Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A Ampulheta De Marfim
A Ampulheta De Marfim
A Ampulheta De Marfim
E-book382 páginas4 horas

A Ampulheta De Marfim

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Um refinado nobre cavalheiro, um fascinante conquistador, um jovem soldado imperial. E um alquimista.
Um antigo diário, um mistério enterrado por séculos, um objeto cobiçado por todos. E uma partida de xadrez.
De uma Paris reduzida pelo Terror em Veneza até o Egito da época barroca, entre uma Bolonha atual e a Roma disputada entre o Vaticano e Napoleão, ao longo de quatro séculos em uma busca só: aquela pela ampulheta de marfim.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de nov. de 2018
ISBN9781547542253
A Ampulheta De Marfim

Relacionado a A Ampulheta De Marfim

Ebooks relacionados

Ficção de Ação e Aventura para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de A Ampulheta De Marfim

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A Ampulheta De Marfim - Davide Cassia

    leituras?

    A alquimia da vida vale um milhão de livros.

    Davide

    Para a minha família, terra firme em meio às correntes da vida.

    Stefano

    Verum sine mendacio, certum et verissimum...

    (Isso é certo, certo e muito verdadeiro...)

    Hermes Trismegisto, A tábua de esmeralda

    ––––––––

    Jamais se deve ter certeza de algo [...]

    porque nada merece certeza...

    Bertrand Russell

    ABERTURA

    Salzburgo, 1592

    O desafio estava para começar. As trinta e duas peças estavam dispostas sobre o tabuleiro com precisão, cada uma perfeitamente no centro de sua própria casa. Os dois pequenos exércitos de mármore pareciam esperar o encontro com um silêncio orgulhoso.

    O branco ficou com o jovem italiano, como ato de gentil hospitalidade. Na verdade, o encontro tinha outros propósitos e a partida de xadrez só serviria como um apoio; falar jogando daria ordem aos conceitos, articulando as frases com critério entre uma jogada e outra.

    O jovem, que parecia ter um pouco mais de vinte anos, tinha uma aparência limpa e asseada, apesar da longa viagem realizada, e suas feições harmoniosas evocavam certa nobreza de nascença. Sem dizer nada nem esperar qualquer convite, pegou o peão branco que estava na frente do rei e abriu a batalha, movendo-o por duas casas.

    O adversário retrucou com o mesmo movimento, deslocando o peão do rei preto e o tabuleiro recuperou a simetria perdida. Seu rosto era um enigma e parecia desafiar quem o encarasse para deduzir seu significado, desvendar sua vida, sua idade. Tinha rugas velhas e profundas, como o garoto jamais vira, mas sua pele lisa, sua figura franzina e gorducha, quase adolescente, ombros pequenos e crânio grande criavam um contraste nada natural. Até o olhar não era de fácil compreensão e, embora indicasse uma inteligência vivaz, com olhos pequenos e frenéticos, chegava a ser evasivo, como se oscilasse subitamente entre os vários estados da alma humana.

    Magister, como é que se torna um grande filósofo? — perguntou o jovem, movendo o cavalo do rei ao centro do tabuleiro.

    — Quando se detém o domínio do fogo, muitos dizem — responde o outro com uma voz rouca e ao mesmo tempo aguda, em um italiano correto, mas com forte sotaque alemão — todavia, é uma resposta estúpida. Na verdade, é preciso entender o grande cosmo e o pequeno cosmo e suas relações, que eu chamo de assinaturas.

    O peão preto estava agora ameaçado e o velho deu-lhe proteção com o que estava à esquerda, movendo-o por apenas uma casa. Foi um movimento fraco, que revelava o flanco ao lado do rei. O garoto, surpreso por tal imprudência, aproveitou-a depressa, sacrificando o cavalo recém-movido.

    — Mas ainda não sei identificar assinaturas, mestre — disse.

    Alterius non sit, qui suus esse potest — replicou o mestre — não seja escravo de ninguém se puder ser senhor de si mesmo. Combata os dogmas do passado, liberte-se deles como quem se livra dos excrementos!

