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Perspectivas interdisciplinares sobre adolescência, socioeducação e direitos humanos
Perspectivas interdisciplinares sobre adolescência, socioeducação e direitos humanos
Perspectivas interdisciplinares sobre adolescência, socioeducação e direitos humanos
E-book329 páginas6 horas

Perspectivas interdisciplinares sobre adolescência, socioeducação e direitos humanos

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Sobre este e-book

Este livro é uma coletânea atual da realidade do campo socioeducativo, a partir de diversas perspectivas teóricas. Procura unir o olhar de pesquisadores de várias partes do país, todos de alguma maneira em contato com adolescentes em conflito com a lei, suas famílias e o atendimento a eles destinado — em privação de liberdade e em meio aberto. É um campo de muitos desafios para a afirmação de direitos humanos, demandando uma produção científica de qualidade, que procuramos oferecer.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de dez. de 2017
ISBN9788547312282
Perspectivas interdisciplinares sobre adolescência, socioeducação e direitos humanos

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    Perspectivas interdisciplinares sobre adolescência, socioeducação e direitos humanos - Maria Helena Zamora

    ordem.

    sumário

    Seção 1

    Políticas de proteção: gestão e promoção

    CAPÍTULO 1

    Gestão da Política Socioeducativa ao Adolescente em Conflito com a Lei

    Irandi Pereira e Maria do Rosario Corrêa de Salles Gomes (Universidade Anhanguera)

    CAPÍTULO 2

    Adolescência e Responsabilização Socioeducativa: Aspectos Históricos, Filosóficos e Éticos

    Maria Cláudia Lopes de Oliveira e Fernanda Pinheiro Rebouças Valente (UnB)

    CAPÍTULO 3

    Sistema de Garantia de Direitos: questões e perspectivas para uma Política Socioeducativa

    Elionaldo Fernandes Julião e Vivian de Oliveira (UFF)

    CAPÍTULO 4

    A Circunscrição Histórica das políticas de enfrentamento ao ato infracional e a crítica ao presente

    Flavia Silveira Lemos (UFPA) e Pedro Paulo Bicalho (UFRJ)

    CAPÍTULO 5

    Práticas de culpabilização e punição das famílias de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas

    Fernanda Cavalcanti de Medeiros e Ilana Lemos de Paiva (UFRN)

    CAPÍTULO 6

    O fazer socioeducativo: trabalhando com os agentes

    Hebe Signorini Gonçalves, Graziela Contessoto Sereno e Leandro de Oliveira Abreo (UFRJ)

    CAPÍTULO 7

    Os Adolescentes em Conflito com a Lei e a Escola: Falam os Educadores

    Maria Helena Zamora (PUC-Rio), Rachel Baptista (Unesa), Caroline Menezes, Julia Valdetaro e Carolina Fagundes (PUC-Rio)

    CAPÍTULO 8

    Adolescentes em Medidas Socioeducativas em Liberdade e o Direito à Educação Escolar: Um Estudo no Município do Rio de Janeiro

    Juliana Gomes e Cynthia Paes de Carvalho (PUC-Rio)

    CAPÍTULO 9

    Adolescentes negras em conflito com a lei e proteção social

    Antonio Carlos de Oliveira e Adriana Severo Rodrigues (PUC-Rio)

    Seção ESPECIAL

    A abordagem politransdimensional no trabalho com adolescentes em conflito com a Lei

    Margarete Aparecida Amorim e Gregorio Baremblitt (Instituto Félix Guattari - BH)

    ORGANIZADORAS

    AUTORES

    Seção 1

    Políticas de proteção: Gestão e promoção

    capítulo 1

    Gestão da Política Socioeducativa ao Adolescente em Conflito com a Lei

    Irandi Pereira

    Maria do Rosario Corrêa de Salles Gomes

    Introdução

    O tema da presente reflexão recai sobre a constituição da política pública socioeducativa para o adolescente em conflito com a lei, sob a ótica dos direitos humanos, segundo um enfoque que valoriza práticas inter e transdisciplinares, nesse campo específico de investigação.

