrinho, magrinho, parecia até que passava precisão como ele mesmo se descrevia.

    Suas pernas meio tortas, seu rosto sereno e sorridente – que teimava em impedir que o tempo deixasse suas marcas – e seu olhar doce o faziam parecer um alvo ideal para ser assaltado. Quem o conhecia, é claro, não se metia com ele, quando ainda jovem trabalhando como segurança botou muito homem maior pra correr – quando tinham a chance de correr, o que nem sempre ocorria.

    O bandido não teve a menor chance, quando sacou a faca e disse: passe o dinheiro seu preto filho da puta, ou eu vou abrir um talho nos seus peitos, mestre sabia chutou-lhe a mão da faca com a perna esquerda o desarmando, num piscar de olhos inclinou-se para o lado direito e apoiando as duas mãos no chão o derrubou com uma tesoura certeira. Esse não era um golpe mortal – Mestre Sabiá não tinha intenção de matá-lo, apenas de defender-se – mas quando o infeliz caiu, ele bateu com a têmpora na quina de um batente na calçada, morreu sem saber o que o havia derrubado, contradizendo o ditado popular de que vaso ruim não quebra fácil.

    Legítima defesa não quer dizer muita coisa quando naquela época um pobre semianalfabeto, preto e capoeirista matava um homem branco. Os policiais quando chegaram já tinham sua versão dos fatos, Mestre Sabiá era o meliante que havia atacado um cidadão que sacara a faca apenas para defender-se. A sorte dele foi que um moleque de rua viu o tumulto de longe, e chamou um dos alunos do Mestre Sabiá que por sua vez contatou um vereador da cidade para quem Mestre Sabiá trabalhara por algum tempo como segurança.

    A cidade ainda era pequena, mas o vereador não estava em casa e do momento que o aluno de Mestre Sabiá correu para encontrá-lo até o momento em que o ilustre vereador chegou à delegacia e exigiu que o delegado soltasse seu cliente – além de vereador ele era advogado – passaram-se mais de três horas, tempo esse em que Mestre Sabiá ficou íntimo com o pau-de-arara.

    O pau-de-arara foi criado pelos portugueses mercadores de escravo, como forma de punição para negros desobedientes. É um método de tortura horrivelmente simples e eficaz. Basicamente uma barra de ferro é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra dos joelhos da vítima, a barra é então colocada entre duas mesas, ficando o corpo do infeliz que tiver de passar por isso pendurado a menos de meio metro do chão. Um minuto no pau-de-arara é um suplício, duas horas é algo que me dói imaginar. Todos os músculos do corpo se retesam com cãibras e as articulações dos ombros e dos joelhos doem tanto que parecem estar pegando fogo, depois de alguns minutos cada segundo parece eterno.

    Mestre Sabiá viveu uma eternidade de duas horas, e nesse período nem sequer gritou. Cada tapa que levava na cara seguida da ordem para que confessasse o crime, só o deixava mais determinado a negar e não dar sinais de dor mesmo que tivesse de morrer.

    Quando a mando do vereador o tiraram do pau-de-arara ele saiu com a dignidade que só os homens que superaram a dor conhecem. Mas isso não lhe aplacou o ódio. Pouco tempo depois deu uma surra no delegado que o mandara para o pau-de-arara.

    Esse sim, Mestre Sabiá quis matar – mas talvez o anjo da sorte que nunca antes zelara pelo angoleiro, decidiu dar-lhe essa graça, e o delegado sobreviveu.

    Por isso Mestre Sabiá saiu fugido de Salvador – pois nem o vereador poderia livrá-lo daquela enrascada – e, entre uma paragem e outra, acabou pousando em nossa cidade.

    Um dia, com apenas nove anos vendo os pupilos de Mestre Sabiá jogando capoeira na praia Pardal ficou encantado e perguntou se Mestre Sabiá o tomaria como aluno. Mestre Sabiá ainda segurando o berimbau, e fitando de alto a abaixo aquele menino galego de olhos verdes e da pele encarnada, queimada do Sol disparou a pergunta: E o menino quer aprender capoeira pra modi de que?

    Pra modi voar igual passarinho Pardal respondeu na bucha, com aquele sorriso bom que ele tinha.

    Pois então, Mestre Sabiá retrucou alegremente, vou ensinar pro menino coisa de muita valia, vá lá no meu cazuá amanhã de tardezinha e nós vê se o menino leva jeito de jogá, mas antes eu vou falar com seu pai, pra modi vê se ele não se importa. Porque menino alvo assim eu nunca ensinei não, nem nunca vi angoleiro galego.

    Jorjão que como já disse passava a maior parte da vida na estrada sabia que cuidar de Pardal era trabalho demais para sua esposa e que menino que vivia na rua acabava estragado. Então ele mesmo encorajou o filho a aprender a arte do Mestre Sabiá, foi a decisão mais sábia que Jorjão tomou na vida – depois de ‘roubar’ Dona Marta da família dela, é claro.

