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Polícia e tortura no brasil
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E-book416 páginas4 horas

Polícia e tortura no brasil

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Sobre este e-book

Ser policial, como os participantes do estudo, foi fundamental para Marcelo Barros poder levantar o manto em que os profissionais da segurança ocultam suas práticas mais reprováveis. Recorrendo à discussão teórica no campo da História, da Cultura Organizacional, da Economia do Crime, da Psicologia Social e fazendo uso da metodologia qualitativa com a realização de entrevistas com policiais, o autor oferece uma nova perspectiva para apreender a violência policial, colocando em cheque as teorias que afirmam que a tortura é uma herança da ditadura ou uma ação individual de monstros ou psicopatas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2015
ISBN9788581927374
Polícia e tortura no brasil

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    Polícia e tortura no brasil - Marcelo Barros

    248-249).

    1 A HERANÇA MALDITA

    Expulsa do convívio de pelo menos uma parte da humanidade durante um tempo, a tortura terminou voltando, mesmo que – com exceção dos suplícios públicos adotados em alguns países fundamentalistas – nunca mais tenha sido oficialmente aceita. Há, nesse retorno, razões para desesperar; mas, pensando no fato de que a sua prática permanece desde então quase sempre envolvida pela vergonha, há também motivos para crer que vale a pena continuar a luta – e que estamos apenas no começo.

    (Luciano Oliveira – Do nunca mais ao eterno retorno)

    Quem buscar a palavra tortura em qualquer meio de comunicação atual perceberá que essa está associada a uma prática ocorrida durante a ditadura de 1964¹⁵. Mesmo na bibliografia brasileira, é comum encontrar afirmações de que a tortura praticada ainda hoje é um resquício da ditadura¹⁶. Entretanto, desde os primeiros escritos históricos¹⁷, a partir da Idade Antiga, já havia notícias do uso da tortura na Babilônia, Pérsia, Índia, Egito¹⁸, Grécia e Roma¹⁹.

    Até então, as ordálias (provas físicas a que se submetia uma das partes contenciosas, na suposição de que a sobrevivência dependia da intervenção divina em favor do inocente: os chamados juízos de Deus) eram os meios mais adotados para produzir provas e descobrir a verdade. Porém foi a partir da Idade Média que a tortura passou a ser introduzida nos ordenamentos jurídicos²⁰ como um procedimento processual²¹, sistematicamente adotado como meio de prova²² ou o caminho para se chegar à verdade²³.

    Ao ser usada de forma mais sistemática, a tortura chegaria ao ápice entre os séculos XIII e XVII com a Inquisição. Se até então era aplicada contra escravos e servos, nesse momento, passa a ser incorporada ao processo criminal, contra os cidadãos antes imunes²⁴ a tal prática. Mais que isso, a confissão passou a ter um valor muito maior, substituindo o sistema acusatório pelo inquisitório, e em interesse da Igreja, que valorizava o arrependimento do pecador. A consequência foi um aumento das práticas de tortura para obter confissão.

    Com a chegada do Iluminismo, a tortura começa a ser criticada. Os trabalhos de grandes filósofos como Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Diderot contribuem para caracterizar a tortura como algo inaceitável. Entretanto, é Cesare Bonesana Beccaria, conhecido como o Marquês de Beccaria (Dos delitos e das penas), e Pietro Verri (Observações sobre a tortura) quem melhor representam os críticos ao uso da tortura.

    Há quem não creia na eloquência dos autores acima como a responsável pela mudança de opinião dos monarcas, mas sim na necessidade de modificações do processo penal, que passou, para ser mais eficaz, a basear a condenação em provas que respaldariam a convicção do juiz, em lugar de basear a condenação somente na confissão²⁵. Outros processos, como a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, também contribuíram para a erradicação da tortura institucional.