    O jovem italiano conhecia bem a fama de seu interlocutor, principalmente seu ódio pelo dogmatismo médico e sua paixão por metáforas multicores. Alguns meses atrás, quando ouvira boatos de que ainda estava vivo, pensou imediatamente em uma das muitas lendas aumentadas sobre os alquimistas, ligadas ao elixir, o segredo da vida longa. Mas depois quis acreditar nisso e convenceu-se a tal ponto que partiu em uma viagem. Se pudesse falar com ele, pensava, e dar forma aos diálogos imaginários, elaborados enquanto lia os textos dele, representaria uma experiência ímpar e agora estava mesmo ali, contra qualquer racionalidade e contra qualquer lei natural. Ainda não entendera muito bem como conseguiu encontrá-lo, mas suspeitava que tivesse sido ele mesmo quem teria sido encontrado.

    — Mas não se deve apenas buscar o que é bom nas coisas antigas? — perguntou, ousando contradizê-lo.

    —Ah! Vã busca! O que mais se pode encontrar em um monte de devaneios imundos? A começar pela natureza, eu te digo que não é outra coisa senão a filosofia, assim como a filosofia é a natureza invisível.

    O italiano não quis responder nada além disso, apesar de não estar totalmente de acordo. Teria tempo para refletir sobre aquelas palavras e torná-las preciosas. Pelo menos essa era sua intenção.

    O cômodo onde se encontravam estava úmido, embora lá fora brilhasse o sol de início de tarde em um céu limpo. Lá dentro, livros e folhas pareciam aleatoriamente espalhados, mas talvez o caos fosse só no aspecto e eles se organizavam seguindo uma ordem mental, um processo de trabalho realizado pelo mestre. Havia numerosos recipientes de porcelana, de dimensões variadas e absolutamente anônimas, de modo que seus conteúdos permanecessem ocultos, e utensílios de vidro com formas sinuosas, mas familiares ao jovem hóspede, como alambiques, retortas e serpentinas. Na parede, havia um pequeno espaço côncavo, sem dúvida utilizado como oratório e, finalmente, logo ao lado, uma pequena fornalha apagada.

    Os dois continuavam a partida em silêncio. Os movimentos sucessivos voltaram o desafio a favor do italiano. A passagem aberta na formação do preto permitira um firme ataque de dama e bispo.

    Indiferente, o mestre tornou a falar:

    — Aquilo que aprendemos com outros homens pode ajudar-nos a formar nossas opiniões, e mais nada. As noções dos outros não são conhecimento, o verdadeiro conhecimento é a compreensão direta da verdade e essa é ensinada pela natureza. Como você acha que eu sei que o Citrus Aurantium cura os espasmos cardíacos? Ou que a Spirea Ulmaria desidratada é boa contra febres e dores? Ou ainda que o Thymus Vulgaris, isto é, o tomilho, como vocês chamam, ajuda na digestão? Com certeza não é por crença, mas sim por verificação!

    — A natureza é certamente complexa — comentou o garoto. — E se for complexa demais para o intelecto humano?

    — A natureza é sutil em seus aspectos, mas o homem só precisa levar à perfeição aquilo que ainda não está concluído. Não é fácil, mas pode consegui-lo sempre que for guiado por uma Grande Arte.

    A Grande Arte... A Alquimia, naturalmente pensou o jovem.

    1. Castelo Berthier de Lasalle - 18 floreal do ano XVI (8 de maio de 1808)

    Considero o xadrez como o mais honesto dos jogos, pois os adversários não podem esconder nada um do outro.

    Isaac B. Singer

    ––––––––

    Darius Berthier de Lasalle e Moran De la Fuente estavam sentados um de frente para o outro, imersos na reverberação silenciosa da luz de algumas velas.

    Fragmentadas em largos matizes, as sombras deles se projetavam nas paredes da grande sala, cuja decoração lembrava a nobreza francesa do início do século, aquela rendição mais ponderada dentre os casos da Revolução.

    Os quadros e os selos ocupavam com sobriedade os espaços que uma vez foram dominados por tapeçarias finas e imponentes. A fartura, não mais ostentada pelo brilho das pedras e metais preciosos, parecia confinada em uma esfera mais latente e os seus símbolos agora eram os extensos cômodos vazios, os móveis antigos e bem conservados, alguns troféus e estandartes que sobreviveram a saques anônimos.

    A mão de Darius, o dono da casa, segurou quase que com crueldade o peão branco do rei, ficou ali por alguns segundos, então decidiu pela típica abertura.

    À sua frente, Moran sorriu com seus olhos escuros.

    — Sempre o mesmo movimento, em todos esses anos...

    — Deixo-lhe a tarefa de surpreender-me — respondeu Darius.

