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A discriminação dos transexuais e transgêneros: impasses e desafios no mercado de trabalho
A discriminação dos transexuais e transgêneros: impasses e desafios no mercado de trabalho
A discriminação dos transexuais e transgêneros: impasses e desafios no mercado de trabalho
E-book222 páginas2 horas

A discriminação dos transexuais e transgêneros: impasses e desafios no mercado de trabalho

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Sobre este e-book

A obra que leva o título "A discriminação dos transexuais e transgêneros: impasses e desafios no mercado de trabalho" envolve assunto importante e atual, aborda os mais diferentes aspectos de discriminação desses trabalhadores no âmbito do Direito do Trabalho.
A presente obra inicia efetuando uma análise de gênero, com seus entendimentos e identidade, desfazendo o gênero da concepção tradicional e abordando o tema da despatologização da transexualidade.
Posteriormente, analisa a questão do direito que todos têm à identidade de gênero, analisando a legislação internacional quanto à proteção do direito à igualdade e a não-discriminação e ainda a questão da modificação do nome e do estado sexual no registro civil, enfocando o papel dos Tribunais Superiores na luta pelos direitos dos transexuais e finalmente analisando com profundidade o problema da discriminação dos transgêneros e transexuais.
Evidencia, finalmente, os reflexos do direito à identidade de gênero no ambiente de trabalho, analisando todas as suas fases, desde a fase de formação do contrato de trabalho até a dispensa discriminatória, inclusive averiguando com precisão tema controvertido e complexo, que é o relativo ao uso de vestiários por transgêneros e transexuais, trazendo inúmeras considerações inovadoras e fundamentais.
Conclui apresentando finalização sobre os temas abordados e apresentando soluções que entende cabíveis e que certamente devem ser objeto de reflexão por todos nós.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de jan. de 2022
ISBN9786525216546
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    A discriminação dos transexuais e transgêneros - Júlia Mendes

    1 GÊNERO: ENTENDIMENTOS E IDENTIDADES

    "Não quero o gênero feminino que me foi atribuído. Tampouco quero o gênero masculino que a medicina transexual me promete e que o Estado acabará me outorgando se eu bem me comportar".³

    1.1 TRANSEXUALIDADE: DEFININDO CONCEITOS

    Antes de adentrar o universo trans, é de suma importância definir alguns conceitos que serão trabalhados ao longo deste livro. Um deles é o significado de identidade. Isto porque, diariamente, os indivíduos se deparam com algumas indagações, tais como: Quem é você? Do que gosta? De onde veio? ⁴ E tudo isto faz parte da construção de sua identidade, de como se identifica em relação a vários aspectos e de que forma pode ser explicado para outras pessoas.⁵

    De acordo com Colling, a composição biológica dos corpos acaba interferindo na construção das identidades. Partindo dessa perspectiva, uma pessoa com a pele clara não se identificaria como negra e, consequentemente, não estaria à mercê de uma série de preconceitos de ordem racial que atingem as pessoas negras dentro de uma sociedade com resquícios racistas. Isto demonstra que, ao se trabalhar com identidades, também se está dialogando com uma perspectiva cultural, tendo em vista que existe uma atribuição positiva para determinados corpos em detrimento de outros. De um ponto de vista mais profundo, é possível perceber que esta construção guarda uma íntima relação com processos históricos, políticos e econômicos que contribuíram para a construção das identidades.

    O autor Hall, importante pensador a respeito da construção das identidades, possui o seguinte entendimento sobre o termo:

    Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós (...) Isto é, as identidades são posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora sabendo sempre que elas são representações, que a representação é sempre construída ao longo de uma falta, ao longo de uma divisão a partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas – idênticas – aos processos de sujeito que são nelas investidos.