    A partir do século XVIII, a tortura começa a perder seu caráter legal, judicial e público e se iniciam os processos que tratariam de abolir a tortura, ao menos no plano teórico. A tortura foi proibida na Áustria (1776), na Suécia (1734), na Toscana (1786), na França (1789), na Hungria (1776), na Prússia (1734). No início do século XIX, havia sido eliminada do procedimento penal, formal, em praticamente toda a Europa Ocidental. Mesmo continuando a existir na clandestinidade²⁶, a tortura voltou à tona, legalmente, após o atentado do World Trade Center (11/09), quando o Congresso americano a regulamentou e, depois de alguns anos, revogou tal regulamentação.

    A tortura conta com uma ampla margem de aceitação popular desde a Idade Antiga até finais da Idade Moderna. Se na Idade Antiga era normal para os escravos, na Idade Moderna, começa a ser inadmissível para todos; hoje é não apenas inadmissível, parece, como também bárbara e monstruosa.

    Como se pode ver, nem sempre a tortura foi vista assim. Havia sido criada como um método de prova divino e, depois, com o progressivo avanço dos juízos estatais, foi introduzida no procedimento penal em absoluta consonância com os costumes de cada sociedade em suas respectivas épocas²⁷.

    O que começa como método de uso policial ou do exército se transformou em método processual. A tortura foi considerada no seu tempo como uma modernização do processo penal, junto com outros mecanismos de prova e de formalização do processo²⁸. Ultimamente, tem sido justificada por alguns que a praticam ou a aceitam como uma ferramenta indispensável na luta contra o grande inimigo da atualidade: o terrorismo ou, em países menos desenvolvidos, a criminalidade.

    No século XX, houve dois grandes acontecimentos que marcaram um retrocesso na luta contra a tortura: a I e a II Guerra Mundial e os fatos que as antecederam, como alguns movimentos políticos e suas respectivas repressões²⁹.

    Inclusive, depois das duas Grandes Guerras, houve situações que surpreenderam a todos, como o descobrimento da prática da tortura pelos franceses na Argélia, pelos ingleses contra membros do IRA e pelos israelenses contras palestinos. Isso ajuda a mostrar como os discursos podem ser muito distintos das práticas, pois, nesse momento, não eram países desajustados ou um Estado ditatorial regido por algum governante transtornado ou psicótico quem a praticava, ou, como disse Peters³⁰, não era uma importação de países bárbaros não europeus. Era praticada por europeus sobre europeus e não europeus por igual, pese a uma legislação que a proibia e à tentativa dos reformadores em condená-la. O mais absurdo é que a França, formalmente, era uma das nações mais ativas na luta pelos direitos humanos, assim como Israel, que havia saído há pouco tempo do holocausto.

    No século XXI, a surpresa apareceu em outro país com forte tradição de respeito aos direitos individuais: EUA. Depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o que parecia impossível ocorreu: a regulamentação da tortura em leis aprovadas pelo Congresso americano. Por outro lado, algo que poderia representar uma boa surpresa, não fosse a constatação nefasta de que a tortura ainda insiste em existir, a Suprema Corte chinesa, em novembro de 2013, ordenou que os tribunais inferiores não aceitem provas obtidas através de tortura³¹. Se for considerado que uma lei ou decisão de tribunal superior não muda uma cultura de uma hora para outra, a China ainda continuará a produzir tortura nos próximos anos.

    1.1 A Tortura no Brasil

    Ainda que boa parte dos acadêmicos brasileiros insista em relacionar a tortura com a ditadura de 1964-1984, o que ocorreu por aqui não foi diferente do resto do mundo. A tortura foi praticada em quase todos os cantos e nas mais diversas épocas e situações políticas desde o descobrimento do Brasil até os dias atuais.

    Inclusive, antes que seus colonizadores aqui chegassem, já havia casos de algumas tribos antropofágicas que tinham como prática prender seus prisioneiros, apenas os mais fortes, valentes e sem medos, para depois comê-los durante um ritual de crueldades e humilhações. E tanto maior era o prazer quanto maior fosse a resistência da vítima para ser abatida. Pois, antes de qualquer ritual místico, esse tipo de tortura era uma vingança pelos irmãos mortos pelo inimigo¹⁸.

