A Rota Socialista: Cuba e Venezuela
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A Rota Socialista - Waller Chaves
Apêndices.
PRIMEIRA PARTE – CUBA
1. Conexão panamenha.
Saímos de Brasília às duas da manhã e voamos por seis horas até a capital do Panamá.
A escala é curta, não mais de noventa minutos em solo panamenho. O aeroporto é amplo e moderno. Lá fora, um céu carregado de nuvens – mas não temos condições de avaliar se faz frio ou o típico e úmido calor da zona caribenha, por isto que estamos lacrados no ar condicionado do salão de embarque.
Ao que parece, seremos, a Leitora e o escriba, os únicos brasileiros a bordo do vôo a Havana. Consigo identificar alguns argentinos, um ou outro espanhol, uma família russa.
Voamos por duas horas e trinta e cinco minutos, ao cabo das quais o comandante anuncia que já estamos em procedimento de descida rumo ao aeroporto José Marti, na ciudad de La Habana, capital da República de Cuba.
2. Chegada a Havana.
Diversamente do que vimos na Cidade do Panamá, o aeroporto da capital cubana é bastante acanhado. No setor de imigração, os agentes oficiais agem de modo policialesco, instruindo os visitantes para que formem filas e aguardem sua vez de ser atendidos.
No guichê, somos brevemente entrevistados por uma moça de pele morena que, se não é tão ríspida quanto a oficial que nos dirigiu até aqui, tampouco pode ser tida como muito amistosa.
Lembro-me das imensas dificuldades que vivenciamos, há dois anos, ao sairmos de Caracas, capital da Venezuela, e dos comentários de um amigo, que me disse ser Cuba um Estado militarizado.
Felizmente, a entrevista é curta, e transcorre livre de problemas. Pegamos de volta o passaporte, sem carimbo de entrada – que foi aposto em tinta cor-de-rosa somente no visto, um pedaço de papel avulso – cruzamos uma porta de madeira, e buscamos com os olhos algum representante da agência Cubatur.
Vou até o homem de camisa amarela, calvo e já grisalho, em suas mãos uma prancheta de madeira e alguns papéis que ele lê com esforço, por trás dos óculos de grau. Identifico-me, pergunto-lhe o nome, Tobias, ele diz, e me confirma que será o responsável por nos alocar na condução até Varadero, nosso primeiro pouso na terra dos irmãos Castro.
Não me recordo por que cargas d’água optei pelo transfer entre o aeroporto de Havana e o hotel em Varadero, dado que não tenho dificuldades com taxistas locais, sobretudo em países latino-americanos. Meu portunhol costuma ser satisfatório e prefiro, sinceramente, a autonomia de chegar ao destino e não me prender às circunstâncias alheias.
Para nosso azar, todavia, acabo de saber que duas pessoas que vieram no mesmo vôo tiveram problemas com sua bagagem, e teremos de esperar uns minutos. Se serão dez, trinta, ou sessenta, ninguém saberia dizer, o que me leva a aproveitar o momento para trocar algum dinheiro por moeda local.
Pergunto ao Sr. Tobias se a taxa no aeroporto seria mais vantajosa que em Varadero ou Havana. Es todo lo mismo, ele diz, explicando-me que, em Cuba, o câmbio é estatal, e que, por isso, não haveria diferença de um lugar para outro. No hay lucro, ele complementa, não sem uma dose de entusiasmo ou, quando pouco, uma certa satisfação, como que a dizer que, em seu país, ninguém se beneficia da exploração capitalista.
Vou ao guichê, troco meus euros por pesos cubanos, os chamados CUC’s
, e fico feliz por ter seguido as orientações da agente de turismo em Goiânia, que me recomendou trazer a moeda européia. O problema, aprenderemos mais tarde, é que o dólar é oficialmente desvalorizado
em Cuba – vale 87 centavos de CUC, uma desvalorização de 13 centavos por dólar, o que funciona como uma espécie de represália
aos norte-americanos, por conta do bloqueio imposto pelo governo dos EUA.
Com a carteira abastecida de moeda local, volto ao senhor Tobias, que me aponta a van Hyundai que nos levará a Varadero. Lá dentro, já se aboletaram os argentinos, cuja bagagem há pouco foi localizada, e que são bem mais familiarizados com o local: para um deles, esta já é a sétima visita à Ilha!