    Moran alisou a barba negra, uma escolha incomum para um nobre e, antes de jogar, tomou o cálice nas mãos. Os reflexos carmins assemelhavam-se ao sangue arterial à luz incerta das velas. Categoricamente, bebericou o vinho, depois levou a mão ao tabuleiro e moveu por duas casas o peão de frente à dama preta.

    Sem hesitar, Darius capturou aquele peão com o dele. Tinha o rosto esculpido por rugas pensativas e um olhar atento que deixava subentendida uma inteligência reflexiva. O nariz era regular, os lábios, sutis, pouco habituados a sorrir e os cabelos claros desciam ondulados quase até os ombros. As consequências da Revolução pareciam ter atingido também o aspecto dos nobres, mas de um modo que não desagradava Darius totalmente. Rendas e pó-de-arroz eram lembranças de um passado distante; a roupa mais simples daqueles anos, que lembrava a nobreza fundiária inglesa, era mais adequada para ele.

    — Gosta? — perguntou, indicando o cálice com o olhar.

    — Você sabe que o Chambertin é o meu preferido. Sempre admirei os vinhos da Borgonha.

    Moran respondera sem parar de olhar para o tabuleiro. Segurou com calma sua dama e a moveu até comer o peão, equilibrando, assim, o material em jogo. Mas sabia que tinha poucas esperanças: nunca ganhou de seu amigo.

    — Ao que me parece, também é o vinho favorito de Napoleão — comentou Darius. — Ouvi dizer que a cantina de Josefina sempre o forneceu.

    — Isso me importa?

    — Diria que sim. O que agrada Napoleão deve agradar os súditos do Império.

    — Então ambos somos bravos súditos! — observou Moran com sarcasmo.

    Darius ergueu o cálice por sua vez e o examinou, verificando se era suficientemente limpo, depois saboreou o Chambertin.

    Os dois permaneceram em silêncio por alguns minutos, atentos à partida. Os movimentos seguintes já traçavam uma posição favorável às peças brancas de Darius. O preto, em busca de um ataque precoce, movera a dama diversas vezes, renunciando, assim, ao desenvolvimento mais importante das peças menores, cavalos e bispos. Apesar disso, Moran optou ainda por um movimento imprudente, subestimando um ataque do cavalo branco ao lado da dama. A resposta de Darius, precisa e fatal, desequilibrou a partida de forma nítida a seu favor, mas decidiu não evidenciar o fato e disse:

    — Como foi a sua última viagem?

    Moran observou com as sobrancelhas extremamente franzidas o movimento do amigo e duas grandes rugas preguearam seu rosto. Suspeitava que já tivesse prejudicado tudo, mas talvez ainda pudesse remediar.

    — Em Viena, os ares são diferentes da inatividade da França, mesmo que a derrota na Itália há sete anos ainda pese aos austríacos. A meu ver, é uma cidade mais dinâmica... Quero dizer, mais próxima dos meus gostos. Além disso, Viena é assim... estimulante!

    Uma brisa deslocou o ar na grande sala. As pequenas chamas das velas falharam por um instante, traçando estranhos contornos no rosto de Moran.

    Darius retirou do bolso um pequeno saco de couro escuro, de onde extraiu um cachimbo, que logo começou a encher de tabaco.

    — Algum problema? — perguntou enquanto pelejava com um fósforo.

    — Não, você sabe que conheço o alemão como o francês.

    — Refiro-me a maridos ciumentos ou coisas do tipo.

    Moran balançou a cabeça e riu.

    — Fiquei ali por apenas duas semanas, não tive tempo de misturar-me.

    Darius acenou com a cabeça, mas a densa baforada de fumaça que produziu não foi capaz de esconder sua expressão de ceticismo. O amigo nunca deixava de conquistar corações. Era alto e tinha um físico atlético, pele escura e carregava em si uma fascinante herança da aristocracia espanhola.

    — E seu filho Sebastien? — perguntou Moran.

    O semblante de Darius tornou-se obscuro.

    — Está na frente espanhola. Não recebo muitas notícias, a última missiva data de um mês atrás. Pelo visto, Napoleão está preparando um exército para uma guerra contra a Espanha. Os jornais não fornecem nenhuma notícia válida... As únicas informações certas são as do boletim da Grande Armée, mas não se fala da frente espanhola.