    Esse ritual de tortura era o que ocorria com os indígenas capturados por outros indígenas antes da colonização e depois continuou ocorrendo com os colonizadores portugueses e outros povos, que eram capturados como inimigos e eram torturados até a morte antes de serem transformados em comida para quem os capturou¹⁹. Claro que a maioria dos indígenas não era torturadora ou canibal, mas há notícias de várias tribos que ³² ³³ torturavam seus prisioneiros, como os Tamoios, Tupinambás, Caetés, Aimorés e Goitacás.

    Com a chegada dos primeiros europeus ao Brasil, também foi introduzida a cultura da tortura³⁴, mais moderna e já bem conhecida no velho mundo, aplicada em criminosos, traidores, prisioneiros de guerra ou pessoas consideradas inferiores ou não pessoas (escravos, negros, indígenas e brancos sem possessões, títulos ou armas). Para essas categorias e em seu tempo e cultura, a tortura não só era permitida, mas também aconselhável como forma de manter o controle social. Se a prática da tortura era normal na Europa e suas colônias, tanto mais era no Brasil, no início de sua colonização, que era uma terra povoada por aventureiros, presos degradados, indígenas e negros que não aceitavam a escravidão, traficantes de escravos e de madeiras, todos eles em um território sem lei e sem Justiça.

    Enquanto havia apenas um conjunto de terras com seus proprietários (capitanias hereditárias), a tortura era usada com a mesma naturalidade que os homicídios, estupros e escravização de indígenas e negros, assim como outras atitudes desumanas tão comuns naquela época, em que se encontravam, por um lado, donatários, isto é, donos do território brasileiro dividido pela Corte portuguesa com o objetivo de extrair o máximo que conseguissem para a Metrópole; e, do outro lado, uma legião de escravos³⁵, obrigados a deixar suas vidas e famílias para se dedicarem a gerar riquezas para terceiros e serem tratados como animais.

    A constante ameaça de invasão por outras nações que também tinham interesse no Brasil, tal como França, Espanha, Holanda e Inglaterra, também contribuiu para o incremento da tortura, pois essa era a pena para os indígenas e aqueles outros que colaborassem com tais inimigos. Tudo isso se dava em uma terra onde havia mais promessas que condições mínimas de sobrevivência.

    Fracassada a primeira tentativa de colonização do Brasil através das capitanias hereditárias (iniciadas em 1534), e sujeita a perder tão promissor território para seus vizinhos europeus, a Corte portuguesa resolve retomar para si parte da administração da Colônia e criar um governo geral, diminuindo o poder das capitanias e fazendo a primeira tentativa de centralização de poder.

    Este novo modelo poderia causar algumas mudanças na relação com a prática da tortura, uma vez que colocava, pela primeira vez, freios no poder punitivo dos colonizadores. Entretanto, o novo governo só pretendia interferir em casos excepcionais, evitando assim situações de instabilidade derivada de um uso excessivo de força por parte dos proprietários de terras, mas, ao mesmo tempo, buscando não se opor aos encarregados da administração da justiça em suas respectivas capitanias.

    Para se ter uma ideia da concepção de justiça que imperava na época, é emblemática a punição que o Bispo Sardinha infligiu a seus dois ajudantes, deixando-os quase à morte³⁶. Tempos depois, o próprio Bispo Sardinha foi um dos que foram torturados e devorados pelos indígenas antropofágicos (Caetés), quando seu barco naufragou na costa do nordeste do Brasil. Provavelmente suas vestes e as tentativas de outros membros da tripulação de protegê-lo acabaram denunciando que se tratava de algum chefe ou personagem importante da Corte portuguesa, o que acabou aumentando a fúria dos índios que eram severamente castigados por insistirem em negociar com os franceses, mesmo com as proibições de Portugal.

    No Brasil, a tortura foi mais violenta que em outras partes do mundo? Creio que não³⁷. Inclusive, há relatos que dão conta da preocupação da Corte pelo excesso de violência³⁸. O contexto em que se praticou foi peculiar e isso afeta os métodos, instrumentos e práticas, mas o caráter punitivo, educador ou investigador alcançado através de métodos aflitivos foi o mesmo que em outras partes do mundo.