    Por ‘adolescente em conflito com a lei’ compreende-se a pessoa na faixa etária entre 12 e 18 anos envolvida na prática de delito. A análise do conflito à lei considera as circunstâncias dessa prática a trajetória do adolescente no sistema de garantia de direitos (SGDCA), sua relação com os poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo) e interações nos âmbitos familiar, comunitário e, em particular, entre pares. E por ‘política socioeducativa’ consideram-se os elementos constitutivos de uma política pública mais ampla, e ainda incipiente, fundada no debate e na produção bibliográfica e técnica. Essa política coloca-se diante dos novos paradigmas da gramática de direitos, que tem indicado, de um lado, possibilidades de compreensão do fenômeno adolescência, violência e conflitualidade e, de outro, mecanismos jurídicos e sociais que permitam a responsabilização diante do conflito com a lei.

    A reflexão que se apresenta é fruto de estudos e práticas sobre modelos de gestão da política socioeducativa ao adolescente no cumprimento de medida judicial de privação e restrição de liberdade, desenvolvidos nas atividades docentes e de pesquisa do Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei (stricto sensu) da Universidade Unian de São Paulo bem como outros processos de formação continuada e supervisão técnica voltados aos educadores sociais e gestores do campo socioeducativo. Parte das ideias aqui trazidas foi apresentada pelas autoras no I Congresso Internacional de Política Social e Serviço Social: Desafios contemporâneos, em 2015, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná.

    O recorte da presente reflexão toma o sistema nacional de atendimento socioeducativo brasileiro, fundado a partir de 1988 (Constituição da República Federativa do Brasil). O advento dessa Constituição dá lugar a um novo paradigma de atenção ao grupo etário correspondente a crianças e adolescentes no conjunto da legislação, em especial, na legislação específica, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990). O ECA adota a doutrina da proteção integral, doutrina essa que incorre para um olhar e um trato diferenciados de outros tempos no país, em que vigorava um paradigma marcado pelos princípios da doutrina da situação irregular. Em lugar dos menores, classificados como carentes, abandonados, delinquentes e objetos de intervenção do Estado, o novo paradigma trata de crianças e adolescentes, sujeitos de direitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e que constituem prioridade absoluta do Estado, Sociedade e Família. Na especificidade do tema abordado, o adolescente em conflito com a lei, a Lei Federal nº 12.594/2012 regulamenta a gestão do atendimento daquele a quem, após o devido processo legal, é passível de aplicação de uma das medidas socioeducativas.

    O novo modelo de gestão do sistema nacional de atendimento ao adolescente em conflito com a lei, a partir de 2012, tem como uma das características a multidimensionalidade, ao abarcar a inter-relação entre os sistemas de políticas públicas setoriais e as tensões da gestão compartilhada que distribui responsabilidades e competências federativas entre a União, os Estados e os Municípios. Outra característica do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente é a interinstitucionalidade, compreendendo a Justiça, o Legislativo, o Executivo e os Conselhos transversais (Direitos Humanos e Direitos da Criança e do Adolescente), Conselho Tutelar e conselhos das políticas setoriais (Educação, Saúde, Assistência Social, entre outros). No que se refere à interdisciplinaridade, esta é representada pelo desafio de construção e reconstrução de conhecimento na atenção direta e integral de gestores, equipes técnicas e educadores sociais no chão do sistema público de atendimento.

    De modo geral, a gestão do sistema compartilhado entre as três instâncias da administração pública tem o seguinte desenho: à União cabe normatização, cofinanciamento, coordenação e apoio, considerando que a política está vinculada à Presidência da República, na Secretaria de Direitos Humanos; aos Estados, normatização, cofinanciamento, apoio aos municípios e atendimento direto ao adolescente em medida de privação de liberdade (internação, semiliberdade e internação provisória). Nesse nível, a política está vinculada às pastas de Justiça e Cidadania, Assistência Social, Educação e outras; e, aos Municípios, cabe normatização, cofinanciamento e apoio às organizações da sociedade civil, atendimento direto ao adolescente em medida de restrição de liberdade (prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida) e a política vincula-se à pasta da Assistência Social, por meio dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas).