    Moran escolheu um movimento sensato, o único possível para evitar a entrada do cavalo branco no seu lado, mas a sua situação parecia sempre mais crítica. Darius fixou os olhos de forma desatenta no movimento da mão do amigo e depois se perdeu nos reflexos rubros de seu cálice.

    — Busquei qualquer meio de fazer com que não se alistasse — continuou, reemergindo de seus pensamentos —, mas agora meu poder restringe-se aos bens e nada mais. Não tenho mais nenhuma influência nos ambientes políticos. Além disso, Sebastien parecia entusiasmado com a ideia, era uma aventura para ele.

    Moran ergueu os olhos do tabuleiro. Um clarão violeta brilhou em sua íris escura.

    — É inteligente, puxou a você. Vai sobreviver.

    — Na batalha, inteligência não conta.

    Moran pressionou os lábios e não retrucou. Darius aspirou um bocado de fumaça e voltou a falar:

    — Vamos tratar de outro assunto, meu amigo. Diga-me, onde esteve depois de duas semanas em Viena?

    — Na Itália: fiz uma parada de alguns dias em Veneza e depois viajei para a Bolonha. Ali, conheci uma mulher que...

    — Aí está, eu sabia — interrompeu Darius.

    Moran sorriu, mas prosseguiu o relato, despreocupado:

    —... Uma mulher que me falou de um personagem misterioso de dois séculos atrás. Uma história interessante.

    — Outro dos seus típicos enigmas?

    — Sim, mas desta vez tem algo a mais... Trata-se de uma pessoa realmente única.

    — Mas quem poderia ser esse sujeito?

    Moran afastou-se do encosto de veludo da poltrona e aproximou-se do amigo, agora pouco propenso a concentrar-se no jogo.

    — Não tenho certeza de que quero falar sobre isso com você — confessou, desfrutando da atenção que conquistara —, você só esboçará um ceticismo desanimador.

    — Não prometo que irei acreditar nas suas palavras — respondeu Darius —, todavia... esforçar-me-ei para levá-lo a sério.

    Moran não parecia convencido e emitiu um murmúrio de ponderação.

    — Aliás — retomou Darius —, você não pode calar-se agora que aguçou a minha curiosidade, seria um gesto rude, extremamente cruel.

    — Talvez me arrependa disso.

    — Prossiga. Então, quem era esse homem misterioso?

    O hóspede finalmente decidiu falar. Pronunciou as palavras em voz baixa, como se houvesse alguém escutando na penumbra da grande sala.

    — Um alquimista — sussurrou.

    2. Diário – 1º de setembro de 1604

    A alquimia serve para separar o verdadeiro do falso.

    Paracelso

    ––––––––

    Crônica verídica dos fatos e viagens de Giacomo Bandini, que percorreu terra e mar no ano de 1604, por ele mesmo meticulosamente narrada.

    ––––––––

    Com privilégio.

    Roma, MDCXXXIV.

    ––––––––

    Al Sereniss. Monarca Medicorum

    ––––––––

    Prólogo

    Meu propósito é narrar a história das aventuras e infortúnios que o destino gostaria que eu vivesse e agora concede que eu escreva. Giacomo Bandini, meu nome, filho próspero de Guglielmo Bandini e Giulia, nascido em Acquaviva. Bolonha é a cidade dos meus natais e da minha infância, mas logo comecei a viajar por terras estrangeiras no anseio de satisfazer o sentido da minha vida inteira, pois sou alquimista, ou filho da Arte, como frequentemente é conhecido quem a Grande Obra persegue.

    Quando o homem sábio põe-se a refletir, compreende bem que esse admirável magistério de Deus, que se chama mundo, é tão rico e generoso de prodígios e obras, e da Natureza misteriosa, modos e tempos que ele quer descobrir e finalmente domar. Se eu tivesse que dizer em breves palavras o que a Alquimia persegue, diria isso: não é mudar os elementos, nem modificar a Natureza, mas sim com escrúpulo imitá-la e deveras humildemente apressar-lhe os tempos.

    A história desse diário deve à Alquimia sua própria razão: no ano 1604, com a idade de trinta e três anos, resolvi deixar Bolonha pelas terras da África e quis dirigir-me a esse destino distante em busca de uma ampulheta, cuja existência foi confirmada, mas eu o soube originalmente através de uma pessoa ilustríssima e altamente extraordinária.