    Como convencer as pessoas a viverem escravizadas e em condições de vida absolutamente degradantes sem o uso da violência? Afinal, o período colonial se caracterizou pela ocupação quase exclusivamente rural, em que o colono está ilhado em sua propriedade, sem ajuda de qualquer força pública e sem vizinhos com quem possa contar. Isso resultava em controle e repressão ainda maiores sobre os escravos e empregados, que eram em grande número e estavam sempre insatisfeitos, tornando a tortura mais necessária e mais frequente. Não podemos esquecer que a ausência de tal força pública implicava também na falta de controle sobre os habituais excessos punitivos dos colonos.

    Entre 1603 e 1830, sob a vigência das Ordenações Filipinas, a tortura estava prevista no Título CXXXIII, do Livro V³⁹. A tortura se aplicava aos negros e aos índios para que aceitassem a escravidão e foi utilizada contra os criminosos como meio de vingança e dissuasão. Em tais condições, os severos castigos foram vistos como o único meio de os proprietários de terras não perderem o controle, e suas próprias cabeças, em um entorno sumamente hostil⁴⁰. Para se ter uma ideia do que representava viver nesse ambiente no início da colonização, basta observar que a condenação de um preso em Portugal a uma pena de desterro no Brasil era comparada à pena de morte⁴¹.

    Ao contrário do que ocorreu com a colonização espanhola na América, os portugueses não se preocuparam, ao menos no primeiro momento, em reproduzir o modelo que existia na metrópole. Seu desejo era meramente de exploração de matérias-primas e isso atrasava as mudanças sociais, tais como a urbanização, o fim da escravidão e do uso explícito da tortura. Igualmente se freou a circulação de novas ideias ou discussões que ocorriam em outras partes do mundo⁴², com o fim de evitar motins e sublevações. É verdade que, ao menos no plano formal, os mesmos princípios vigentes em Portugal foram, pouco a pouco, implantados no Brasil, para o bem e para o mal.

    O problema é que o projeto dessa nova nação vai ocorrer justo quando era mais visível a decadência de Portugal, cada vez mais envolvido na penumbra da Contrarreforma. Isso possibilitou que o novo já preservasse entre outras coisas, o pior do mundo Ibérico: uma sociedade desigual, rigidamente hierarquizada e dividida de acordo com a categoria social de cada grupo⁴³.

    Outro fator significativo para compreender a dinâmica da tortura nos três primeiros séculos da sociedade brasileira é entender o papel que a Companhia de Jesus exerceu em Portugal e no Brasil. Em detrimento dessa influência religiosa, que se utilizou da catequização para proteger os indígenas da sanha escravagista dos colonizadores, foram afastados os ideais europeus renascentistas⁴⁴, que, entre outras coisas, repudiavam a tortura.

    Quem estava sujeito a sofrer tortura? Como regra geral e quase absoluta, qualquer pessoa que atentasse contra os interesses dos donatários e colonos e aqueles que não pertenciam ao mundo da Corte, da Igreja ou não fossem nobres e oficiais. Mas a grande maioria era os negros e os indígenas, que tiveram como principais inimigos os donos de escravos e os Bandeirantes, que, para atender à grande demanda de mão de obra escrava, usurparam os territórios indígenas, capturaram milhares de índios, arrasaram aldeias, destruíram etnias e favoreceram a difusão de epidemias⁴⁵. Ou seja, a tortura era um meio moral e legalmente aceito para fazer justiça, melhorar a economia e obter controle social. E não podemos esquecer: isso contou com todo o respaldo da Igreja e da Corte.

    Justamente quando a tortura começa a ser suprimida do procedimento penal em diversos países do mundo ocidental⁴⁶, chega o cerco religioso da Contrarreforma, impedindo o desenvolvimento e a assimilação das ideias liberais e humanistas que surgiriam no resto da Europa⁴⁷ e dando uma nova função para a tortura: a expiação dos pecados.

