Dezenove cartas sobre judaísmo
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Dezenove cartas sobre judaísmo - Shimshon Raphael Hirsch
Dezenove Cartas Sobre Judaísmo
ISBN 978-85-7931-039-3
Traduzido do livro
The Nineteen Letters of Ben Uziel – © 1899 by Funk & Wagnalls Company
Versão Eletrônica
©2012 - Todos os direitos reservados à
EDITORA E LIVRARIA SÊFER LTDA.
Produção: LCT Informática Editorial
Versão Impressa
©2002 - Todos os direitos reservados à
EDITORA E LIVRARIA SÊFER LTDA.
Alameda Barros, 735
CEP 01232-001 — São Paulo - SP — Brasil
Tel. 11 3826-1366 Fax 11 3826-4508
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Em parceria com
OR ISRAEL COLLEGE
Rua Gen. Fernando V. C. Albuquerque, 1011
CEP 06711-020 – Granja Viana – Cotia - SP – Brasil
Tel.: 4612-2450
Tradução Auro del Giglio e Ricardo Metzner
Editoração Eletrônica Editora Sefer
Edição Final Jairo Fridlin e Betty Rojter
Projeto Gráfico e Capa Dagui Design
Agradecimento Especial Norma del Giglio
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio, sem a autorização expressa da Editora e Livraria Sêfer Ltda.
Prefácio dos Tradutores
Foi um privilégio trabalhar nesta obra excepcional do célebre rabino Shimshon Raphael Hirsch Z"L, a primeira a ser traduzida na íntegra para o português. Escrita originalmente em alemão, revela-se tão importante hoje quanto no século 19, quando foi publicada a primeira vez.
Em nome da fidelidade absoluta ao conteúdo, utilizamos duas traduções do alemão para o inglês – uma feita pelo rabino Bernard Drachman, em 1899, e a outra, pelo rabino Joseph Elias, em 1995. Comparamos também o texto em português ao original em alemão. Apesar da força do tema central, optamos por inserir algumas adaptações idiomáticas que, esperamos, ampliarão a compreensão das ideias expostas.
Com o mesmo objetivo, elaboramos uma introdução sobre a vida e a produção literária do autor. Fazem parte desta edição as notas explicativas do próprio rabino Hirsch (SRH), mais as notas da tradução norte-americana assinada pelo rabino Joseph Elias (JE), além das notas dos tradutores (NT). Cada carta também recebeu um título segundo sua característica mais marcante. Chegamos a estes títulos através de consultas a diferentes traduções para a língua inglesa.
A edição final coube ao professor Jairo Fridlin, que manteve intacto o espírito do texto ao imprimir um tom mais coloquial à linguagem. Seu objetivo, não por acaso o mesmo do autor, na época, foi o de incentivar o questionamento e o debate sobre os caminhos da religião entre os jovens. Porque este é um livro dedicado a eles.
Auro del Giglio
Ricardo Metzner
O Rabino Hirsch e seu Tempo
por Auro del Giglio
Shimshon (Samson) Raphael Hirsch 1808-1888)
O conflito religioso enfrentado hoje por tantos judeus afligiu um bom número de seus antepassados no século 19. As discussões são menos acirradas, e grande parte do antagonismo diluiu-se no tempo. Mas o conflito permanece. Com exceção dos ultra-ortodoxos, por um lado, e dos definitivamente reformistas, por outro lado, a verdade é que ainda não conseguimos conciliar os valores eternos que definem nossa identidade às manifestações do espírito liberal trazido pelo Iluminismo europeu há 200 anos. A fé inabalável em Deus e a preservação das tradições certamente dificultam a integração dos judeus religiosos às sociedades ocidentais que submeteram-se ao racionalismo e ao materialismo. O racionalismo produziu homens inebriados pela ilusão de poder conferida pelo desenvolvimento científico.
O tempo passou, escolas filosóficas saíram de moda, a humanidade vê-se frente a frente com a fragilidade da vida. É neste contexto, definido pelo excesso de incertezas e a escassez de convicções, que os judeus tentam mais uma vez resolver o antigo conflito e, quem sabe, apaziguar suas almas. A diferença é que hoje contamos com uma perspectiva histórica de 200 anos. É uma diferença importante.
O rabino Shimshon Raphael Hirsch Z"L oferece-nos uma brilhante alternativa para lidar com o desafio em questão: Torá im Dérech Érets
– a integração do modus vivendi ocidental à uma vida judaica tradicional, baseada na estrita observância da Torá. Os fundamentos deste conceito foram descritos e comentados pelo rabino Hirsch em duas de suas obras: Dezenove Cartas
e Horeb
. Em Dezenove Cartas
, ele nos brinda com as bases de seu pensamento filosófico de uma forma indiscutivelmente clara. Em Horeb
, nos oferece explicações racionais das práticas religiosas judaicas. O rabino Hirsch não apenas criou e aperfeiçoou o conceito de Torá im Dérech Érets
. Ele provou sua viabilidade na prática, através da congregação que formou em Frankfurt, dotada de uma sinagoga e de uma escola.