    Em síntese, o recorte do objeto da presente reflexão é a política socioeducativa, que se refere ao adolescente entre 12 a 18 anos incompletos e a quem se atribui a autoria de ato infracional, após devido processo legal e, por ato infracional, a conduta equivalente a que é descrita como crime ou contravenção penal (Brasil, ECA, 1990). As medidas têm caráter restritivo de liberdade – prestação de serviços à comunidade (PSC) e liberdade assistida (LA) – e privativo de liberdade – semiliberdade (SL) e internação (I) –, além de outras, de acordo com o ECA.

    Na aplicação de uma medida socioeducativa é preciso considerar critérios como a capacidade do adolescente em cumprir a medida prevista, levando-se em conta o princípio da dignidade humana e o respeito à sua condição peculiar como pessoa em desenvolvimento, a brevidade de tempo para o cumprimento da medida, a natureza dos regimes de atendimento, o caráter de responsabilização e de não punição do envolvido nos espaços dos programas socioeducativos (Brasil, ECA, 1990).

    A reflexão exposta aqui pretende, de um lado, compartilhar com outros pesquisadores em uma tessitura em rede o debate sobre os elementos constitutivos da gestão pública socioeducativa, numa (re)significação entre passado, presente e futuro. Espera-se que o debate propicie um novo olhar e trato ao adolescente em conflito com a lei, sob a gramática dos direitos humanos e, desse modo, contribuir para a constituição de um novo campo investigativo.

    Contexto teórico e legislativo sobre o tema

    Os diferentes e complexos contextos – compreensão do fenômeno, julgamento do fato, aplicação de decisão legal, encaminhamento do envolvido ao sistema de atendimento, concepção e política de direitos humanos, elaboração e execução de planos decenais de gestão da política socioeducativa, projetos políticos-pedagógicos, planos individuais de atendimento (PIA), avaliação e monitoramento das ações, articulação em rede interinstitucional e intersetorial – indicam, pois, o constante aprofundamento de diferentes bases teóricas e técnicas no manejo do conhecimento e técnicas científicas na atenção do adolescente em conflito com a lei:

    O debate sobre a constituição¹ de uma política socioeducativa no Brasil vem-se intensificando a partir da adoção da doutrina da proteção integral no conjunto da legislação referente aos direitos da criança e do adolescente dos anos 1980 e vários são os autores e pesquisadores que lidam com a questão da adolescência e conflitualidade. Cada um, pela singularidade na compreensão do tema-problema e filiação a um determinado campo de estudo, tem buscado também contribuir para a composição de um campo socioeducativo, uns mais ligados à teoria e, outros, de modo mais propositivo, numa aproximação da teoria à prática (Pereira; Zamora; Alapanian, 2014, p. 100).

    Segundo Carrano (2002), a maneira mais simplista de uma sociedade definir o que é um jovem [e adolescente] é estabelecer critérios para situá-lo numa determinada faixa de idade; contudo, as idades não possuem caráter universal e a própria noção de infância, juventude e vida adulta é resultante da história e varia segundo as formações humanas. Nesse sentido, as políticas públicas de atenção a esse grupo deveriam partir do reconhecimento da existência de muitas adolescências, o que permitiria uma melhor caracterização dos diferentes âmbitos das experiências, suas amplitudes, limitações e desafios socioculturais que se apresentam para a definição das políticas sociais (apud Pereira, 2004, p. 25-26).

    Cabe dizer que os conceitos de adolescência e juventude e o limite entre as idades são variáveis entre os diversos países; contudo parte considerável deles segue os referenciais dos tratados internacionais instituídos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em relação aos seus países-membros. No caso da idade mínima de responsabilização penal, tais documentos apresentam as seguintes definições: jovem é toda a criança ou adolescente que, de acordo com o sistema jurídico respectivo, pode responder por uma infração de forma diferente do adulto (ONU, Regras de Beijing, 1985); e, em outra fonte, entende-se por jovem uma pessoa de idade inferior a 18 anos (ONU, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, 1990).