    Com uma economia destruída, sem população nem recursos suficientes para administrar suas colônias, Portugal era cada vez mais dependente de escravos para explorar as minas e suas plantações, o que contribuiu para a perpetuação da tortura em grande escala, promovida contra os escravos e, pior ainda, impossibilitando sua posterior integração à sociedade depois de libertos⁴⁸.

    A partir do século XVIII, o número de negros, mestiços e imigrantes era muito superior ao de colonos, e a possibilidade de levantes e revoltas era motivo constante de ameaça para a elite dominante, principalmente ao final do século XVIII e início do século XIX. Nesse período, houve uma verdadeira explosão demográfica de pobres livres (principalmente imigrantes), negros e mestiços, e o medo dos dominadores aumentava diante desta massa crescente de dominados. Daí que, segundo Cardoso, continuava a existir, nos costumes e nas leis, uma estratificação social de base étnica ⁴⁹. Note-se que a exclusão social era legítima (e legal) na sociedade ao menos até 1773, quando foi promulgada uma Carta-Lei para revogar o princípio da pureza de sangue ⁵⁰.

    A mudança da Corte portuguesa para o Brasil supôs um grande salto para o desenvolvimento. Não é que a metrópole estivera muito desenvolvida, pois há quem afirme que, naquela época, era um dos países mais atrasados do continente europeu, mas a presença da Família Real exigiu mudanças e a criação de instituições que ajudaram a transformar o Estado brasileiro frente ao aglomerado de capitanias existentes até então⁵¹.

    Com a Corte no Brasil, produziu-se também a criação de muitas das instituições que já naquela época caracterizavam a tentativa de estabelecer um estado moderno, tais como a polícia e a justiça. Sem mencionar que, com o plano de expansão territorial fracassado, e sendo fugitivo do seu próprio reino, não restava alternativa ao rei português senão mudar o Brasil para reconstruir nos trópicos o sonhado Império Americano de Portugal. Nesse caso, as novidades começaram a aparecer num ritmo alucinante e teriam grande impacto no futuro do país ⁵².

    Outro fator importante foram as rebeliões que contribuíram para o crescimento da ameaça à elite dominante, pois os indígenas sublevados (a última revolta havia sido a dos indígenas botocudos, em 1809) iam dando lugar ao contingente de prisioneiros que, somados aos negros libertos, mulatos e mestiços, constituíam dois terços da população brasileira⁵³.

    No Brasil, já havia ocorrido algumas situações perigosas. Na Revolta dos Alfaiates, em Salvador, em meados de 1798, houve manifestações públicas exigindo o fim da escravidão e igualdade para todos⁵⁴. Fora do Brasil, havia também notícias de experiências mais traumáticas, como a ocorrida em 1794, quando uma revolta de negros produziu uma carnificina de branco nas Antilhas Francesas, atual Haiti.

    Em 1817, houve um levante em Pernambuco, a Revolta Republicana, que foi duramente reprimido, mas que seria seguido por muitos outros: Conferência do Equador (1824), com a execução de seus principais líderes, e, igualmente, a Setembrada (1832) e a Praieira (1848), e, ainda no nordeste, a Sabinada na Bahia (1837); no sul, a Revolução Farroupilha (1832); no norte, o levante dos indígenas, escravos e pobres do Grão-Pará, Cabanos (1831) e a Balaiada, no Piauí e Maranhão (1839); no sudeste, em Minas Gerais, a Revolta Liberal (1842).

    Nesses momentos de convulsão social, pessoas até então livres de serem submetidas à tortura ou outras formas de violência não escapavam delas, como ocorreu com os líderes locais do norte e do nordeste brasileiros⁵⁵, que optaram por permanecer ao lado de Portugal e contra os que propugnavam a independência do Brasil.

    Ainda que o açoite fosse aplicado exclusivamente aos negros, e a execução e a tortura fossem aplicadas apenas para os habitantes considerados socialmente indesejados, incluindo, certamente, os negros, havia uma exceção para os crimes de traição política, onde tais penas alcançavam a quem quer que fosse considerado inimigo. Nesse sentido, algumas das práticas de tortura usadas em Portugal⁵⁶ desde a Idade Média foram trazidas ao Brasil e usadas sempre que se considerou necessário para reafirmar o poder real ou, posteriormente, do Imperador Pedro I.