    E Mestre Sabiá, que devido aos percalços da vida teve muitas mulheres, mas nenhuma esposa que lhe desse um filho homem, acabou tomando gosto por Pardal como fosse seu próprio filho, e lhe ensinou a Capoeira de Angola, honrando o sangue de seus ancestrais, assim como seu pai, e o pai de seu pai e todos os que vieram antes. E desse dia em diante, até quando a tragédia atingiu a todos nós, Pardal para onde ia sempre ia cantando aquela canção que se tornou sua favorita:

    Maior é Deus

    Maior é Deus, pequeno sou eu

    (Tudo) O que eu tenho foi Deus que me deu

    (Tudo) O que eu tenho foi Deus que me deu

    Na roda da capoeira

    (Hahá!) Grande e pequeno sou eu

    Camará…

    2. Rosca

    Rosca era o galã, sempre foi. Não apenas porque era o mais bonito – desde garoto sua pele cor de oliva, seus olhos marrons, e a perfeita simetria de seu rosto chamava a atenção de todos a sua volta – mas porque era o mais misterioso. Rosca não era só beleza, Rosca tinha uma empatia natural, uma capacidade de seduzir as pessoas com palavras e gestos. Na época não sabíamos nomear aquilo, depois aprendi que se chamava carisma e que em tudo que Deus tirou dele, compensou com um excesso de carisma que viria a persegui-lo no futuro.

    Todas as meninas queriam namorá-lo, isso desde tempos imemoriais. Nas quadrilhas de São João todas queriam dançar com ele, nas festas da escola também. Ele era sempre escolhido o líder da turma – e desde cedo mostrou que seu negócio era a política. Eu tinha a impressão que até as professoras eram mais maleáveis com ele. Rosca precocemente conhecia o seu charme e sabia usá-lo para manipular as pessoas.

    Seu aniversário era em Janeiro, o que o fazia o segundo mais velho entre nós, depois de Pardal. Todavia, ele parecia ser o mais velho e agia como tal. Era o que menos sorria – e provavelmente o que menos tinha motivos para sorrir – e o que mais falava em sair dali e se tornar alguém na vida. Eu pensava que suas ambições eram muito grandes, mas eu estava errado, ele era maior que qualquer ambição que pudéssemos conceber e ele provou isso. José de Lima era seu nome, Zelima era como o chamávamos até aquele dia no futebol, quando nasceu Rosca.

    Depois de marcar um gol ao receber um passe quase mágico de Pardal, o goleiro do outro time, revoltado da vida, gritou para quem quisesse ouvir: Bonitinho desse jeito só pode queimar a Rosca! O jeito que ele falou faria até defunto rir. Foi histérico, Pardal não conseguiu mais jogar nesse dia, sempre que Rosca gritava passa a bola Pardal, ele começava a gargalhar e perdia a bola, aquele foi o dia de glória dos zagueiros.

    Mas Queima Rosca não era um apelido aceitável – Zelima também não era dos melhores – como poderíamos no meio da rua gritar Queima Rosca! e esperar que ele atendesse? E caso todos começassem a chamá-lo de Queima Rosca, será que também iriam pensar que nós queimávamos a Rosca? Meu sábio pai já dizia, diga-me com quem andas que eu direi quem és. Definitivamente, não dava pra chamar Zelima de Queima Rosca, mas aí, eis que Pardal veio com a solução, quando voltávamos pra casa depois do jogo e nos divertíamos com essas discussões de cunho existencial, ele disparou: Homi, tira o queima, mas deixe a Rosca do cara quieta. Rosca era muito melhor do que Zelima, não denegria a imagem dele nem a nossa e ainda era engraçado.

    E Rosca nem se importava, ele tinha aquele jeito nonchalant que só os que conhecem seu próprio potencial conseguem cultivar. Além de ser o mais distante e o que menos falava de nós, ele era o único que carregava raiva consigo. Uma raiva quase dormente, que queimava como brasa lenta, mas que não se extinguia. Odiava brigas e confrontos, sua raiva era uma chama fria, que não se alimentava de coisas banais. Os outros moleques percebiam isso e talvez por isso não o deixassem em paz, apesar de Pardal espantá-los na maioria das vezes. Desde cedo Rosca teve que lidar com o escárnio e a agressão dos meninos da linha, que era como chamávamos os garotos que moravam em frente à linha do trem, mas não vamos falar deles agora. O importante é saber que Pardal, querendo ajudar começou a ensinar-lhe capoeira, caso ele quisesse dar um basta naquilo e chamar um dos garotos para as vias de fato; mas Mestre Sabiá, que percebera a raiva fria de Rosca, foi incisivo: Ocê menino Pardal não vá mostrá golpe de capoeira praquele seu amigo, que capoeira a gente joga cuns pés só pra quem tá de fora, dentro da roda nós joga com os peito, e quem carrega coração ruim no peito, não serve pra jogar!

    Mas Mestre, Pardal retrucou Rosca é meu amigo e ele não tem coração ruim não, ele só é estranho.

    Pois então deixe ser estranho sem capoeira nos pé! Mestre Sabiá rebateu pro modi menino Pardal continuar aprendendo comigo!

    Aquele jeito ríspido não combinava com a personalidade de Mestre Sabiá, mas ele era muito seletivo em se tratando de quem ele ensinava, muitos pediam para aprender sua arte, mas ele ensinava a poucos, crianças ou adultos.

    O menino Pardal sabe o que é a capoeira? Ele questionou do jeito que fazia quando queria apenas uma resposta, inclinando levemente a cabeça, erguendo a sobrancelha esquerda e quase fechando o olho direito.

    Capoeira é mandinga de preto escravo sonhando em voltar pra mãe África Pardal respondeu lembrando-se do que estava escrito no muro de trás da casa de Mestre Sabiá, a frase que ele mandava todos lerem – e para os que não sabiam ler, ele então mandava repetir com ele – e quem achasse que capoeira era algo diferente daquilo, melhor encontrar outro mestre pra aprender a mandinga.

