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Viagens: Da Amazônia às Malvinas
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Viagens: Da Amazônia às Malvinas
E-book300 páginas3 horas

Viagens: Da Amazônia às Malvinas

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Sobre este e-book

"Viagens – da Amazônia às Malvinas" é a biografia itinerante de uma jovem idealista que encontrou lugares, pessoas e situações extraordinárias e inesperadas.

Ao trair sua promessa de silêncio biográfico, Beatriz Sarlo escreveu esses capítulos de uma aventura latino-americana.

Sarlo leva o leitor até tribos no coração da amazônia; ao altiplano boliviano para encontrar pinturas de santos em pequenas igrejas coloniais; às minas de Oruro; bailes em festas, batizados, boleias de caminhões e noites ao relento. Passa também pelo modernismo da capital Brasília, que tanto a fascinava.

Finalmente, quarenta anos depois, uma última viagem: às ilhas Malvinas. E antes de todas essas, as primordiais e definidoras viagens da infância, com seus mistérios e descobertas.

Autobiografia? Diário de viagem? Estudo sociológico-histórico? Sempre unindo, com rara sensibilidade, narrativa e análise cultural, Sarlo nos entrega um livro que escapa a qualquer classificação tradicional de gênero.

Em "Viagens", paisagem e intimidade se misturam através do filtro da memória para oferecer a autobiografia de uma jovem idealista e de um continente que ousava sonhar com o novo.

Segundo a autora:

"Eu acreditava, com ingenuidade, que minhas viagens por esses territórios me permitiam conhecer, em seu próprio teatro, os futuros sujeitos de uma revolução continental que julgava tão inevitável como próxima.

Não duvidava que era possível comunicar-me com etnias amazônicas ou mineiros bolivianos ou camponeses do altiplano, inclusive quando não falava suas línguas nem conhecia sua cultura.

Pensava que entre eles e eu, uma universitária, não houvesse um abismo cultural. E se esse abismo se manifestava, minha aposta era que a experiência direta era capaz de tapá-lo. Tinha uma confiança cega na experiência. Isso me permitiu um conhecimento que só décadas depois pude organizar numa narrativa."

É essa narrativa que chega agora ao leitor brasileiro, exclusivamente em formato digital, pela e-galáxia.
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento11 de mai. de 2015
ISBN9788584740499
Viagens: Da Amazônia às Malvinas

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    Viagens - Beatriz Sarlo

    Sumário

    A mudança repentina de programa

    A viagem original

    Santinhos na puna

    Descer à mina

    Entre os jíbaros

    Rumo ao futuro do passado

    Uma estrangeira nas ilhas

    As cadernetas perdidas

    A MUDANÇA REPENTINA DE PROGRAMA

    Subi até a igreja de São Leopoldo. Abaixo se estende Viena, visível mas brumosa. Não sei por que razão, em outubro de 1995, a São Leopoldo só abria nas tardes de sábado, durante algumas horas. Vinte pessoas esperavam do lado de fora, dispersas pela esplanada. Todas em silêncio. Quando as portas se abriram, a luz atravessava os vitrais de Kolo Moser, e toda a igreja tinha uma tonalidade aquática, ocre e púrpura. Sentei e recapitulei o trajeto: metrô e ônibus até o ponto na frente do hospital. Depois, a pé, 500 metros de subida.

    A igreja de São Leopoldo, desde que cheguei a Viena, havia se tornado minha obsessão. Faltavam vários dias para o sábado e percorri todos os edifícios de Otto Wagner: estações de metrô, prédios de apartamentos, pavilhões, bancos. Eu tinha um mapa com os edifícios modernistas e esse havia sido meu único itinerário. Já os conhecia de memória antes de chegar e então os observei como quem regressa, não como quem chega pela primeira vez. Em 1992, um livro, Viena fin-de-siècle, de Carl Schorske, havia me convertido em uma espécie de falsa especialista, que simulava bastante bem um saber sobre a cidade das primeiras décadas do século XX. Todas as manhãs ia à Michaelerplatz. Como se estivesse visitando Adolf Loos vivo, entrava na casa Loos, onde hoje funciona um banco, e que causou escândalo em 1911 quando foi construída. Sentava em uma poltroninha e fingia ser um cliente que espera sua vez enquanto lê o jornal ou escreve em sua agenda. Anos depois, repeti essa mesma visita ao banco com dois amigos; e também entrei com eles na Caixa Econômica Postal Austríaca, imponente e magnífica, de Otto Wagner.