    Dez anos depois da chegada da família portuguesa na cidade do Rio de Janeiro, já se havia duplicado sua população (cerca de 120.000 habitantes), porém com um problema: a metade desses habitantes eram escravos. E nesse cenário, três aspectos incomodavam bastante a elite brasileira: o aumento dos crimes⁵⁷, a contenção dos escravos e a manutenção da ordem nas cidades.

    Neste quadro, e com a presença da Coroa Portuguesa, foram estabelecidas as primeiras formas de polícia no Brasil, inclusive com a substituição gradual da Lei Penal usada na Colônia (Livro V do Código Filipino), que além de concentrar todos os poderes dos agentes da Coroa, reconhecia a tortura como instrumento judicial de obtenção de confissões e, entre os castigos previstos, contemplava a mutilação física, a marca a ferro incandescente, esquartejamentos e açoites.

    Até esse momento, devido à ausência de um poder central e uma comunicação fluida entre as cidades, na imensa maioria do território, a lei era criada, o processo decidido e a pena aplicada, tudo por uma única pessoa: o líder local, que mantinha sua milícia e seu poder na área que administrava.

    Em 10 de maio de 1808, foi criada, no Rio de Janeiro, a Intendência Geral de Polícia da Corte (uma mescla entre prefeitura e secretaria de segurança), que começaria a limitar o poder dos particulares e suas milícias e passaria a dar os primeiros passos para a criação de forças policiais modernas. Para o primeiro Intendente Geral de Polícia, o advogado Paulo Fernandes Viana, Desembargador e Ouvidor da Corte, um dos grandes obstáculos para cumprir fielmente suas tarefas (urbanização, iluminação pública, limpeza urbana, condições sanitárias, maus costumes, mediação de conflitos e problemas com os escravos, enfim, praticamente tudo) era a presença massiva de escravos. Com setores que oscilavam entre um e dois terços da população geral, os escravos representavam uma ameaça pronta a explodir, como já havia ocorrido na Ilha de Santo Domingo (Haiti). Sem os escravos, a economia não poderia florescer, mas, com eles, os senhores estavam obrigados a conviver com o medo diário de que as vítimas se transformassem em carrascos da noite para o dia⁵⁸.

    Os escravos eram um problema não só pela potencial ameaça física a seus donos, mas também pelo prejuízo econômico que poderiam causar se parassem de trabalhar. Também obstaculizavam a pretensão de atrair empresas e investimentos estrangeiros para um território com tantos problemas de doenças e epidemias, revoltas, roubos e violência que eram atribuídos a eles.

    O Intendente Viana acreditava que o açoite era a forma encontrada para mantê-los sob controle, mas, ao mesmo tempo, temia que o exagero na aplicação de tal medida pudesse causar um efeito contrário e provocar revoltas ou convulsões sociais. Quando os negros cometiam algum crime, seus donos mandavam açoitá-los em praça pública. Pequenos furtos e porte de armas, como navalhas, eram reprimidos de forma severa. Um escravo recebia de duzentos a trezentos açoites por ser encontrado com navalhas ou lutando capoeira ⁵⁹. Se encontrassem um negro assoviando no ritmo da capoeira, ou com faixas amarelas e vermelhas (símbolo dos capoeiristas), ou com instrumentos musicais usados na capoeira, já era suficiente para prendê-lo e açoitá-lo. A capoeira era fortemente reprimida por se tratar de um ato contrário aos costumes predominantes e por estar ligada às constantes brigas e violências entre os praticantes de grupos rivais.

    Os principais instrumentos de violência contra os escravos eram de quatro categorias: imobilização, para capturar ou conter; restritivos, para evitar que comessem cana de açúcar, rapadura ou pedras preciosas; investigadores, para obter confissões; marcadores, para revelar, fisicamente, se era escravo fugitivo ou criminoso. Mas os açoites eram amplamente os mais usados, tanto que o instrumento de trabalho dos guardas reais, ao contrário do tradicional sabre militar, era uma chibata com cabo reforçado que podia ser usada também como cassetete.