    E essa mandinga vem de onde menino Pardal? Nem essa pergunta nem a resposta estavam escritos em lugar nenhum, e aquilo foi um teste que ele resolveu fazer com Pardal para ver se ele estava certo em acreditar que um dia aquele menino galego da pele vermelha iria ser um grande angoleiro. Pardal, do alto da sabedoria dos seus onze anos respondeu tranquilamente:

    Vem de um coração livre. E refletindo assim na sua resposta, Pardal nunca mais tocou naquele assunto com Mestre Sabiá, e parou de ensinar a mandinga de capoeira para Rosca, pois ainda não acreditando que Rosca tivesse o coração ruim, ele sabia que ele não tinha o coração livre, coração cheio de raiva nunca pode ser livre.

    Só conheci dois adultos que não se encantavam com Rosca. Um era o Mestre Sabiá, o outro era Mãe Santa. Claro que Mãe Santa era muito mais discreta que Mestre Sabiá, e não falava o que pensava para ninguém, mas dos muitos meninos de nossa vizinhança, Rosca era um dos poucos que ela não chamava carinhosamente de meu filho, e ele por sua vez, não se importava em pedir-lhe a bênção, como a maioria da garotada fazia. Só vim me dar conta disso muitos anos depois, quando nossos caminhos já haviam sido traçados.

    Foi através de Rosca que anos depois eu iria conhecer a sensação do ódio queimando nas veias e deixando gosto de sangue na boca. Foi através dele que eu entendi como sonhos se quebram e como as coisas que pareciam ser tão certas num determinado momento podem dar tão errado, mas isso é parte de outra estória, pois àquela época tudo que eu sabia é que eu gostava muito de Rosca e que não queria ter a vida que ele tinha, especialmente – mas não somente – por causa de sua mãe, Dona Flor.

    II

    Dona Flor era – e foi por muito tempo – a mulher mais formosa que eu já havia visto. Uma morena vistosa, com vasta cabeleira negra caindo-lhe até a cintura, sua pele sempre brilhava com o bronze que emprestava do Sol aos Domingos na praia, sua boca era vermelha e carnuda, olhos negros e profundos, pernas firmes, andar confiante e malicioso daqueles que acham que podem ter o mundo sem esforço. Linda ela era, mas também sorria pouco, também carregava um pouco daquela raiva fria consigo. Dona Flor foi a primeira mulher que em minha vida vi com olhos de desejo. Mesmo sendo mãe de Rosca e de mais dois filhos – ambos moravam com o pai numa cidade vizinha – ao andar na rua ainda virava olhares de todos os homens ao redor, inclusive os casados.

    Fora casada uma vez, mas os filhos daquela relação fez questão que o pai tomasse conta, eles apenas eram um empecilho em sua vida. O pobre diabo era muito apaixonado por ela, mas mesmo as maiores testas possuem um espaço limitado para chifre, e o espaço dele foi bem utilizado por Dona Flor. Seu marido pegou-a na cama com o irmão mais novo dele, um rapagão de pouca idade e caráter, como o corno é sempre o último a saber, isso já era de conhecimento da cidade, e que não era só seu irmão que provava do pecado com ela, mas também outros homens, todos casados, inclusive o prefeito. Ela saiu de lá jurada de morte. Sem ter para onde ir, veio buscar guarida na casa de uma velha tia que morava em nossa vizinhança.

    Se em nada mais, pelo menos nisso Dona Flor mostrou um pouco de virtude, cuidou de sua velha tia, e quando devido à diabetes, ela teve as duas pernas amputadas, Dona Flor continuou cuidando dela, e provendo para o seu próprio sustento, já que sua aposentadoria mal pagava os remédios e o tratamento médico necessário. Elas moravam em cima da padaria, num apartamento pequeno e mal cuidado com móveis velhos, todos herdados da mãe do falecido.

    Havia um forte cheiro de mofo no lugar, e devido ao forno da padaria, localizado logo abaixo deles, o apartamento parecia um sauna não apenas no verão, mas durante o ano todo. No inverno as poucas panelas ficavam espalhadas pela casa devido às goteiras. Havia apenas um quarto com uma cama que era a da tia de Dona Flor que por sua vez dormia numa rede na sala. Mesmo assim Dona Flor sentia que tudo estava sob controle, aliás, nunca esteve tão feliz na vida. Se era pobre e sofria tendo que cuidar de sua velha tia e aguentar as más línguas que pelas suas costas diziam que era uma mulher da vida fácil, pelo menos à noite ela podia fazer o que queria, podia ir dançar na gafieira ou beber no bar, aos Domingos passava o dia na praia e namorava quem queria na hora que queria, não precisava cuidar de homem nem de criança e era dona de seu próprio nariz, até que veio Rosca, é claro. Ele foi um acidente de percurso, e Dona Flor se tivesse de dizer quem era o pai dele sob pena de ir à forca, estaria condenada.

    Até os seis anos a vida de Rosca era apenas ruim. Não tinha carinho nem atenção da mãe e sua velha tia, ainda que quisesse dar-lhe atenção em seus cada vez mais raros momentos de lucidez, o repugnava devido à sua prostração física e à feiura sofrida da idade. Ele vivia encurralado entre alguém que lhe negava o amor que ele buscava e um outrem que lhe oferecia o amor que ele não queria. Mas se havia a pobreza ainda não havia a fome. Não porque sobrasse o dinheiro de sua velha tia, mas porque ela servia como uma espécie de controle sobre Dona Flor, ela era mais importante para Dona Flor que o próprio filho, sabe-se lá por que. A verdade é que Dona Flor trabalhava como costureira e tentava manter a casa organizada mais pela tia que pelo filho. Não que a amasse mais, acho que o tipo de amor que um filho demanda – o amor incondicional que a tudo se sobrepõe e que só as mães entendem – não conseguia brotar no coração árido de Dona Flor. O amor para cuidar da tia, era mais um amor resignado, morno e insosso. Talvez não fosse nem amor, e por isso, apesar dela tratar a tia muito bem, tenho quase certeza que tivesse ela condições financeiras a abandonaria num piscar de olhos.