    No Brasil há diferentes distinções na legislação sobre idade mínima: adolescente é a pessoa na faixa etária de 12 a 18 anos; a idade mínima de responsabilização penal dá-se aos 18 anos completos; para determinados atos da vida civil, as idades também variam muito, por exemplo: o direito ao voto não obrigatório começa aos 16 anos, entretanto, para ser votado a cargo eletivo público, somente após os 18 anos, com diferenciação para os cargos vereador, deputado, governador, senador, presidente; para portar carteira de habilitação devem aguardar os 18 anos, mas para a entrada no mercado de trabalho (regular e formal), só precisa alcançar os 16 anos de idade.

    As diversas ideias e/ou concepções construídas sobre a adolescência, em especial, no que se refere aos limites de idade, oferecem limitações e desafios socioculturais e econômicos que têm dificultado o foco, a abrangência e a cobertura na definição das políticas sociais. Spósito (1997), em um estudo sobre juventude e educação, recorta a produção da pós-graduação (dissertações e teses) sobre o tema no período de 1980-1995, e mostra que:

    […] o Brasil compartilha com o conjunto dos países latino-americanos os dilemas das grandes desigualdades sociais e de uma tênue e instável experiência democrática" que incidem em não usufruto ou garantia real de políticas públicas que asseguram direitos básicos contemplados pela modernidade (apud Pereira, 2004, p. 25).

    Uma referência para a compreensão da adolescência nas sociedades complexas pode ser ancorada em Melucci (1997). O estudo considera a noção de tempo, no âmbito da cultura e da ação juvenil, assim como as dimensões conflito e movimento social. Defende que

    a adolescência é a idade na vida em que começa a enfrentar o tempo como uma dimensão significativa e contraditória da identidade [...] ideia elementar e suficiente para ilustrar o entrelaçamento de planos temporais e a importância da dimensão do tempo nessa fase da vida (Melucci, 1997, p. 5).

    Afinal, quem são os adolescentes em conflito com a lei em cumprimento de medidas socioeducativas no Brasil? Importante salientar que adolescentes e jovens não apenas são autores de delitos, mas, sobretudo vítimas de violência. Um dos indicadores que chama nossa atenção quando se trata dessa faixa etária é a proporção dos que são mortos por homicídios, que tem sido muito superior à da população não jovem. Segundo Waiselfisz (2004), a morte por causas externas (acidentes de trânsito, homicídios e suicídios) na população jovem era de 62%; e destas, 39,9% referiam-se a homicídios praticados contra essa população e, em relação à população não jovem, a taxa de óbitos era de 9,8%, e desses os homicídios representavam apenas 3,3% (apud SDH-PR / Conanda, 2006).

    Os adolescentes brasileiros de 12 a 18 anos incompletos totalizavam em 2013 21,1 milhões o que correspondia a 11% da população geral. Entre esse grupo de população predomina certa igualdade na proporção por sexo sendo 51,19% de homens e 48,81 de mulheres. No quesito raça/cor, 58,9% se autodeclararam negros (pretos e pardos); 40,4% se autodeclararam brancos e menos de 1% se declarou de outras raças – amarela ou indígena. Mais de 80% dessa população viviam em domicílios situados em áreas urbanas. Em 2013 cerca de um terço dos adolescentes de 15 a 17 anos ainda não haviam concluído o ensino fundamental e menos de 2% haviam concluído o ensino médio. Na faixa etária de 12 a 14 anos, que corresponde aos últimos anos do ensino fundamental, os dados mostraram que a maioria (93,3%) tinha o ensino fundamental incompleto e apenas 3,47% haviam completado esse nível de ensino (Brasil, Ipea, 2015).

    Segundo estimativas do Unicef Brasil, com bases em dados do levantamento Sinase (2012) e da PNAD/IBGE (2012), dos 21 milhões de adolescentes que vivem no Brasil, menos de meio por cento (0,013%) cometeu atos contra a vida, ou seja, cumpriam medidas socioeducativas de privação de liberdade por atos análogos a homicídio, latrocínio, estupro e lesão corporal, atos de maior gravidade tipificados na legislação brasileira (Brasil, Ipea, 2015).