    Simulava uma familiaridade tão convincente que a dona da pensão onde eu vivia me perguntou se todos os argentinos conheciam Viena com esse detalhismo. O caso pode ser registrado como extrema devoção ou, se preferirem, doença cosmopolita.

    No entanto, depois de quatro ou cinco dias, minha primeira viagem não estava completa porque faltava a São Leopoldo, a igreja no Steinhof. Em uma ficha de papelão, eu levava escrito o começo de um ensaio de Cacciari:

    Dois caminhos simétricos, nas encostas do bosque vienense, dão acesso à igreja de São Leopoldo. A igreja de Wagner, coroando o complexo do hospital para doentes mentais da cidade de Viena, surge da mata cerrada com sua resplandecente cúpula de cobre dourado. Ninguém poderia dizer o que essa obra antecipa, assim como seria difícil afirmar o que expressa.¹

    Ou seja, nessa tarde de sábado, seguindo Cacciari, eu fiquei absorta diante de uma obra que pedia justamente para não ser interpretada. Disposta a levar essa experiência até onde fosse possível, quase não escutei o guia, que descreveu a igreja e, sobretudo, os vitrais de Kolo Moser. Não tentei me defender do impacto, mas sim lhe obedecer: obedecer à força simétrica da arquitetura, à geometria do estilo Wagner. Olhei tudo com a atenção de quem sabe que está construindo sua recordação da São Leopoldo para sempre. Hoje comprovo, desiludida, que essa recordação são as fotografias e não aquelas primeiras imagens, fortes demais, da severa geometria de Wagner, que se nega à proximidade cortês do art déco. Mármore branco sustentado por tachões de cobre, e, sobre essas paredes de perfeita distância, a cúpula dourada.

    Quando a visita terminou, informaram que, em poucos minutos, a igreja ia fechar suas portas, até o próximo sábado, quando eu não estaria em Viena. Um acontecimento único em minha vida se cumpria para sempre: terminava. Fiquei do lado de fora, caminhando ao redor da igreja, com a cabeça levantada para não perder a cúpula que se cobria lentamente com uma película que anunciava o pôr do sol. Não me dei conta de que estava sozinha diante da São Leopoldo. Anoitecia. Comecei a descer em direção à saída. A tarde estava como que suspensa, sem vento, sem sons.

    De repente, escutei uns passos, no mesmo ritmo dos meus. Solas de madeira sobre o pavimento. Alguém me acompanhava e eu não me virei. Estávamos na metade do caminho entre a igreja e a rua. Não me apressei, o outro que me seguia também não. Assim íamos, separados por dois ou três metros, até que senti uma mão que me segurou o ombro por trás. Continuamos caminhando. Nesse momento lembrei que a São Leopoldo é a igreja de um hospital psiquiátrico. Ao me virar, vi um homem com uma bata azul, quase até o chão, e um lenço na cabeça. Quando me voltei, sua mão largou meu ombro. Não nos cumprimentamos. O homem tomou um caminho lateral. Eletrizada por esse contato, cheguei quase correndo às grades e alcancei a rua.

    Retornei à São Leopoldo dez anos depois, com aqueles dois amigos que também me acompanharam à casa Loos na Michaelerplatz. Apoiados nos mármores brancos, tiramos uma foto nossa. Enquanto subíamos até a São Leopoldo, eu lhes contei essa história intensa e, para sempre, enigmática.