    Conforme a citação de Hall, as pessoas seriam interpeladas para assumir determinadas posições identitárias, até mesmo no modo de pensar e se expressar. Este processo de construção identitária ocorre utilizando discursos, palavras e práticas que já estão à nossa disposição. Contudo, essas práticas discursivas sofrem modificações ao longo do tempo. Portanto, as identidades não poderiam ser pensadas como fixas/eternas, mas como como algo em constante evolução. Por fim, também é possível observar na citação acima, que o contexto identitário é formulado a partir da existência do outro, da alteridade, daquilo que é diferente. Neste compasso, para a identificação como homem, é necessária, de contraponto, a existência da mulher. Para a identificação como heterossexual, é preciso que exista o homossexual. Desta forma, este outro, que na maioria das vezes é alvo de estigmatização, é também uma peça importante para a construção do texto identitário.

    É nesta vertente que Silva defende que a identidade não é uma essência, não é um dado ou fato – seja da natureza, seja da cultura. Não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. Tampouco é homogênea, definitiva e acabada.⁹ De acordo com o autor, a identidade é uma construção, uma relação ou um ato performativo, pois estaria ligada a sistemas de representação, bem como intimamente conectada com relações de poder.¹⁰

    Com essa breve explanação a respeito da identidade, é necessário também adentrar ao conceito de gênero. De acordo com Preciado, este termo pertenceria ao discurso biotecnológico. Isto porque, em razão da rigidez do sexo do século XIX, o psicólogo infantil John Money, que era incumbido do tratamento de bebês intersexuais, vai se opor à plasticidade tecnológica do gênero. Neste contexto, John Money utiliza, em 1947, pela primeira vez a noção de gênero, desenvolvendo-a mais tarde com Anke Ehrhardt e Joan e John Hampson, com o escopo de demonstrar a possibilidade de modificar hormonal e cirurgicamente o sexo dos bebês nascidos com órgãos genitais e/ou cromossomos que a medicina não conseguia distinguir entre feminino ou masculino.¹¹

    No entanto, foi no interior do feminismo que a categoria gênero passou a ser pensada de outra forma.¹² Nas palavras de Colling, Gênero, para o feminismo, não é ideologia, mas uma categoria de análise útil para identificar e denunciar as relações e assimetrias entre os gêneros, entre homens e mulheres,¹³ ou seja, como uma forma de apontar as diferenças e hierarquias entre homens e mulheres, bem como para desnaturalizar os próprios gêneros das pessoas.

    Algumas feministas anglo-saxãs passaram a distinguir gênero de sexo, como foi o caso de Scott. A autora, assim como outras teóricas, também considerava que as relações entre os sexos são construídas socialmente. Contudo, para a autora, essa constatação ainda não era capaz de explicar como e por que as relações eram construídas dessa forma, privilegiando o sujeito masculino em detrimento do feminino.¹⁴ Assim, para se explicar, Scott faz uma articulação entre a noção de construção social com poder, constatando que gênero:

    Tem duas partes e diversas subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e mais, o gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder.¹⁵

    Para Jesus, gênero seria a forma com que as pessoas identificam umas às outras e se identificam como sendo homens ou mulheres. A autora salienta que, em termos de gênero, qualquer ser humano pode ser enquadrado, com todas as limitações comuns a qualquer classificação, como transgênero ou cisgênero. No caso dos Cisgêneros, seriam as pessoas que se identificam com o gênero ao qual foi atribuído no nascimento. Já as não-cisgêneros são aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi determinado, como é o caso dos transgêneros, ou trans.¹⁶

    A Organização das Nações Unidas, em nota informativa a respeito das pessoas transgêneros, conceitua a identidade de gênero da seguinte forma:

    A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento. Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero, dois-espíritos, travesti. Identidade de gênero é diferente de orientação sexual (...)".¹⁷