3. A caminho de Varadero.
Na saída do aeroporto, chama-me a atenção a qualidade do asfalto. Confesso que, na minha tíbia imaginação de cronista, toda a infra-estrutura de Cuba seria bem mais precária. Equivoquei-me. Diante do parabrisa da van, temos uma confortável auto-pista . De velho mesmo, temos a própria van, mas nada que se compare aos carros antigos que já se pronunciam, e que são um dos grandes atrativos da viagem.
Seguimos por dezenas de quilômetros antes que a pista dupla se finde, lá fora o céu é claro, ao passo que, aqui dentro, o ar-condicionado da van, de tão barulhento, só não é mais irritante que a lentidão com que o motorista nos conduz pela estrada. Nossa velocidade média oscila em torno de setenta por hora, o que explica a previsão de que o percurso de cento e cinquenta quilômetros será feito em duas horas e meia.
Com pouco mais de hora e meia de viagem, os argentinos sugerem uma pausa - desejam pitar um cigarro – e paramos, então, na cidade de Matanzas.
Ficamos por lá uns quinze minutos, há duas lanchonetes geminadas, mas em nenhuma delas a comida nos apetece. Limito-me, assim, a beber um suco de tamarindo, ao preço de oitenta centavos de CUC – o tal peso "convertible. Entrego à atendente uma nota de um CUC, ao que ela me passa duas notas muito surradas de 10, não são de CUC’s, mas da outra moeda usada no país – também chamada peso, porém
non convertible".
Obviamente, isto me confunde, e pergunto a uma senhora cubana, ao meu lado no balcão da lanchonete, quantos tipos de moeda circulam no país. Três, ela diz, somando aos pesos - convertibles e não convertibles – o próprio dólar americano. A senhora é pobre e mal-ajambrada, e é difícil acreditar muito no que diz – tanto que, até o fim da viagem, jamais tornei a me deparar com os tais pesos non convertibles, muito menos com o dólar americano, como moeda de livre circulação.
Gasto alguns segundos tentando entender o fenômeno econômico em que me vejo de súbito envolvido, mas a atendente perde a paciência, arranca de minhas mãos as notas de pesos non convertibles, e me devolve o troco em moedas de CUC’s: duas moedas de dez centavos, vinte centavos de troco para o suco que custou oitenta, e que paguei com uma nota de dez.
Muy bien, muchas gracias, digo à atendente antes de retornar à van, agora empesteada pela fedentina dos cigarros dos argentinos e do próprio motorista. Seguimos caminho, margeando o oceano, na área urbana da cidade de Matanzas.
Estou muito cansado, Leitora, já são quase 24 horas desde que saímos de casa em Goiânia, e não me deterei em maiores detalhes da viagem até Varadero.
Digo apenas que, em todo o caminho, vi pouquíssimas indústrias, uma única usina de açúcar, e alguns poços de exploração de petróleo. O que mais vi, e que bastante me impactou, foram as faixas e letreiros pintados com mensagens sobre a Revolução de 1959: "Aperfeiçoar o socialismo é nosso destino,
Ninguém jamais nos porá de joelhos" e expressões similares colorem, com as cores da bandeira cubana, branco, azul e vermelho, os muros da cidade de Matanza. Ao lado de muitas delas, a célebre foto de Ernesto Guevara, o Che.
4. Varadero.
Que fique bem claro, Leitora: assim como Orlando não representa os Estados Unidos, e Caldas Novas não representa Goiás, Varadero não representa Cuba.
Com sua incontornável lentidão, o motorista da van larga os argentinos no Hotel Tortugas – termo que, ironicamente, significa tartarugas
– para então nos levar ao Hotel Meliá Las Americas.
Quer me parecer que o Leitor mais politizado, cuja dedicação a este relato se prende à tentativa de compreender um pouco sobre o socialismo caribenho, não quererá saber que o hotel em que estamos hospedados é literalmente paradisíaco
, ou que areia da praia é fina e branquinha.
Tampouco se importará com o fato de o mar ser de um azul cristalino e deslumbrante.
Por certo, não lhe interessa saber que o sistema all-inclusive desta rede hoteleira espanhola nos deixa bastante à vontade para consumir diversas iguarias da comida criolla. Quanto às bebidas, nem se quisesse, eu poderia lhe contar sobre as margaritas, mojitos e toda sorte de drinks típicos do Caribe, uma vez que a única coisa que bebo são as cervejas.