    Viaja-se buscando essa intensidade da experiência, algo que surge de modo imprevisto e original, fora do programado e, portanto, impossível de ser integrado em uma série. É uma história que ainda não consegui compreender, porque, como a São Leopoldo, talvez não tenha nenhuma interpretação possível nem expresse nada. Não passa pelo discurso, mas sim pelo corpo. É inesperada e, no entanto, toda a tarde eu havia me preparado para um acontecimento que não sabia que podia ocorrer. Estava disponível não tanto diante das grinaldas geométricas de Otto Wagner e da detalhada disciplina do interior da São Leopoldo (coisas que conhecia, que havia visto em dezenas de fotos). Estava disponível para essa outra viagem brevíssima, duzentos ou trezentos metros com o som das solas de madeira perto de mim, com essa mão forte sobre meu ombro. Não era uma aventura, mas sim um acontecimento ou, melhor dizendo, dois acontecimentos de similar intensidade, embora de natureza muito diferente. Eu havia chegado a Viena para fazer uma espécie de performance do que sabia sobre a cidade. Atuava fingindo que reconhecia todas as coisas, que todas as coisas me eram familiares, porque antes as havia visto nos livros.

    Mas algo mudou repentinamente o programa. O que mudou o caminho que leva da igreja de São Leopoldo à saída do hospital foi o imprevisto desse internado que decidiu me seguir. Nunca saberei por quê. Talvez ele também não soubesse: o entardecer, minha abstração ensimesmada, sua loucura, a casualidade que traça os acontecimentos mais inesquecíveis.

    As viagens deste livro são mudanças repentinas de programa. Com o folheto que peguei no escritório de turismo vienense (Architektur, von fin de siècle bis heute), eu havia percorrido com uma exaustiva obsessão as obras de Adolph Loos e de Otto Wagner. À igreja de São Leopoldo cheguei depois desse caminho pelo centro e pelos bairros da cidade; ascendi a ela, nas palavras que expressam como me senti naquela tarde.

    Também foi uma mudança repentina de programa a projeção noturna, no Viennale,² do filme de Godard, Deux fois cinquante ans de cinéma français. Voltei para o meu quarto com a ideia de que podia esquecê-lo, justamente porque havia me impressionado tanto. Escrevi uma longa carta, que se perdeu. Eu a escrevi porque não tinha outro modo de sair desse filme sem temer que deixasse suas imagens, um tecido indestrinçável de citações, escapar. Estávamos em 1995, e não existiam tantos dispositivos externos de memória e de esquecimento. Lembro que fumava (ainda se podia fumar em qualquer lugar) e hesitava na tentativa, impossível como eu já sabia, de contar linearmente um filme de Godard.

    As melhores viagens incluem essas mudanças repentinas de programa. Cacciari escreveu sobre a São Leopoldo que talvez seja entendida quando se sai da igreja e se dá as costas para ela. É provável que durante muitos anos eu acreditasse que havia entendido essa viagem a Viena. Hoje acredito que seu ponto fundamental, o vértice que organizou aqueles dias enlouquecidos e extáticos, foi a experiência do louco no hospital de São Leopoldo. Nela estão resumidos os acontecimentos que, desde muito jovem, em todas as viagens, haviam me pegado de surpresa, de maneira quase sempre imposta e, às vezes, violenta. A mudança repentina de programa, intuí isso desde os vinte anos, é a própria essência da viagem: um choque que desorganiza o previsível, rompe o cálculo e, de repente, abre uma fenda por onde aparece o inesperado, inclusive o que nunca chegará a ser compreendido totalmente. Desordem e golpe do acaso.

    Mas a mudança repentina de programa deve ser respeitada em suas regras. Não procurar por ela jamais, porque se converte no mais vulgar dos exotismos. Deixar, simplesmente, que aconteça. E, depois, capturá-la e ser capturado, em uma dupla hélice envolvente. Aquela vez, na igreja de São Leopoldo, eu me distraí, não me dei conta de que estava entardecendo, que era outono, que já não se via a cidade ao longe. Sob o efeito da igreja de Otto Wagner, eu havia esquecido.