O Iluminismo e a Emancipação
A aplicação do raciocínio lógico a todas as áreas do conhecimento humano através de uma metodologia científica que garantisse a validade das conclusões obtidas foi a base do Iluminismo, movimento intelectual que floresceu na Europa nos séculos 17 e 18. O processo chegou também ao cristianismo, examinando-o à luz da razão. Ao Cisma, seguiu-se a Reforma liderada por Lutero, que deu origem ao protestantismo. Também nasceu da Reforma o que se convencionou chamar de religião natural
. Para os iluministas, a religião natural
tinha a razão como fundamento, apesar da crença em um Deus que seria uma espécie de arquiteto, ainda que distante do mundo que havia criado. A religião natural
falava na busca da virtude no homem e de poucas coisas mais. Não passava de uma coleção de deduções facilmente obtidas a partir da aplicação da razão.
O Iluminismo, ou Hascalá, como era chamado o movimento em hebraico, espalhou novidades também dentro da comunidade judaica na Alemanha do rabino Hirsch. O uso do alemão em substituição ao ídishe foi incentivado. O currículo de escolas judaicas passou a incluir disciplinas laicas. E cresceu o desinteresse pelo estudo do Talmud. Os iluministas judeus, ou Maskilim, trataram de buscar a cultura humanística contida nos textos de filosofia clássica, com o intuito de integrarem-se aos meios intelectuais gentios.
Mas não só o Iluminismo foi responsável pela confusão de valores e prioridades que caracterizou o judaísmo da época. A partir da metade do século 18, depois da Revolução Francesa, os judeus da Europa passaram a viver uma enorme mudança, em paralelo ao auge do movimento intelectual: a Emancipação. Direitos e deveres de cidadãos, até então negados, começaram a ser concedidos. Crescia a integração com a burguesia local, e tanto capitalistas quanto intelectuais judeus aproximavam-se cada vez mais dos gentios. Pouco a pouco, assimilavam suas regras de etiqueta e seu estilo de vida. Não é difícil imaginar que, a partir daí, esta parcela da coletividade quisesse apagar os traços de um passado que a havia segregado. Emancipados, donos do próprio nariz, os judeus que queriam sair do gueto – literal e figurativamente – não poupavam esforços. A tendência se fez sentir com grande intensidade nas comunidades alemãs. Foi delas, portanto, que partiram as reações mais significativas.
De um Extremo a Outro
As reações da comunidade em relação ao que estava acontecendo não obedeceram a nenhum padrão. Houve de tudo, desde a mais completa rejeição às mudanças até conversões voluntárias ao cristianismo como meio de integração total à grande sociedade. Entre os extremos, tomaram forma três novas vertentes do judaísmo: o reformismo, o conservadorismo, e a postura preconizada e adotada pelo rabino Hirsch, Torá im Dérech Érets
.
Os judeus ortodoxos, radicalmente contrários às influências do Iluminismo, também se fizeram ouvir. O rabino Chatam Sofer, que viveu na Alemanha de 1762 a 1839, homem de privilegiada erudição, profundo conhecedor do Talmud e da Cabalá, estava entre os que levantaram a voz. De sua Ieshivá em Pressburg, saíram rabinos que lideraram importantes congregações ortodoxas em toda a Europa. Porta-voz da comunidade junto às autoridades locais, o rabino Sofer não se cansava de repetir com veêmencia para seus estudantes e seguidores a expressão Chadash Assur min haTorá
, que pode ser traduzida como o novo é proibido pela Torá
. Deixava clara, assim, sua certeza de que qualquer inovação não permitida pela lei judaica (Halachá) seria perigosa e potencialmente prejudicial ao judaísmo. Ele também preconizava a utilização constante do código de leis judaicas — o Shulchán Aruch – como fonte essencial de consulta para os judeus ortodoxos, que deveriam seguir à risca todos os preceitos religiosos.
Diferente do que ocorreu na Europa Oriental, o rabino Sofer foi ouvido por poucos na Alemanha. Outros preferiram trilhar caminhos alternativos, como os fundadores do movimento Ciência do Judaísmo
(Wissenschaft des Judentums
), um grupo de intelectuais judeus assimilados à cultura alemã, entre eles Zunz, Geiger e Krochmal. O movimento, que viria a ser o sustentáculo ideológico do reformismo, basicamente utilizava uma abordagem científica para o estudo da história, cultura e religião judaicas. Em síntese, perscrutava o judaísmo através das mesmas lentes empregadas no estudo de civilizações desaparecidas e seus respectivos legados.