E por falar nelas, é fácil ter contato com duas de fabricação nacional: a Bucanero, mais forte, e a Cristal, mais suave. Ambas são produzidas pela mesma fábrica, a CBSA – Cerveceria Bucanero S.A., certamente um empreendimento estatal, assim como a indústria de água e refrigerantes, Ciego Montero. Há uma terceira cerveja nacional, a Mayabe, da mesma fábrica, mas razoavelmente mais difícil de ser encontrada.
rasteiras ou seu par de havaianas.
É que a areia, além de branca e fininha, é quente por demais, e você certamente não quererá queimar a sola dos pés. Acabamos de chegar, e ainda há muito a ser visto!
5. Novamente o câmbio.
Ao terminar o check in, olho para um painel à direita, e vejo que a taxa paga pelo hotel é um pouco mais baixa que a do aeroporto – algo em torno de três centavos a menos. Cai por terra, portanto, o discurso do Sr. Tobias, empregado da Cubatur, que há pouco nos recebeu em Havana. Pode não haver explotación capitalista, mas também não há um câmbio uniforme
. Talvez o episódio diga mais sobre o Sr. Tobias que sobre o país.
6. El acento.
Ainda no primeiro dia de nossa estada, pouco depois da chegada, vou falar com o bellboy, para que arrume a porta de acesso à varanda do quarto – aquela, Leitora, que não está trancando por dentro.
Brasileiro?, indaga o bellboy, ao que eu respondo com outra pergunta, Como sabes?
El acento!, ele diz, de modo alegre e descontraído, querendo dizer o sotaque
.
No segundo dia, durante o café da manhã, vou à área da chapa, solicito ao cozinheiro que me prepare uma omelete. Solo un huevo, pimentones, cebollas e tomate. Ah, un poco de queso tambien, solo um poquito! – isto quem diz sou eu, arriscando-me em meu espanhol.
Brasileiro?, me pergunta o cozinheiro, sua pele é de um preto quase tão brilhante quanto os botões na blusa branca de seu uniforme, faço-lhe a mesma pergunta que fizera ao bellboy, ao que ele responde a mesma coisa, El acento!, e abre um largo sorriso com os dentes brancos e desalinhados.
Eu falo um pouquinho de português, prossegue o cozinheiro, enquanto arrasta a espátula pela chapa quente, misturando os ingredientes da omelete. Consigo compreender quando você fala, eu gosto de falar português.
Interesso-me pela história do sujeito, seu sotaque é mais luso que brasileiro, pergunto-lhe Você já morou fora?
Passei pouco tempo, mas não foi assim que tudo começou. Aprendi por causa de uma mulher, ele diz, e agora seu sorriso fica ainda mais largo.
Como assim, como foi isso? empolgo-me, o que lhe deixa bastante à vontade.
Ela era incrível, eu me apaixonei perdidamente! Conhecemo-nos em Cuba, depois que ela voltou para casa, comprei uns discos do Roberto Carlos, comecei a ouvir, e pensei Ah, é fácil!
Enquanto ele fala, chama-me a atenção o som fechado do E, como no espanhol: êla êra incrível, Depois que êla voltou...
Ah, o que um homem apaixonado não faz por uma mulher?, ele se indaga, e sorri novamente. Fico feliz por ele, lembro-me de alguns de meus amores, por mais um ou dois minutos, ouço-o falar de sua imensa paixão pela mulher que lhe fez comprar os discos do Roberto Carlos, portuguesa, ou, mais precisamente, lisboeta.
Quanto a cantarolar alguma música do Rei, ele não chega a fazê-lo. Talvez tenha tido vontade, mas a omelete já está no ponto, e a mim cabe pegar o prato que ele me estende afável e sorridente, Obrigado, eu digo, De nada, ele responde, com seu sotaque engraçado, e retomo meu assento à mesa.
7. Sociologia de taxista.
De frente ao hotel, entramos no taxi, é um modelo Hyundai amarelo, e vamos pela autopista que margeia, à nossa esquerda, o oceano. A Lua bem cheia no céu, o passeio demais agradável.
Tenho comigo que, em qualquer sociedade, o taxista é um sujeito razoavelmente habilitado a dar uma boa explicação do grupamento humano em que vive, o que