    Os dados sobre o sistema nacional de atendimento socioeducativo sistematizados pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) indicavam que no ano-base 2011 existia um total de 107.617 adolescentes a quem se havia aplicado alguma medida judicial, sendo 19.595 em privação de liberdade e 88.022 em restrição de liberdade; desses, 86,91% eram do sexo masculino e 13,09%, do feminino (Brasil, SDH-PR, 2012)². No sistema privativo de liberdade, os adolescentes encontravam-se distribuídos espacialmente em aproximadamente 448 unidades em todo o território brasileiro, em condições físicas e estruturais muito aquém dos parâmetros definidos pela Resolução nº 119/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e Lei nº 12.594/2012.

    É importante destacar que a natureza jurídica das medidas socioeducativas apresenta três dimensões: uma sancionatória e restritiva de direitos; outra de responsabilização como apropriação ou compreensão sobre o ato praticado, seu significado pessoal e social, e a terceira, a garantia dos direitos sociais pela condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e sujeito de direitos (Brasil, ECA, 1990). Na aplicação de uma delas, o sistema de justiça deve considerar a capacidade do autor em cumpri-la, o respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, a brevidade de tempo para o cumprimento da medida, a natureza dos regimes de atendimento, o caráter social e educativo dos programas e/ou serviços de atendimentos, dentre outros.

    Deve-se salientar que o campo socioeducativo vem se convertendo em objeto de crescente interesse para a pesquisa. Tem sido objeto de interesse privilegiado os modos e as formas de inserção desse grupo etário em práticas delituosas; o papel das instituições de atendimento e da justiça na aplicação e execução das medidas socioeducativas; as metodologias de intervenção e práticas de atendimento; a violação de direitos presentes no interior do sistema de atendimento; as recorrentes fugas e rebeliões dos internos no sistema privativo de liberdade. Contudo, ainda são incipientes pesquisas que apresentem uma visão macro da política e do papel da incidência sobre a articulação entre os diferentes sistemas das políticas setoriais e socioeducativa.

    Nesse sentido, as pesquisas que vimos desenvolvendo na área da gestão dessa política tem adotado uma diversidade de abordagens metodológicas, entre as quais qualitativas, quantitativas, exploratórias, documentais, bibliográficas e experimentais. No caso do estudo em tela, a opção metodológica foi a pesquisa exploratória, considerando ainda o insuficiente debate sobre a relação entre as políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei e os elementos constitutivos da gestão dessa política pública, compartilhada entre os três âmbitos da administração, e ainda pela articulação público-privado na garantia de programas e/ou serviços, a relação democrática e participava em diferentes espaços de formulação, acompanhamento e controle da política.

    Uma importante dimensão do problema diz respeito ao modelo historicamente adotado no Brasil no campo da gestão das políticas sociais. Inscritas como dever do Estado somente em meados da década de 1930, o processo de implementação das políticas sociais setoriais (saúde, educação, assistência social, trabalho, dentre outras) foi pautado pela falta de articulação e complementaridade entre as instâncias federativas que compõem a República: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Apesar de o país adotar o formato republicano e federativo desde 1889, a autonomia entre o governo federal e os governos estaduais fazia-nos caminhar de forma desarticulada, resultando muitas vezes em superposição de iniciativas, dispersão de recursos orçamentários, insuficiência na cobertura de atenção às demandas sociais e, mais ainda, submetendo os municípios à suposta dependência da mediação estadual no alcance de recursos e apoio técnico, orçamentário e administrativo.

    A ruptura desse processo começa nos dispositivos da atual Constituição federal (1988), na qual os municípios são reconhecidos como entes federados e, pela primeira vez, ganham autonomia, dando início à transição de um modelo de federalismo centralizado para um modelo de federalismo cooperativo, baseado na passagem de um estado ditatorial para a redemocratização da base da sociedade, no qual os entes federados devem repartir atribuições, distribuir competências e responsabilidades. Todavia, cabe lembrar que o federalismo é um modelo sempre cambiante de relações intergovernamentais, sujeito a tensões e rupturas, segundo Monteiro Neto (2013, p. 12). Explica-se pelo fato de a autonomia de cada ente federado conviver com a necessidade da interdependência, na busca da mencionada complementaridade.