Segundo Rosenbloom, o rabino Hirsch teria sido influenciado pelo pensamento de Hegel da mesma forma que os adeptos da Ciência do Judaísmo
. De fato, se examinarmos os três princípios do movimento em relação ao estudo do judaísmo, poderemos perceber similaridades com a metodologia aplicada por Hirsch em suas obras, inclusive nas Dezenove Cartas
. Os princípios: o judaísmo não deveria mais ser estudado de modo fragmentado, mas sim como um todo
orgânico, compreendido de maneira ampla; o método científico de estudo teria por finalidade desvendar o judaísmo a partir de sua essência
, ou espírito
, e descrevê-lo sistematicamente, estabelecendo relações entre suas particularidades e o todo
; o propósito único do estudo seria o de promover a compreensão do tema, sem preconceitos nem preocupação com a natureza das descobertas, que poderiam ser favoráveis ou não aos olhos do investigador.
Novas Vertentes
Duas novas correntes religiosas judaicas surgiram e ganharam corpo na Alemanha do século 18 , ambas com raízes no iluminismo: o reformismo e, algum tempo depois, o conservadorismo. O reformismo pregava a legitimidade da mudança no judaísmo e a negação da validade eterna de qualquer formulação de crença judaica ou codificação da lei judaica
(Petuchowski J.J., Encyclopaedia Judaica). Aceitava incondicionalmente apenas o monoteísmo e as leis morais do judaísmo. Os demais mandamentos, a Torá e o Talmud passaram a ter questionada sua validade e compatibilidade com a época. Esta postura ficou clara nas palavras de Samuel Holdheim, líder reformista que viveu de 1806 a 1860: Na era rabínica, o Talmud estava correto. Em minha época, eu estou certo
. Em algumas congregações, a fase inicial e mais radical do reformismo trouxe consigo o não cumprimento de preceitos fundamentais do judaísmo, entre eles a observância do Shabat, das leis dietéticas (Cashrut), e a circuncisão. Mais tarde, extremismos como estes foram abandonados.
O conservadorismo, movimento liderado pelo rabino Zacarias Frankel, que viveu de 1801 a 1875, tinha uma cadência comparativamente mais amena. Seus adeptos apoiavam mudanças nos rituais e tradições desde que estivessem em consonância com o processo de evolução histórica.
Na prática, rejeitavam o radicalismo que marcou os primórdios do reformismo. Continuavam a rezar exclusivamente em hebraico, a circuncidar os meninos recém-nascidos, e a seguir a Cashrut. Por outro lado, discutiam a origem Divina do mundo e do homem, contrapondo esta crença até então inabalável às descobertas científicas. Questionavam também as obrigações de caráter religioso, ou Mitsvót, como são chamadas, buscando legitimá-las
a partir da razão. Divergindo tanto da ortodoxia quanto do reformismo, os judeus conservadores, no princípio, foram francamente hostilizados por ambos os grupos.
Enquanto o conservadorismo dava os primeiros passos, o movimento reformista atingia seu mais alto grau de popularidade até então. O ritual litúrgico em suas sinagogas foi modificado, aproximando-se daquele seguido nas igrejas protestantes da época. A música do órgão começou a fazer parte dos serviços. Foi criado um novo livro de rezas (Sidur), que continha preces em alemão e abolia todas as referências à esperança do retorno a Tsión (Israel) e à reconstrução do Templo de Jerusalém.
Assistia-se à tentativa de solidificação de um movimento que, em sua primeira infância, havia desafiado tradições e mandamentos milenares — justamente quando chegava às portas da sinagoga do rabino Hirsch. Uma resposta por parte da comunidade ortodoxa tornava-se imperativa. E Hirsch foi seu mais eloquente porta-voz.
O Rabino, o Autor
Nascido em 1808 em Hamburgo, Samson (Shimshon, em hebraico) Raphael Hirsch começou a estudar o Talmud com seu avô, Mendel Frankfurter. Hirsch definia seus pais como erleuchtet religios
, ou religiosos esclarecidos. Foi no seio desta família, que se opunha veementemente ao templo reformista inaugurado em 1828 em Hamburgo, valorizava a erudição judaica e, ao mesmo tempo, apreciava a cultura humanística laica, que Hirsch cresceu. Foi discípulo dos rabinos Isaac Bernays (1792–1849) e Jacob Ettlinger (1798–1871), ambos também portadores de diplomas universitários. Em 1929, Hirsch foi estudar na Universidade de Bonn. Elegeu línguas clássicas, história e filosofia. Data desta época sua amizade com Abraham Geiger, que mais tarde se tornaria um dos mais influentes líderes do movimento reformista alemão (posteriormente, Hirsch romperia a amizade). Aos 30 anos, foi convidado a assumir o cargo de Landesrabbiner (rabino-chefe)