    E então uma noite a velha tia se foi enquanto Rosca dormia. Dona Flor a deixara viva na Sexta à noite quando saiu para a gafieira. Sábado, quase ao meio-dia chegou em casa pensando em ter que trocar a roupa de cama da velha tia e do fedor que a casa não estaria, pois o Sol de verão queimava alto no céu. Ao entrar, encontrou Rosca sentado em sua rede comendo um pedaço de pão seco com água, já que ela não havia feito compras nem deixado dinheiro.

    Quando chegava de uma noitada assim e encontrava seu filho sentado na sua rede olhando para ela com um olhar silencioso e acusador, ela sempre amaldiçoava o índio que lhe dissera que o chá que ela ia tomar daria cabo do menino e que ele não se seguraria na barriga.

    Sua tia tá dormindo Zelima? Ela perguntou ansiosa. Ultimamente além de inválida sua tia também estava esclerosada, e talvez nem notasse que Dona Flor passara tanto tempo fora, pelo menos assim ela esperava. Rosca terminou de mastigar o pedaço de pão e sem olhar para a mãe disse sem nenhum vacilo na voz, entre distraído e sombrio, como se estivesse prevendo que a sua vida a partir dali deixaria de ser um purgatório e se transformaria num inferno:

    Ela não vai acordar mais não.

    A morte da velha tia garantiu um teto sobre sua cabeça, mas não comida na mesa. Quando havia costuras para fazer, Dona Flor conseguia manter a casa, mas isso não era sempre. Teve uma semana que Rosca passou comendo apenas a merenda da escola, na hora do recreio enquanto comíamos tudo, ele guardava uma porção para a janta, na sua casa havia apenas água e bolacha seca que a mãe comprara. Um dia Pardal contou para a mãe que Rosca estava apenas comendo uma refeição o dia todo, a partir de então Dona Marta tentava sempre conseguir algo para dar para Rosca, pois ele apesar de faminto, nem sempre aceitava ir jantar na casa de Pardal ou na minha onde ele também era bem vindo – esse orgulho que Rosca tinha era algo impossível de se entender. Pelo menos nos Domingos ele aceitava ir almoçar na casa de Pardal – já que a mãe saía no Domingo cedinho e nunca chegava antes do cair da noite – e assim a fome que Rosca eventualmente sofreu maltratou mais sua alma que seu corpo.

    E havia também, como eu dissera antes, o problema com os meninos da linha. Rosca por ser tão diferente atraía a inveja de muitos garotos que não perdiam uma chance de zombar dele. Como sua mãe era costureira, ele nunca andava com as roupas rasgadas, ela sempre dava um jeito de deixá-lo bem vestido, e assim mantinham certa aparência, apenas nós, os amigos, sabíamos que Rosca às vezes passava fome. Ele acreditava que isso era mais importante do que se alimentar bem.

    Mas a crueldade de alguns garotos não conhecia limites. O apelido que os meninos da linha mais gostavam de chamá-lo era Júnior. Lembro-me de uma tarde chuvosa de Domingo em que voltávamos de um futebol decepcionante já que Pardal não fora jogar porque estava na praia com os outros angoleiros, tínhamos uns nove ou dez anos eu creio. Quando descíamos a ladeira para chegar à minha casa – pois eu havia convencido Rosca a jantar lá – cruzamos com uma turma de uns oito meninos da linha que vinham na direção oposta, tentamos passar de cabeça baixa e sem chamar atenção, mas não tinha jeito, um deles olhou e disse:

    E aí Júnior, como vai sua mãe? Os garotos riram e outro emendou: Diz pra ela que eu a encontro na gafieira Júnior. Sem Pardal lá o melhor era ficar calado e foi o que fizemos, passamos de cabeça baixa aguentando as piadas deles, mas gratos por não levarmos um sarrafo também.

    Ao chegarmos em casa, durante a janta minha mãe – que parecia às vezes ter uma bola de cristal – perguntou como havia sido nosso dia. Rosca respondeu algo dizendo que foi bom, apesar do dia chuvoso, mas não sei o que veio na minha cabeça que eu disse: Foi bom, mas quando a gente tava voltando, cruzamos com aqueles meninos da linha e eles ficaram chamando a gente de nomes.

    Minha mãe, apreensiva, olhou para o meu pai, ele baixou o garfo, olhou-nos fixamente e sentenciou: Fiquem longe desses moleques, nenhum deles vale a comida que come, se falarem mal apenas ignorem!

    Foi o que a gente fez pai Emendei. Mas não entendi porque eles ficaram chamando Rosca de Júnior. Minha mãe quase engasgou quando ouviu aquilo, ela olhou apreensiva para o meu pai e para minhas irmãs que estavam na mesa e agora pareciam interessadas em saber por que chamavam Rosca de Júnior.