    A orientação sexual já é referente à atração afetiva por alguém de algum outro gênero. Destaca-se que sexo e orientação sexual não estão interligados, portanto, nem todo homem e mulher são naturalmente heterossexuais. Jesus ressalta que o sexo teria caráter biológico, enquanto o gênero é construído socialmente por meio das diferentes culturas em que o indivíduo está inserido. No entanto, a definição entre ser homem e mulher vem da percepção que cada indivíduo possui de si próprio, bem como da forma que esse sujeito se expressará socialmente.¹⁸

    Algumas pessoas cruzam de uma forma mais intensa as normas de gênero, tais como: as transexuais e as transgêneros. Colling ressalta que é extremamente difícil definir ou distinguir travestis, transexuais e pessoas trans, tendo em vista que se estaria tentando definir identidades. Neste ponto, ressalta-se que cada identidade é composta por uma grande quantidade de características que nunca deixam de ser criadas e recriadas. Neste contexto, seria arriscado tentar criar categorias tão rígidas do que é ser uma ou um transexual de verdade, o que, por exemplo, é feito por meio de alguns discursos médicos em relação ao tema,¹⁹ em suas palavras:

    Sempre que estamos falando de identidades, o fundamental é respeitar o modo como as pessoas desejam ser identificadas. Ou seja, as pessoas que se identificam como transexuais possuem diferenças em relação às travestis. E essas diferenças não podem ser reduzidas a ter ou querer ter determinado órgão sexual. Existem modos de ser travesti e modos de ser transexual que irão fazer com que as pessoas se identifiquem ou não com essas identidades.²⁰

    Compactuando com este pensamento, Pamplona e Diniz também entendem que seja inviável e errôneo pensar a transexualidade em termos universais. No entanto, de forma abreviada (e como trataremos na presente obra), o sujeito transexual será compreendido como aquele que não reconhece o sexo biológico que lhe foi atribuído no momento do nascimento. Essas pessoas se sentem inseridas dentro de um corpo estranho, distinto daquele que considera que realmente pertence ao seu gênero. Desta forma, está presente um conflito com as normatizações e regulações de gênero.²¹

    A palavra transexualismo, para Mary Del Priori, é recente e estaria ligada às tentativas de agir sobre o corpo para modificá-lo. A partir do livro O fenômeno transexual, do médico alemão Henry Benjamim, o conceito começou a se impor e fazer a distinção clínica entre Transexualismo e travestismo. Enquanto o primeiro trata de um problema de identidade, o segundo seria um prazer particular, de se vestir com roupas de outro sexo.²²

    Para Colling, os transgêneros também são considerados como um desafio quando se trata de definição. A terminologia é utilizada de forma genérica ao se referir a todas as pessoas que, de alguma forma, transitam entre os gêneros mais conhecidos (feminino e masculino). Neste compasso, é como se em determinados dias, eles quisessem se apresentar tanto na forma de vestir, como de se comportar, com elementos marcados como femininos e, em outros dias, como masculinos. Não somente isso, os transgêneros também não desejariam necessariamente o gênero que é tido pela sociedade como oposto ao seu, sendo que este referido desejo aparece expressamente no caso dos transexuais, por exemplo. Neste contexto, é como se essas pessoas não se identificassem com os gêneros que a sociedade definiu de forma dicotômica, as identidades masculinas e femininas.²³

    Jesus também entende que transgênero seria uma espécie de conceito guarda-chuva, na medida em que abrangeria os diversos grupos diversificados de pessoas, referidos grupos que não se identificam com as normas de gêneros. Neste viés, esses indivíduos rejeitam o padrão determinado socialmente atinente a comportamentos ou papeis esperados e atribuídos pela classificação sexo/gênero, que é definida quando do seu nascimento.²⁴

    1.2 O SURGIMENTO DO SISTEMA SEXO-GÊNERO AO LONGO DA HISTÓRIA

    É importante entender como o binômio sexo-gênero foi estruturado na sociedade, já que o gênero ocupou e ainda ocupa um papel muito importante quando tratamos de categorias relacionados ao poder e controle social. Dentro desta hierarquia construída, existem grupos considerados como subalternos - tais como os transgêneros - que porventura acabam filtrando este sentimento de inferioridade. Neste contexto, os grupos tidos como dominantes, (hetero/cis), acabam ocupando posições privilegiadas no contexto social, enquanto os demais ficam à margem da sociedade, em posições descartáveis e supérfluas.

