Lucrécia Bórgia
De Victor Hugo
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Sobre este e-book
Victor Hugo
Victor Hugo (1802-1885) was a French poet and novelist. Born in Besançon, Hugo was the son of a general who served in the Napoleonic army. Raised on the move, Hugo was taken with his family from one outpost to the next, eventually setting with his mother in Paris in 1803. In 1823, he published his first novel, launching a career that would earn him a reputation as a leading figure of French Romanticism. His Gothic novel The Hunchback of Notre-Dame (1831) was a bestseller throughout Europe, inspiring the French government to restore the legendary cathedral to its former glory. During the reign of King Louis-Philippe, Hugo was elected to the National Assembly of the French Second Republic, where he spoke out against the death penalty and poverty while calling for public education and universal suffrage. Exiled during the rise of Napoleon III, Hugo lived in Guernsey from 1855 to 1870. During this time, he published his literary masterpiece Les Misérables (1862), a historical novel which has been adapted countless times for theater, film, and television. Towards the end of his life, he advocated for republicanism around Europe and across the globe, cementing his reputation as a defender of the people and earning a place at Paris’ Panthéon, where his remains were interred following his death from pneumonia. His final words, written on a note only days before his death, capture the depth of his belief in humanity: “To love is to act.”
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Lucrécia Bórgia - Victor Hugo
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I — No baile de máscaras
No palácio dos doges, em Veneza, na noite de terça-feira de Carnaval de um dos primeiros anos do século XVI, realizava-se um baile de máscaras.
Era então magistrado supremo da República Veneziana o célebre Barbarigo.
Os suntuosos salões resplandeciam com miríades de luzes, que iam refletir-se nas águas dormentes do canal que circundava os jardins do palácio e pelo qual deslizavam mansamente gôndolas com mascarados, uns cheios de alegria expansiva e ruidosa, outros imersos em silêncio e como que receando até falar, não fossem as águas contar ao temível Conselho dos Dez um segredo meio revelado, uma palavra de sentido dúbio, que trouxesse a morte a quem imprudentemente a proferira.
Porque Veneza tinha o terror da espionagem. Um gesto, uma palavra, por vezes mesmo um olhar eram uma sentença de morte. E com o Conselho dos Dez não se brincava. Ai daquele que caía em seu poder!
Voltemos, porém, ao palácio Barbarigo. Nos salões juntara-se toda a aristocracia de Veneza, ostentando as mulheres elegantes e variadas toilettes, apresentando-se a maior parte decotadas, vestindo igualmente os homens com gosto apurado, formando um conjunto encantador e que prendia a vista do observador que ali se encontrasse para estudar a vida veneziana.
A animação era extraordinária. Todos pensavam naquele momento apenas em se divertirem, e se alguns tinham porventura qualquer preocupação, a alegria, o ruído, a animação que ali reinavam expulsavam-lhes da mente as ideias sombrias e arrastavam-nos na onda da loucura e do gozo da vida, que tão bela lhes aparecia.
Mulheres formosas, o perfume estonteante de flores raras, música deliciosa, vinhos capitosos, frases de amor murmuradas por lábios que sorriam divinamente, que mais se poderia desejar para se ser feliz?
Um pouco depois da meia-noite, alguns mancebos que tinham saído para os jardins que rodeavam o palácio e que eram beijados pelas águas cristalinas do canal de Zuca formavam círculo em volta de um deles, talvez o menos elegante de todos os que ali se encontravam, mas cujas maneiras e cujo olhar denotavam audácia e resolução.
Era uma história que esse jovem ia contar e, como bom narrador que se preza, ficou descontente quando um dos que o haviam seguido, um mancebo de nome Genaro, ao ouvir as primeiras palavras, soerguera os ombros num gesto de indiferença e, dando como pretexto o estar fatigado e ter sono, declarou que ia sentar-se numa cadeira que se via colocada num recanto do jardim, resguardada do frio e da humidade por uma cortina de arbustos que formavam uma espécie de dossel, ou antes, como lhe chamaríamos hoje, um caramanchão.
Genaro vestia o uniforme de capitão. Era um soldado de fortuna, como então tantos havia na Europa. Não conhecera os pais e, por isso, nenhum outro nome acrescentara ao de batismo. O narrador chamava-se Jacopo.