    Meu pai simplesmente me cortou na hora e me deu um sábio carão: Quem quer falar mal não precisa de motivo, deixe de ficar pensando besteira e evite cruzar com aqueles cabras safados e vamos mudar o rumo dessa prosa que não tá servindo pra nada, só pra comida esfriar! Eu ia retrucar quando vi o rosto de Rosca, ele me olhava tão intensamente e com tanta raiva que senti um nó no meu estômago, percebi na hora que o fato de todos os garotos o xingarem pesava infinitamente menos do que eu sem nenhuma má intenção ter perguntado a meus pais o significado daquele apelido que eu ainda não entendia. Rosca nunca reclamou comigo, mas não creio que ele tenha esquecido aquele vexame que eu causei. O fato é que eu era inocente demais para saber que, como diz a voz do povo, se há uma coisa que é difícil de encontrar no mundo é filho de puta chamado Júnior.

    Então para completar o triste quadro da infância de Rosca, Chico Chaga caiu de paraquedas na vida dele. A estória de Chico Chaga é triste, pois ele talvez não fosse uma pessoa essencialmente má, apenas fraca e também doente. Porém, já desde os primórdios dos tempos, como o velho livro mesmo nos diz, o pecado surgiu da fraqueza, a maldade ficou apenas de espreita. Seja lá como for, não tem como não sentir um pouco de pena do Chico Chaga, conhecido por alguns como Chico boi manso, graças à Dona Flor.

    Chico Chaga era um alcoólatra que aos 25 anos já era um trapo humano e aos 27 tentou suicídio após a morte da mãe. Sua família o internou num hospício por quase dez anos, quando ele finalmente foi liberado já não bebia mais nem falava em suicídio, mas ainda era um trapo.

    Nervoso e doente, Chico não conseguia mais trabalhar consistentemente, falava sozinho, ficava constantemente ansioso e tinha que tomar fortes remédios para poder se integrar à sociedade. Seu irmão conseguiu aposentá-lo, pois sabia que ele não poderia mais trabalhar para sobreviver. Ele de vez em quando ajudava o irmão na oficina, mas sempre que estava perto dele, amargava o fato de não ser homem para ter sua própria família e imaginava se um dia teria esse privilégio. Melhor seria se tivesse ficado sozinho ou trancado no hospício.

    Dona Flor sabia quem era Chico Chaga, ela percebia os olhares suplicantes que o pobre lançava para ela, na esperança de uma migalha de retribuição. Depois de algum tempo morando sozinha com Rosca e passando muita necessidade, Dona Flor decidiu deixar Chico Chaga entrar na vida dela. Com certeza – depois da cachaça – Dona Flor foi o pior vício que Chico Chaga poderia ter arrumado. Não que ela o tratasse de todo mal. Assim como sua tia, Chaga era um doente que precisava de alguma atenção e que em troca lhe dava estabilidade. Se essa estabilidade requeria às vezes deixar-se tocar por ele ou eventualmente deitar na cama, abrir as pernas caridosamente e esperar ele fazer algo – o que raramente acontecia – Dona Flor estava mais do que disposta a pagar esse preço.

    Mas então chegava os fins de semana, e Dona Flor nas Sexta à noite se mandava para os bares e para a gafieira mas Chico Chaga nunca ia, não porque quisesse evitar a bebida, mas porque ficava ansioso quando estava num ambiente com muitas pessoas em volta. E Rosca pagava o preço amargo do ciúme e das frustrações de Chaga. Do momento que a mãe saía até ela chegar, Rosca era um filho da puta. Chaga repetia aquilo tantas vezes que ainda hoje não entendo como Rosca não desapareceu de casa para nunca mais voltar. Chaga dizia que Rosca era um morto de fome e que se não fosse por sua causa, ele e a mãe morariam embaixo da ponte, dizia também que Rosca não tinha pai e que ninguém sabia quem era o pai dele, algumas vezes também batia em Rosca, geralmente quando ele o respondia. Uma vez Rosca chegou com o olho roxo na escola devido a uma garrafa d’água que Chaga jogou nele depois que Rosca disse que pior que ser filho de puta era ser corno de uma puta. Outra vez Rosca caiu da escada e quebrou o braço, isso foi num fim de semana e Rosca nunca quis falar a respeito, o que me faz pensar se não foi o Chagas que o empurrou.

    O que mais doía nele, todavia, não eram as obscenidades que Chaga dizia ou as surras eventuais, algumas terrivelmente severas, mas duas outras coisas que em sua visão eram infinitamente piores. Rosca odiava Chagas porque apesar de tudo, era do bolso dele que Rosca e a mãe comiam e essa dependência era mais humilhante do que quaisquer palavras que Chaga pudesse articular. Sendo assim Rosca nunca reclamou de Chaga com a mãe, até onde eu posso dizer, ela nunca ouviu as coisas que Chaga dizia para ele, ela nunca desconfiou que o olho roxo, o braço quebrado, os arranhões nas costas, e as queimaduras que um dia apareceram em sua barriga fossem obras de Chaga, ela apenas pensava que eram os moleques da linha que faziam isso, e ela apenas dizia para Rosca reconhecer o lugar dele e não se misturar com aquele tipo de gente. E Rosca, mudo de ódio, apenas consentia.