    Não é necessário ir até Viena a fim de ser arrastado para fora do programado. Às vezes, o acaso nos põe ao lado de quem não estávamos procurando nem pensávamos encontrar: Susan Sontag no cine Metro de Nova York, vendo, como eu, a projeção de Berlin Alexanderplatz, de Fassbinder. Não consegui pensar em nada para lhe dizer. A mudança repentina de programa era apenas isso: que nos encontrássemos na escuridão da sala, durante cinco horas. Uma prova de que as experiências inesquecíveis são feitas de matérias perfeitamente casuais, mas dispostas de um modo que as torna significativas, embora esse significado nem sempre possa ser explicado. O que queria dizer que Sontag e eu estivéssemos ali? Nada. E, no entanto, a experiência nua ficou como o inesperado, a casualidade incausada, o choque do que não se procura.

    Naquele 1985 eu havia chegado pela primeira vez a Nova York. Viveria ali alguns meses, a primeira vez tanto tempo longe de Buenos Aires, fora da América do Sul, em uma cidade mítica que eu desconhecia inteiramente. Sentada na sala do apartamento de Jean Franco, que havia me convidado a ir para a Universidade Columbia, na primeira tarde me comportei como uma perfeita argentina: autossuficiente e, consequentemente, nada cosmopolita. Ignorava tudo, mas pensava que tudo podia aprender em cinco minutos. Jean Franco me passou só uma instrução: que usasse a cidade a toda hora, sempre. Essa instrução foi o presente que me deu de Manhattan. Justamente era uma instrução sem programa: não incluía nenhuma proibição nem cautela. Saí da casa de Jean Franco com uma frase na cabeça. A que pronuncia um personagem de Balzac, olhando Paris: À nous deux maintenant. Agora, nós dois, frente a frente.

    Deixei Nova York, meses depois, conhecendo algo de Manhattan. Quase todas as tardes, segui os roteiros de um guia Michelin: dobrei as esquinas indicadas, rumei para o sul ou para o norte, desci em todas as estações de metrô, estudei os itinerários dos ônibus. Deixei de lado Midtown e fui para o norte e para baixo. Entrei em dezenas de bares. Comprei dezenas de entradas para os teatros do East Side e paguei dezenas de couverts artísticos nos clubes de jazz. Parava no balcão e começava a falar com quem estivesse ao meu lado. Durante muitas semanas estive completamente sozinha e isso ajudou. O viajante solitário não tem outro remédio que estar sempre em movimento, porque, caso se detenha, será assaltado pela solidão do estrangeiro, pelo desejo fugaz mas insistente de estar em um lugar mais familiar. A pulsão de voltar para um espaço próprio.

    Meu espaço estava primeiro nos mapas do guia Michelin. Conhecer esses mapas me deixava disponível para Nova York. Com eles, podia evitar uma mudança repentina de programa. Só quando conheci bem a cidade, pude começar a me perder (como, aliás, Walter Benjamin já ressaltou) e a me desviar, pôr meu corpo no lugar onde podia acontecer o que eu não esperava.

    Uma noite me dei conta de que Art Blakey, um baterista que já havia entrado para a grande história do jazz, estava ao meu lado no balcão do Bradley’s, na University Place nº 70, no Village. Naqueles anos, quando não havia internet e era difícil saber o que se encontraria na cidade de destino, em um voo para Nova York, por acaso, porque nenhuma companhia aérea oferece isso para os passageiros da classe econômica, consegui a New Yorker da semana e consultei a seção de música. Quem me acompanhava decidiu: Já sei aonde vamos amanhã à noite.³ Art Blakey tocava no Sweet Basil. Essa noite, enquanto eu estava na fila sobre a neve, enquanto a neve caía sobre meu casaco impermeável, um sujeito disse: Blakey, Blakey, só faço isso por você. Eu, estrangeira, não tinha tantas pretensões e haveria feito isso também por outros. Afinal, pudemos entrar no clube de jazz.