    A CF/88 leva ao processo de descentralização das políticas sociais, baseado na diretriz da gestão participativa e popular. Deve-se dar destaque à ampla reforma político-institucional trazida pela descentralização fiscal induzida pela atual Constituição, que provoca a transferência de recursos aos estados e municípios, somados ao poder de taxação a eles conferido. Todavia, não ocorreu um processo pactuado de redefinição de funções na área social lato sensu, dotado de capacidade de estabelecer minimamente um conjunto de atribuições desempenhadas pelas unidades de governo. Consequentemente, o processo de descentralização das políticas públicas sociais ocorre de forma heterogênea, apresentando variações no grau de descentralização tanto entre as políticas setoriais quanto na distribuição territorial desse processo, por dentro de cada política social (Arretche, 2000).

    O modo como esse amplo processo de descentralização vem ocorrendo, desde então, coloca em xeque o formato verticalizado de configuração das políticas sociais brasileiras historicamente delineado, caracterizado pela excessiva setorização, e em que cada qual se estruturou de forma assincrônica a uma articulação, quer seja entre os entes federados, quer seja entre as políticas públicas, para o alcance da efetiva intersetorialidade nas respostas complexas à questão social brasileira.

    Dessa forma, a perspectiva de superar esses modelos de gestão das políticas sociais, hoje considerados ineficazes, se soma à busca de uma nova estratégia, que dê conta de responder a dois importantes desafios: (a) a urgência de se buscar a unidade de ofertas, embasada por padrões comuns de cada política pública para todo o território nacional; e, (b) acoplar a esse sentido de unidade a diversidade territorial, que é a grande marca da extensão continental do país, marcado por múltiplas expressões da diversidade: geográfica, cultural, étnica, etária, populacional, socioeconômica, dentre outras.

    O resultado tem sido a implantação da gestão sistêmica como modelo técnico-político, ou seja, a construção de sistemas nacionais de caráter unificado, estruturados a partir da gestão compartilhada entre a União, os estados e os municípios. A título de exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi o precursor e inspirador na adoção do modelo sistêmico para a gestão de outras políticas sociais, tal qual o Sistema Único de Assistência Social (Suas), o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), Sistema Nacional de Segurança Pública (SNSP). Por sua vez, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) caracterizam-se como sistemas transversais, isto é, requisitam para sua organicidade a concorrência de outros sistemas – setoriais e institucionais. Portanto, são dotados de caráter interssistêmico, pelas relações intersetoriais e interinstitucionais necessárias para sua configuração (Gomes 2012).

    O Sinase representa, por sua vez, uma luta histórica para o alcance de um padrão comum e de qualidade nas ofertas dos programas, serviços, projetos que compõem a Política Socioeducativa, assentado nos princípios e gramática dos direitos humanos ao sujeito da Política: adolescentes e família. O alcance desse novo desenho, em construção há cerca de uma década, é pressionado por forte legado histórico que, de um lado, concentrou a execução de medidas na esfera estadual, centralizada nas capitais e nas grandes cidades; por outro lado, a ênfase no recurso à medida de internação ainda é um ponto frágil na consolidação de uma política de atendimento que priorize a execução de medidas em meio aberto, compatíveis com o direito à convivência familiar e comunitária e à excepcionalidade da aplicação da restrição de liberdade, conforme preconizado no ECA e demais marcos legais e normativos.

    No curso da consolidação do Sinase, ficou definido que a responsabilidade pela gestão e execução das medidas em meio aberto (restritivas de liberdade) é da municipalidade, com a possibilidade de parcerias com organizações da sociedade civil. O Sinase sugere uma relação público-privado atenta aos preceitos, princípios e diretrizes que priorizem a atenção integral ao adolescente e o superior interesse em sua dignidade humana. A gestão e execução das medidas privativas de liberdade competem à esfera estadual e pode-se dizer que o estágio atual dos sistemas socioeducativos estaduais e municipais exigem acompanhamento, avaliação e reorganização permanentes, tendo em vista a complexidade e dinâmica histórica do fenômeno adolescente autor de ato infracional.

    O diálogo federativo ainda se mantém como ponto a ser aprimorado. O princípio da incompletude institucional, fundamento da gestão da política de direitos à

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