    Mas o pior era o arrependimento do pobre diabo depois que Dona Flor chegava e com um cafuné na cabeça o domava e o botava pra dormir. No outro dia chamava Rosca de meu filho, perguntava se ele queria brinquedo ou uma roupa nova e dizia que em breve ele teria um irmãozinho para brincar com ele – coisa que, aliás, causava pesadelos em Rosca. Aquela fraqueza de Chaga, aquela incapacidade de sustentar crueldade por mais do que alguns dias, aquela dependência para com Dona Flor, que o transformava num mero objeto enojavam mais Rosca do que qualquer outra coisa que Chaga fizesse. Tenho absoluta certeza que se um dia Chaga desse uma surra em Dona Flor e a proibisse de sair de casa, Rosca o odiaria infinitamente menos do que devido à sua subserviência. O ódio de Rosca por Chaga vinha do reconhecimento de que mesmo Chaga sendo um fraco e covarde, ainda assim ele possuía influência em sua vida, aquilo o apequenava de tal modo que notávamos que ele ficava fisicamente doente – pálido e até mesmo enjoado – só de ver Chaga na sua frente.

    E assim Rosca seguiu e cresceu, com ódio, vergonha e ambição desmedida no coração. Seu ódio nunca arrefeceu, sua vergonha foi coberta pelo manto do passado, mas de vez em quando ele voltava até ela para espaná-la e mantê-la viva, e sua ambição selou nosso destino, ainda que só fôssemos nos dar conta disso quando já era muito tarde.

    3. Fubá

    Fubá era o gaiato, a nossa eterna fonte de sorrisos. Ele era adepto da filosofia de que mais vale perder o amigo do que perder a piada, mas quanto mais piada fazia mais amigos nos tornávamos e mais admirávamos aquela língua ferina, aquela ironia geralmente crua, mas às vezes refinada por uma inteligência inegável. Fossem nossos caminhos traçados diferentemente, não tenho nenhum problema em ver Fubá se tornando um erudito, um homem de letras capaz de dar vida própria às palavras.

    Sua alcunha foi presente de Pardal. Uma tarde depois do futebol Fubá recontou todos os lances do jogo com tanta minúcia, parando apenas para falar mal ou rir de alguém que Pardal não aguentou: Homi, alguém tem um punhado de fubá pra botar na boca desse infeliz pra ver se ele se cala?

    Rosca, lacônico por excelência, respondeu fingindo indiferença, mas querendo rir: Só se for pra espalhar fubá pela cidade toda.

    E assim nasceu o apelido, à primeira vista sem graça. Mas levando-se em conta que além de ser o mais gaiato, Fubá era o menor, o mais novo e também o mais feio, aquele apelido era estranhamente adequado. Não sei a quem aquele pobre puxou tão feio, ele tinha um rosto comprido, cuja metade do espaço útil – segundo as palavras de Rosca – era ocupada por um nariz de batata e tinha também uma cabeça chata cujo cabelo pixaim ele teimava em deixar grande para sua cabeça parecer mais redonda, o que apenas o tornava mais esquisito. Para piorar sua aparência, Fubá sofreu um terrível acesso de sarampo com apenas dois anos de idade, e ficou com o corpo cheio de manchas.

    De qualquer forma, posso garantir que ele era tão feio que tinha até orgulho disso, mas claro que não deixava ninguém brincar com a cara dele por causa de sua feiura. Se alguém chamasse Fubá de feio iria escutar o que não pagou para ouvir. Uma menina da escola uma vez disse que ele era mais feio do que precisão, Fubá rebateu que ela devia conhecer precisão bem de perto para estar tão certa. Outra menina uma vez o chamou de gaiato feioso, ele rebateu a xingando de mentecapta – coisa que nem ela, nem nós, sabíamos o que significava – quando ela perguntou o que aquilo queria dizer, ele simplesmente respondeu: Eu não disse? E saiu dando de ombros. Mas o pior era com os meninos da linha, um dia um deles o chamou de todo-feio enquanto ele subia a ladeira em direção à minha casa, Fubá respondeu sem pestanejar: Mais feio é o cu da tua mãe e tem quem coma! Só quando chegou à frente da casa de Pardal que o moleque enraivecido parou de persegui-lo, jurando pegá-lo mais tarde, promessa que por pouco não foi cumprida, mas disso nós falamos mais adiante.

    Graças a Pardal, Fubá sobrevivia à acidez de seu sarcasmo quase sem nenhum arranhão, ele tirava os meninos da linha de letra. Quem tinha problemas mesmo com eles era Rosca. Em todo caso, depois daquela resposta de Fubá, ninguém mais quis arriscar chamá-lo de todo-feio.

    Talvez um psicólogo moderno dissesse que todo o sarcasmo de Fubá era um mecanismo de defesa, criado para protegê-lo do ambiente hostil ou uma expressão de suas fraquezas que ele tentava esconder para que pudesse ser recebido no grupo. Tudo isso é bobagem. Fubá falava pelos cotovelos porque tinha o que falar e tinha sempre alguém disposto a presenteá-lo com uma boa gargalhada. Ele era o menor e mais feio, mas certamente não era o mais fraco ou o menos amado. Ele tinha a coragem própria dos homens de bem, de não apenas rir dos infortúnios, mas de ignorá-los e seguir acreditando em coisas melhores.

    Luís Adriano Xavier, o nosso Fubá, tinha uma vida quase tão dura quanto à de Rosca, mas de uma privação ele não sofria, apesar de ser órfão e da trágica estória de seu nascimento e sua infância, Fubá tinha todo o amor que alguém precisava no mundo, pois Mãe Santa era sua avó materna.