    A maioria dos presos eram escravos ou negros libertos, e a principal razão de seu aprisionamento estava quase sempre relacionada com sua presença suspeita nas ruas quando não estavam trabalhando. Havia também presos por furto, outros qualificados de agressivos, porque atiravam pedras nos brancos, outros porque brigavam entre si⁶⁰.

    Os negros representavam para a elite dominante o medo de uma possível revolta; a vergonha diante dos europeus, pela manutenção da escravatura quando essa começou a ser condenada no outro continente; mas também a sobrevivência do sistema que mantinha tal elite. Ou, como disse um Ministro da Justiça, o problema do controle dos escravos na cidade era que ‘esta propriedade não se guarda, anda pelas ruas’⁶¹.

    Assim, quando os escravos não estavam trabalhando, a elite queria esquecer que eles existiam, e a polícia administrava o conflito social, justificando a repressão aos negros como forma de manutenção da ordem e tranquilidade pública. Temendo revoltas em razão da aplicação de castigos excessivos e a repulsa de estrangeiros a tal barbaridade, a Intendência determinou que os açoites deviam ser dados pelos policiais em local fechado⁶². Quer dizer, a tortura começava a passar das mãos dos donos dos escravos para a força do poder público, mais concretamente, para a polícia. Isso funcionava nas cidades, pois no campo, os escravos eram punidos pelo feitor ou diretamente por seu dono, gerando as mais extremadas formas de violência contra os escravos ou quem caísse em suas mãos.

    Criada a Intendência, a Guarda Real de Polícia, réplica da força policial existente em Portugal, tinha um turno de trabalho integral, militar, com ampla autoridade para manter a ordem e perseguir criminosos.

    Subordinada à Intendência, a Guarda Real era mal vista por seus excessos e brutalidades, mas também elogiada pelo êxito (leia-se violência) na lida com negros e escravos e na manutenção da ordem na cidade. Aqueles que a aprovavam também contribuíam para sua subsistência. A autoridade vinha do Monarca, os recursos vinham de taxas e subvenções dos comerciantes locais e proprietários de terras⁶³.

    Os donos de escravos também apreciavam que a Guarda Real substituísse os capitães-do-mato, que eram os particulares responsáveis pela captura de escravos fugitivos, representando uma economia para os donos de escravos, assim como um maior controle nas mãos do Estado. O que se pode extrair dos estudos de Holloway, autor de Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, é que a Guarda Real passava a maior parte do seu tempo reprimindo os escravos e buscando os fugitivos⁶⁴.

    A regra para os policiais da Guarda Real era a brutalidade, principalmente quando estavam comandados pelo Major Miguel Nunes Vidigal, que, junto com sua equipe, escondia-se nas esquinas e de repente aparecia nas rodas de capoeira ou festas dos escravos e castigava a todos os presentes⁶⁵. A tortura era também o principal, senão único método de investigação⁶⁶, inclusive antes da investigação se tornar uma rotina para as polícias⁶⁷.

    Com o regresso de D. Joao I para Portugal e o começo da Regência brasileira, seu filho, o Príncipe Regente D. Pedro, devido as suas ideias liberais e à forte influência europeia, tratou de ditar algumas normas e regulamentos das práticas e dos procedimentos de aplicação da lei, o estabelecimento de garantias aos investigados ou processados e a introdução de preceitos liberais da Constituição Portuguesa.

    Essas iniciativas entraram em vigor com o novo superintendente da polícia, John Inácio da Cunha, que ordenou que os prisioneiros escravos fossem liberados sem castigo, a menos que houvesse condenação formal. Isso desgostou a seus subordinados, que pensaram que, sem os castigos, eles perderiam o controle sobre os negros, e provocou também a reação da comissão de segurança na Capital, que buscou apoio no Ministro da Guerra para tratar de reverter a proibição dos

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