    Agora, inicia-se a narrativa: diante de Deus Misericordioso e Onipotente, afirmo que falarei dos fatos como aconteceram, decerto com capricho de datas e lugares em forma de diário e jamais fugirei do propósito de ser sincero, para que a luz e a escuridão tenham aqui igual tributo, assim como têm lugar semelhante nas questões humanas o bem e o mal.

    Homo quisque faber ipse fortunae suae

    i. Dies Mercuri, 1º de setembro de 1604. Bolonha.

    O dia começou encantador e quente quando parti de Bolonha, como se a natureza tivesse tido o zelo de dar-me uma bondosa saudação, justamente como eu fiz aos meus familiares. Ainda me lembro dos rostos dos meus filhinhos pequenos, Tommaso e Giovanni, e também do da mãe deles, minha querida e bela Camilla Maria. Sempre me pergunto quando poderei revê-los, mas me pesa a angústia de que isso não aconteça.

    Todavia, naquele dia, inconsciente dos eventos futuros, parti. Sobre a viagem a Veneza, há pouco o que se dizer, já que me lembro que foi tranquilo e sem adversidades.

    ii. Dies Solis, 5 de setembro. Veneza.

    Em Veneza, meu amigo Giulio Pacelli me ofereceu abrigo e calor, como somente anos de amizade verdadeira podem proporcionar. Ele é uma pessoa honesta e também discreta, nobre de coração como de nascimento, inclusive naquela ocasião não haveria de negar uma tarefa que lhe pedi, isto é, encontrar certas correspondências no local da ampulheta.

    Trata-se precisamente de um manuscrito de Bernardo da Treviri, grande doutor da Alquimia, que há dois séculos viajou muito pela Europa e pela África. Foi depois de muitos anos vagando apreensivo que teve consciência de um fato deveras perspicaz: a fim de encontrar a sabedoria do homem, não é preciso andar procurando homens sábios, mas é necessário examinar a si mesmo, igual e semelhante ao que já escreveram os antigos.

    E, no entanto, parece que ele, em suas viagens, dirigiu-se, enfim, para as terras de Maumeto e lá veio a encontrar o local de um antiquíssimo marcador de tempo de Ctesíbio, feito de marfim, instrumento extraordinário aos olhos de um filósofo, assim Bernardo se expressou.

    Essas palavras têm um significado aparente, e, sabendo ser Ctesíbio o inventor da ampulheta, parecem dizer que tal aparato e seu mecanismo bastante simples podem maravilhar o filósofo pela destreza dos homens antigos. Mas estou certo de que Bernardo teve a intenção de usar filósofo para dizer alquimista e o que é extraordinário aos olhos de um alquimista não pode ser somente a areia que cai, posto que essa ampulheta em particular deveria ter uma função na Grande Obra.

    Bernardo disse então que não poderia tirar proveito do precioso utensílio, pois este era bem guardado, e assim o deixou ali onde estava.

    Meu leitor compreenderá bem que emoção experimentei ao ver meu amigo Pacelli portando tal manuscrito e que intensa alegria encontrar contidas neste indicações precisas sobre a localização da ampulheta.

    — Caro amigo, esse teu serviço supera todos os outros —, disse-lhe com admiração.

    — É verdade! — respondeu. — Mas atenção, estou pressentindo situações misteriosas e perigosas.

    Ao ouvir essas palavras, preocupei-me um pouco. Querendo informar-me bem, perguntei se fora difícil vir em posse do documento.

    — Não é isso, uma vez que o manuscrito não tinha custódia alguma.  Mas... — Giulio baixou a voz em um sussurro —... Desde então, frequentemente tenho a sensação de estar sendo perseguido e espionado e suspeito da Inquisição.

    A minha preocupação cresceu, naturalmente, mas lembro-me de ter pensado que até mesmo o astuto Pacelli poderia enganar-se. Em vez disso, quem errou fui eu! Agora já sei, não dei a devida importância a essa situação. Fere libenter homines id quod volunt credunt, como disse o supremo César, quer dizer que os homens acreditam de bom grado naquilo que desejam que seja verdade, e eu quis acreditar estar seguro e distante de qualquer perigo.

    iii. Dies Lunae, 6 de setembro. Veneza.

    Quis memorizar aquilo que dizia o manuscrito e, em particular, as bases para a caça à ampulheta, pois não queria viajar com ele por cautela, e, inclusive, pedi a Giulio para restituí-lo ao seu lugar de origem.