Mas não fora só Jacopo que reparara no gesto de Genaro. Um outro mancebo, Mafeo Orsini, interveio:
— Não me admira, Genaro, que te não interesse a história que Jacopo nos vai contar. Tornaste-te célebre pelo teu valor, meu formoso capitão de aventureiros, que te chamas como te apraz, visto não teres conhecido nem pai, nem mãe, mas que deves ser de ascendência nobre porque tudo em ti o indica. Quanto ao teu valor, ninguém o pode pôr em dúvida e eu menos do que ninguém. Somos irmãos de armas e se te salvei a vida na ponte de Vicenzia, onde fizemos o pacto de ficar eternamente ligados e compartilharmos tanto os perigos da guerra como as aventuras de amor, em compensação salvaste-me, por teu turno, de uma morte certa em Rimini. O pacto feito até hoje tem sido cumprido lealmente e continuará a sê-lo, tenho a certeza.
— Mas... — ia a objetar um dos mancebos que faziam parte do grupo.
— Bem sei o que vais dizer — atalhou Mafeo. — Não vem para o caso o que estou contando, mas deixa-me concluir. Genaro é feliz porque tem apenas esse nome, não depende de ninguém, a ninguém tem que dar conta dos seus atos e não está sujeito a nenhuma dessas fatalidades hereditárias que andam mais ou menos ligadas aos nomes históricos. Não admira, pois, que o não interessem as histórias que se relacionam com os acontecimentos dados no presente, quanto mais os do passado. Connosco, o caso é diferente. Interessam-nos, porque são tragédias em que os protagonistas foram membros das nossas famílias, o que dá causa a que, de quando em quando, elas revivam e façam derramar mais sangue.
E, dirigindo-se a Jacopo:
— Começa a tua narrativa.
Genaro limitou-se a dizer:
— Quando acabarem, acordem-me.
O círculo estreitou-se em volta do narrador. Duas figuras nele se destacavam; a de Jacopo e a do conde de Belverana que, mais do que nenhum, parecia vivamente interessado no que se ia dizer. O conde era mais conhecido entre os seus companheiros apenas pelo nome de Yubeta.
O narrador deitou um olhar em volta, pareceu ficar satisfeito com a curiosidade ardente que se lia em todos os rostos e começou:
— Foi meu primo o cardeal Carriale, que todos vocês conhecem e que tanto em evidencia se pôs, por causa da questão que sustentou com o cardeal Riário a propósito da guerra contra Carlos VII, quem me contou a horrível história que vão ouvir. O cardeal anda a par de todos os escândalos da alta sociedade e, por isso, pode dar-se crédito ao que conta a tal respeito. Ouçam. Numa noite de inverno, uma terça ou uma quarta-feira do ano de 1483,..
— Não — interrompeu Yubeta — foi em 1487.
— Como o sabes?
— Garanto-te que foi no ano que acabei de citar.
— Sabes então o que vou dizer?
— Pouco mais ou menos.
— Nesse caso, conta tu — volveu Jacopo, em tom um tanto ou quanto despeitado.
— Não — replicou o conde —, pode ser que me tenha enganado e que se não trate do que suponho. Além disso, não o poderia fazer tão bem como tu, porque me são desconhecidos alguns pormenores.
— Não são permitidas as interrupções — exclamaram alguns dos ouvintes. — Anda, continua, Jacopo.
— Está bem, obedeço. Atenção, pois. No ano de 1483, ou 1487, como diz o conde, numa escura noite de inverno, pela uma hora da manhã aproximadamente, um barqueiro do rio Tibre estava esperando no seu barco que chegasse o carregamento que devia transportar, quando um pouco abaixo da igreja de São Jerónimo apareceram dois homens vindos pela rua que fica à esquerda do templo. Esses homens pareciam inquietos e andavam de um lado para outro, como que perscrutando as trevas e certificando-se de que o local estava bem ermo. O barqueiro, a quem tais movimentos se tornaram suspeitos, susteve a respiração, ficou imóvel e não perdeu de vista os dois homens. De súbito surgiram mais dois e daí a poucos momentos mais três, ou seja ao todo sete. Um deles vinha a cavalo e, como a garupa do animal fosse nesse momento voltada para o rio, viu o barqueiro que aí estava um homem, ao que parecia morto, pois que as pernas pendiam para um lado e a cabeça para outro. Alguns dos que ali se haviam assim reunido tinham-se colocado às esquinas das ruas próximas, como esculcas, ao passo que os outros pegavam no que parecia (ou estava realmente) morto, segurando-o uns pela cabeça, outros pelos pés e, depois de lhe darem balanço por duas ou três vezes, atiraram-no ao rio. Depois de se ouvir o ruído especial que faz um corpo ao afundar-se na água, apareceu à