    II

    Mãe Santa foi casada por muitos anos com Seu Alfredo. Casaram-se muito cedo, ela tinha apenas quatorze anos, mas naquela época isso era até natural. Seu Alfredo assim como o pai, era sapateiro e não tinha medo de trabalhar duro para sustentar a família, e isso ele teve que fazer, afinal Mãe Santa lhe deu 10 filhas. Quando o povo perguntava Eita seu Alfredo, quando vem o menino? Ele respondia rindo quando Deus quiser. Mas Ele não quis, e seu Alfredo acabou sendo pai das dez Marias.

    Ano ia, ano vinha e sempre chegava uma Maria diferente: Maria Fracinete, Maria Francisca, Maria do Socorro, Maria Madalena, Maria de Fátima, Maria José, Maria de Jesus, Maria Aparecida, Maria das Graças e Maria Imaculada. Cada uma em tempo seguiu seu caminho e se eu fosse contar a estória de todas elas, eu teria que escrever uma enciclopédia, mas o que importa agora é falar de uma Maria apenas, a caçula Maria Imaculada.

    Maria Imaculada seguiu o caminho contrário das outras irmãs. Talvez por ter sido a filha caçula e assim ter tido excesso de zelo e atenção das nove irmãs ou talvez porque seu pai morreu quando ela ainda era menina moça, deixando-lhe com um sentimento de saudade amarga no peito. Mas provavelmente apenas porque esse era o jeito dela.

    Aos 15 anos saiu de casa para morar com um homem mais velho, conhecido em nossa vizinhança como Gonzaga, o carroceiro. Ele ganhava a vida transportando as bancas de madeira do depósito central atrás do armazém até as diversas feiras que ocorriam em locais diferentes cada dia da semana em nossa cidade. Ele não era apenas um homem rude, era um ser vil, desonesto e cruel. Não me espanta que tenha atraído tanto o interesse de Maria Imaculada, pois que ele era o oposto do pai dela, assim como ela era na verdade o oposto da própria mãe.

    Quando a filha engravidou foi Mãe Santa quem trouxe o neto ao mundo e deu-lhe o nome Luís Adriano. Gonzaga não queria saber do filho, e era melhor que fosse assim. Quando tinha dois anos, depois de quase morrer de sarampo, o menino foi morar com Mãe Santa na sua casinha pequena no cortiço, já que a casa maior da vila ela havia vendido para dividir o dinheiro com as filhas. Vendeu também a loja do marido para que pudesse dar o dinheiro para ajudar as filhas. Mãe Santa era sábia, mas não tinha ideia do que fazer com dinheiro e nem queria saber, tinha um teto sobre a cabeça, roupa no corpo, comida na mesa e saúde que Deus lhe emprestara, o resto era apenas fazer o bem e seguir seu caminho.

    Mãe Santa era pobre, mas nunca lhe faltou nada nem às filhas quando moravam com ela e após a deixarem para seguir suas vidas e nem ao Fubá ou aos mais de 30 netos que ela tinha, que, aliás, ela conseguia dizer o nome, a data de nascimento e até o dia da semana em que nasceram, afinal fora ela quem trouxe todos eles ao mundo, guiada pela mão de Deus.

    Se não aceitava dinheiro pela suas rezas, nada impedia Mãe Santa de aceitar depois um presente. Pois que o orgulho, ela mesma nos lembrava, era o pior dos pecados. E presentes não faltavam. Um dia era uma galinha, outro dia uma cesta de ovos, no período Junino, sempre alguém tinha um balaio de milho sobrando pra dar à Mãe Santa, um pedaço de tecido ou uma saca de farinha. Os que podiam davam; os que nada tinham para oferecer davam-lhe respeito e gratidão o que era mais do que ela jamais cobraria.

    E assim ela seguia a vida. Havia sempre um parto para assistir, um quebranto para curar e às vezes apenas – mas não menos importante – uma palavra de afeto e de fé para plantar nas almas cansadas. E isso ela sempre tinha, ela era umas das pessoas mais ricas que conheci.

    A tragédia se deu quando Fubá tinha apenas quatro anos, era verão, um pouco antes do carnaval. Gonzaga passara o dia no Sol escaldante de Fevereiro carregando as bancas para a feira da Quinta, que ficava próximo à praia. Quando terminou ele não pensou duas vezes, pegou sua carroça e foi até a vila dos pescadores, às margens do Rio que cortava a cidade, beber e jogar baralho. Nesse dia ele perdeu mais do que geralmente perdia e bebeu mais também. Como na Sexta Feira ele não trabalhava, geralmente Gonzaga não chegava em casa antes da meia noite, às vezes mais tarde, isso era algo que a mulher reclamara logo quando veio morar com ele, mas nada que umas boas tapas não a fizeram mudar de ideia.

    Ele entrou em sua casa em silêncio, como sempre fazia sem acender a luz ou sem chamar pela mulher. E percebeu de imediato algo estranho... Sussurros e risos abafados vindo do seu quarto – um cubículo espremido entre o banheiro e a cozinha, que mal cabia sua cama.

    Gonzaga chutou a porta do quarto com força, a madeira fina partiu-se em dois e ele pode ver sua esposa seminua na cama, ela e outro homem, um dos donos de barraca da feira, que pagavam uma mixaria pra Gonzaga para carregar suas malditas bancas, e agora estava na sua casa completamente nu e de pau duro prestes a foder com sua mulher de todas as formas possíveis e depois ir embora rindo dele.