    É relevante esclarecer o fato de que não existe expressamente nada que exclua aquele que não se adequa ao padrão binário de gênero dito como desejável, muito pelo contrário. A Constituição Federal, em seu bojo, esclarece que as diferenças devem ser respeitadas, rechaçando qualquer espécie de discriminação atrelada ao sexo, raça, etnia, entre outros. Entretanto, é perceptível que o anormal, ou seja, aquilo que foge desse binarismo, ainda encontra uma carga de estigmatização no seio social, não sendo possível atualmente fechar os olhos diante de tal evidência.

    Nesse compasso, a sexualidade se faz presente como um divisor de águas no que diz respeito à anormalidade ou normalidade de um indivíduo, inclusive em relação as suas ocupações/posições na sociedade. Mas nem sempre foi assim. Basta ilustrar com a história de um alto funcionário do Rei Luiz XV, denominado de Eon de Beaumont. Durante 49 anos, acreditou-se que ele era uma mulher, e que muitas vezes se vestia de homem. No entanto, mesmo com sua maneira diferente de vestir, Beaumont não perdeu o cargo, embora a dúvida sobre o seu sexo pairasse perante a sociedade francesa. Isso demonstra que a leitura do feminino e masculino naquela época não estava condicionada à genitália. Não havia uma moral assentada em uma predeterminação natural das condutas dos indivíduos.²⁵

    Na Grécia antiga, a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo também era vista como algo anormal. Para os gregos, essas relações eram naturais e até mesmo exaltadas. No entanto, séculos após, o cristianismo veio associar a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo ao pecado, à queda, à morte. Isto porque, em sua concepção, somente era aceito o casamento monogâmico e, no interior dessa conjugalidade, o ato sexual apenas teria como exclusiva finalidade a procriação²⁶.

    Para Ferrão, o dualismo heterossexualidade/LGBT é um fenômeno socialmente construído com fortes influências do cristianismo. Neste contexto, os atos de gays, lésbicas e bissexuais e das identidades transgêneras, seria considerado um desrespeito moral a disposições bíblicas. Verifica-se que, as primeiras construções do cristianismo sobre sexualidade detêm uma importante intervenção de filósofos estoicos do período, que colocavam o sexo como um empecilho à vida contemplativa; ou somente, o considerava aceitável se tivesse como finalidade a procriação. Portanto, a moral sexual cristã é historicamente condenatória para os indivíduos trans. Teólogos, como São Tomás de Aquino e Agostinho, escreveram tratados que consideravam legitima a relação sexual somente a realizada dentro do casamento para procriação, projetando sobre a sexualidade homoafetiva e as identidades de gênero o pecado contra a natureza, eis que estariam violando a ordem natural.²⁷

    Na concepção de Foucault, o cristianismo introduziu práticas de consciência nos indivíduos, ou seja, a ideia está atrelada a um corpo que precisa sofrer algumas sanções como tentativa de evitar uma ruptura dos padrões impostos. Essa dimensão cristã está vinculada a uma vontade de saber que, consequentemente, produz concepções de gênero. Portanto, é como se o tempo inteiro o corpo estivesse predisposto naturalmente ao pecado e, por isso, precisaria frear o desejo carnal a todo momento.²⁸ Corroborando, Interdonato e Queiroz, ressaltam que a ideia do sexo ligado ao pecado reduziu-o ao viés de reprodução humana, e a condenação do prazer sexual²⁹, a exemplo, cita-se o livro histórico Malleus Mafeficarum, o mesmo era utilizado como uma espécie de manual as pessoas divergentes, especialmente às mulheres, que

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