    Agora o suspense é desnecessário. Blakey morreu, mas, se alguém viajar para Nova York, saberá quem vai tocar em qualquer lugar apenas olhando as páginas da web. Antes da internet, eu chegava a uma cidade e corria para a banca de jornal a fim de procurar o Voice ou o City Paper de onde estivesse. Em pé em uma esquina, folheava como uma possessa o roteiro de espetáculos; inevitavelmente desapontada, percebia que havia chegado um dia depois e o melhor acontecera na noite anterior; mas descobria também que algo me esperava essa mesma noite. Procurava um telefone público para fazer uma reserva, dava com uma secretária eletrônica e deixava uma mensagem, ficava inquieta. Esperava até a noite e chegava ao local com uma breve informação do espetáculo (com sorte, um comentário ou um destaque da semana). Não suspeitava que, uma década depois, toda essa agitação fosse se dissolver na internet; as revistas, que antes eram compradas e depois obtidas de graça, agora estão na tela do meu computador, e posso montar um itinerário como se tivesse comprado um pacote turístico em uma agência especializada em freaks, fanáticos, melômanos e excêntricos. Não sinto saudade dessas décadas em que o acaso traçou as linhas inesperadas de uma relação suspensiva com as cidades estrangeiras, às quais eu chegava como a uma festa surpresa. Hoje, o mapa e a cidade real estão próximos. Agora espero justamente que, em algum lugar, manifeste-se um deslocamento, uma mudança repentina.

    Foi isso o que aconteceu àquela noite em que Blakey estava ao meu lado no balcão do Bradley’s, um bar onde geralmente havia apenas piano e baixo, eventualmente bateria. Mas essa noite debutava ali um trompetista muito jovem. Depois que o trompete expôs os primeiros compassos, Blakey, sem disfarçar nada, pediu a conta, pagou e foi embora. Ele não havia gostado. Muitas vezes voltei a pensar nessa noite e a tecer hipóteses sobre o ocorrido com quem me acompanhava. Imaginamos que haviam dito a Blakey que esse dia tocaria um novato que poderia lhe interessar para sua banda, The Messengers. Imaginamos que Blakey havia ido para comprovar se descobriria alguém ainda desconhecido. E que esse rapaz branco lhe parecera uma perda de tempo, não valia a pena ficar um minuto mais. Nunca esqueci o gesto depreciativo nem o tom de voz alto com que Blakey pediu a conta. Não quis que seu gesto passasse despercebido. Voltei a esse gesto também muitas vezes: o momento em que um desconhecido é fulminado por uma glória da música que está tocando. Esses momentos não podem ser procurados, ninguém pode prevê-los, nenhum itinerário poderia se comprometer em incluí-los. São a própria intensidade do tempo do viajante.

    Vinte anos antes dessa noite terrível para o trompetista, cheguei com um grupo a uma escola no sul da cordilheira dos Andes. Não estava indicada nos mapas que íamos seguindo para percorrer a pé o limite entre o Chile e a Argentina, mais ou menos na altura de Río Pico, na província de Chubut. De repente, em um vale verde-esmeralda, uma paisagem quase perfeita e convencional demais, recostada a um sopé, apareceu a escola, e em meio a um pátio de terra, bem cuidado, com canteiros de pedras e algumas flores, estava o mastro com a bandeira. Não procurávamos a escola, mas sim um lugar onde acampar. Nessa parte da cordilheira quase sempre é possível deixar nas mãos do destino onde se vai dormir cada noite.

    A professora tinha nossa mesma idade, mais de vinte e menos de vinte e cinco anos. Aproximou-se, com duas ou três crianças, vestidas com jaleco branco. Nós nos cumprimentamos, deixamos as mochilas sobre o pasto para que os cachorros as cheirassem e a seguimos até a cozinha-refeitório do edifício. Dali se via um pedaço do vale, cruzado, na diagonal, por uma trilha que subia. Tomamos mate, preparado com a técnica usual na Patagônia: a chaleira ferve sempre sobre o fogo e, com uma latinha de água fria, vai se regulando a temperatura; é mate amargo, muito quente, mas nunca aguado.

    A professora nos convidou para ficar e nós, que levávamos comida para vários dias, nos oferecemos para preparar o jantar. Enquanto comíamos, com o lampião pendurado sobre a mesa, ela nos contou que trabalhava nesse lugar havia dois anos e que, seguramente, antes da transferência para algum povoado, iam passar três ou quatro.