    Ao amanhecer, despedi-me do meu amigo e embarquei no galeão chamado Giudecca, navio belo e sólido à vista, deixei o porto veneziano em direção a Alexandria.

    As quietas e claras águas me pareceram uma coisa totalmente natural e meu coração sentiu-se satisfeito.

    3. Castelo Berthier de Lasalle - 18 floreal do ano XVI (8 de maio de 1808)

    É preciso começar ao pôr-do-sol, quando o marido Vermelho e a esposa Branca se unem no espírito de vida para viver no amor e na tranquilidade, na proporção exata de água e terra.

    George Ripley, As doze portas da Alquimia

    ––––––––

    — Um alquimista? — disparou Darius. — Será que não te encantaste com uma história do gênero?

    — Silêncio, você prometeu! — rebateu Moran. — De qualquer forma, nunca me deixei encantar.

    — Ah, claro!

    — Então? Quando foi que aconteceu?

    Darius apoiou-se no encosto, levando o cachimbo à boca.

    — Quando você partiu em busca do dragão, por exemplo — disse, depois de uma baforada de fumaça.

    — O fato de eu não o ter encontrado não significa que não exista. Ou que não tivesse existido no passado.

    — Ah, sim. A sua teoria.

    — Sei que jamais o convencerei, mas tenho certeza de que os dragões existiram.

    — Que você pense assim, não discuto — comentou Darius, divertindo-se. — Caso contrário, não teria feito aquela tatuagem horrível... Um dragão no ombro, ainda me custa entender.

    — Como preferir — respondeu Moran. — Acho que não lhe falarei mais sobre Bolonha: ficarei calado, como deveria ter feito antes, e continuaremos nossa partida.

    Darius massageou o queixo.

    —Desculpe-me, manterei a promessa. Ficarei sério, mesmo.

    —Desculpas aceitas. Eu contarei, depois você poderá fazer suas observações aguçadas.

    Darius acenou com a cabeça com exagerado arrependimento e baixou o olhar para o tabuleiro, onde a partida permanecia no momento suspensa.

    — Então — continuou Moran —, cheguei a Bolonha e ali conheci essa mulher. Após algumas horas juntos, confessou-me ser a amante de um oficial do exército, um do alto escalão. Esse oficial falara com ela uma vez sobre Giacomo Bandini, um alquimista do século XVII. Giacomo estava em busca de algo que o levou a percorrer a Europa, mas não só. Parece que também esteve na África.

    — E o que ele procurava de tão precioso?

    — Não sei exatamente, algo ligado à alquimia, no fim das contas.

    — Só isso?

    — Não, a mulher também me falou de um diário, onde Bandini transcreveu as peripécias de sua busca.

    — E onde está esse diário?

    — Não sei.

    — Mas gostaria de saber.

    — Sim — confirmou Moran. — Você sabe bem o que os alquimistas buscavam: a Grande Obra, a pedra filosofal, transformar metais vis em ouro, em seguida, obter o elixir da longa vida. Diz-se que os alquimistas mais famosos desapareceram e depois foram vistos em épocas posteriores, séculos depois.

    Darius suspirou.

    — Temo que esse seja o momento do meu decepcionante ceticismo. Não acredito que você dê crédito a essas lendas.

    Moran pareceu impaciente e se moveu com nervosismo na poltrona.

    — As lendas têm sempre um fundo de verdade. Houve alquimistas em todas as eras da história humana, todos em busca da mesma obra.

    —Moran, os alquimistas eram sonhadores... Quando não eram charlatões e vigaristas. Não há nenhuma prova de que alguma vez tenham concluído a Grande Obra.

    — Porque não é documentado pelos malditos historiadores quer dizer que não possa ter acontecido, é assim? Nunca cogitou que quem conseguisse produzir o ouro filosófico não gostaria mesmo de ser lembrado?

    — Fora que transformar chumbo em ouro com um forno e algumas práticas rituais é impossível.

    Moran colocou uma mão no rosto e tentou acalmar-se. Previra aquela reação. Darius era um estudioso intransigente.

    — Ao longo da história, existiram muitos alquimistas e muitas foram as suas obras. Entre eles, havia médicos, filósofos e até mesmo reis. Acredita mesmo que todas essas pessoas tenham perseguido um sonho irrealizável?

    — E por que não? A ignorância e a superstição abundam em qualquer lugar. As pessoas deixam-se levar por esses atalhos rumo à riqueza

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1