    Ele foi até o infeliz que estava paralisado de medo e o agarrou pelo pescoço, o coitado pedia calma, e ainda com aquele volume entre as pernas implorava dizendo que podia explicar, mas Gonzaga só queria apertar-lhe o pescoço, só queria sentir a vida abandonando aquele miserável, lenta e dolorosamente. E Maria Imaculada não se mexia, apenas assistia a tudo e esperava por sua vez.

    Quando terminou com o pobre diabo que achara valer a pena arriscar a vida para possuir uma mulher que não tinha nada a oferecer a não ser o valor vazio de suas carnes, Gonzaga virou-se para a esposa e com ódio espumante disse: Te prepara mulher, que hoje eu vou te mandar para o inferno.

    E o que antes era medo tornou-se ódio e em seus últimos segundos, Maria Imaculada conseguiu cuspir as palavras que sempre quisera dizer e nunca pôde: No inferno eu já tô Gonzaga, mas onde quer que você me mande, vou esperar por você lá, porque tua hora vai chegar seu infeliz! Então se ajoelhando na cama ela estufou os peitos nus e com lágrimas pesadas de ódio a cair pela face, Maria Imaculada cometeu o último erro da vida dela: Você é tão corno que não sabe que o Luís Adriano nem é teu filho.

    Pois vou mandar ele pro inferno pra se encontrar com você lá mulher. E Gonzaga tirou a navalha do bolso e fez Maria Imaculada sangrar até a morte, que apesar de rápida, ainda deve ter-lhe dado tempo de se arrepender amargamente de ter contado a Gonzaga que o Fubá não era seu filho e ela morreu – eu acredito – com essa terrível culpa para carregar para onde quer que de lá ela seguisse.

    III

    Naquela noite Mãe Santa não estava em casa, como criança não tinha hora para nascer, também ela não tinha hora para dormir, só para acordar, sempre antes do Sol, como se tivesse que dar-lhe a benção antes que ele pudesse brilhar no céu. Luís Adriano estava com ela, geralmente ela o levava a casa de uma das filhas, ou pedia a um vizinho para dormir em casa com ele, já que ainda era muito novo para dormir sozinho em casa. Mas naquela noite Mãe Santa sentiu que para onde fosse Luís Adriano deveria ir com ela, e talvez isso salvou sua vida. Gonzaga foi direto a casa dela após matar Maria Imaculada, e inebriado de ódio por não ter encontrado ninguém, tocou fogo na casa de Mãe Santa e foi-se embora, para ser preso depois de alguns dias.

    Ele contou a sua estória para o delegado, e sabendo que não conseguiria sair da prisão para matar Fubá, enforcou-se na delegacia mesmo, não dando tempo a lei dos homens para julgá-lo.

    IV

    Pardal era o alvo favorito das brincadeiras de Fubá. E pardal adorava aquilo.

    Pardal pega no meu berimbau! Ele sempre gritava quando Pardal passava na rua vestido de calça e camisa branca indo para a roda de capoeira.

    Pardal tá em todo canto, é pior do que catita! Ele dizia casualmente quando encontrávamos Pardal em algum lugar em que pensávamos que ele não estaria.

    Pardal atrás de você eu sou um burro! Ele zoava quando Pardal mostrava-lhe algum movimento de capoeira que ele não conseguia copiar.

    E a lista ia longe. Mas o mais engraçado era quando estudávamos juntos. No começo nós tentávamos estudar junto com Pardal para ajudá-lo na escola, mas não adiantava. No meio de uma conta, quando olhávamos para Pardal, ele estava mirando algum ponto invisível, bem além de nosso alcance, com um semblante leve e sorridente de quem não carrega preocupações no peito, e aí Fubá não perdoava.

    Porra Pardal, dormindo assim você tá mais pra morcego do que pra passarinho! Depois de um tempo desistimos de tentar estudar com Pardal e decidimos que o melhor era passar cola para ele. E nisso Fubá virou mestre, quando a prova era de marcar ele e Pardal desenvolveram um sistema de comunicação através de tosses, espirros e fungados que irritavam alguns professores, mas nunca levantava suspeita, já que eu e Rosca tossíamos e espirrávamos também, confundindo assim os mestres. Isso era o mais longe que Rosca ia para ajudar. Rosca jamais passou cola para ninguém nem muito menos pediu. Entre nós não era o mais inteligente nem mesmo o mais estudioso, mas sua garra era inegável e suas notas às vezes eram melhores mesmo que as minhas ou de Fubá.

    As provas discursivas ou de matemática eram mais difíceis, mas não impossíveis para nós. Fubá sabia imitar com perfeição a letra de Pardal – na verdade um garrancho quase que ininteligível – e ele sempre fazia primeiro a prova para Pardal e então fazíamos a mágica de trocar as provas. Nenhum professor nunca desconfiou, pois Pardal apesar de não aprender muito na Escola era um bom aluno, não conversava e respeitava o mestre tanto ou mais que nós, ele era, para todos os fins, um aluno ideal, disso nós cuidávamos.

    Não era preciso ser gênio para perceber que Fubá era quem Pardal mais gostava, a única pessoa nesse mundo que não precisava compartilhar do silêncio de Pardal, pois ele ao lado de Fubá não parava um minuto de falar. Eles eram mais do que irmãos de mães diferentes, eram de fato almas gêmeas.

    Quem os via conversando não duvidaria que eles cresceriam juntos e que nada os separaria. Eles certamente pensavam assim também. Ainda hoje eu me pego imaginando se toda a tragédia que os separou não foi apenas um castigo do destino que se sentiu subestimado perante tamanha amizade.

    4. Cabeça

    Meu nome é Mateus, e desde que eu me entendo por

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