    Para as crianças éramos uma novidade tão inesperada quanto a escola para nós. Não se separavam desses desconhecidos. A professora nos contou que nunca haviam visto imagens dos objetos que muitas palavras que conheciam por escrito designavam: carro, por exemplo, ou trem. Algumas dormiam na escola, porque suas casas ficavam a mais de um dia de viagem.

    Na manhã seguinte, depois de dar umas voltas, engraxar nossas botinas e lavar um pouco de roupa, assistimos ao dia de aula. Ajudamos a preparar o almoço para umas quinze crianças e, à tarde, algumas nos levaram a um laguinho para pescar trutas. Com uma lata vazia de pêssegos em calda e vários metros de fio de náilon, as crianças montaram uma espécie de carretilha de pesca, engenhosa redução do mecanismo da carretilha ao seu conceito mais abstrato. Girava-se a chumbada sobre a cabeça até que tomava velocidade; ao soltá-la, afrouxava-se o fio que envolvia a lata e depois ele era rebobinado.

    Quando regressamos à escola, a professora nos sugeriu que ficássemos mais dois ou três dias. Não tínhamos grande pressa. Um de nós se pôs a ensaiar um coro com as crianças, e foi um entardecer musical imprevisto. Os outros fumavam deitados no pasto, tiravam fotos ou juntavam lenha. À noite, matamos uma galinha que íamos comer no dia seguinte; pendurada em um galho alto, para que os cachorros não a destroçassem, ficou ao relento. A professora tinha que amassar seu pão da semana, de modo que, até que não houve mais luz, estivemos ocupados. Tiramos do forno uns pães redondos e altos, com muito miolo e uma crosta vigorosa.

    O dia seguinte amanheceu nublado e ficamos na sala de aula. As crianças queriam continuar com o coro: Se equivocó la paloma…. Nicolás Guillén: de Cuba ao extremo sul da cordilheira argentina. Na sua escrivaninha, a professora nos mostrou recortes de revistas com ilustrações para que as crianças soubessem o que era um trem, um barco, um automóvel, uma máquina de lavar, uma televisão e um fogão a gás. Ali mesmo nos pediu que lhe mandássemos mais revistas. À tarde, as crianças fizeram fila no pátio, arriaram a bandeira e começaram a se despedir, porque era sexta-feira e voltavam para suas casas. Um dos pais chegou a cavalo, levou seus três filhos e nos deixou umas tiras de carne-seca e uma lata com morangos silvestres.

    Durante o ano, mandamos para a professora livros e algumas cartas. Um dia, um de nós (o que havia escrito seu endereço nos envelopes) recebeu a visita de uma comissão da polícia. Queriam saber quem éramos, porque um homem, desconhecido na região, havia passado pela escola, feito amizade com a professora e, não se sabe por quê, a havia ferido de morte com um tiro de espingarda. Nosso remetente nos envelopes era a única coisa que não encaixava na rotina dessa escola.

    O imprevisto surgiu de repente com a brutalidade do crime que conhecemos sem outra intermediação que a do policial. Foi uma mudança repentina de programa que atuou retrospectivamente e deu outro sentido a esses dias passados na cordilheira. A viagem se tornou vazia, desapareceram as recordações felizes (dessa felicidade inconsciente que se sente em alguns momentos, como se estivéssemos fora do mundo). A tragédia reorganizou os dias desse verão até convertê-los em uma experiência que eu já não desejava recordar. A tragédia a havia assaltado, desfazendo-a. Eu não podia continuar acreditando no que havia visto, porque o Mal estava ali, escondido para nós, uns caminhantes ingênuos e autocentrados. O que surgiu repentinamente de modo não programado talvez estivesse de tocaia desde o verão. Não soubemos ver algo que provavelmente podia ser descoberto: a insegurança em meio àquela paisagem agradável, toda verde e com campos de morangos, águas límpidas correndo entre as pedras: o reverso.

    Em Tristes trópicos, Lévi-Strauss define a viagem como deslocamento no espaço, no tempo e na hierarquia social.⁴ Depois que a professora da Patagônia morreu com um tiro de espingarda, eu não podia continuar fingindo que era só uma interessada no trekking e na paisagem. A violência havia me colocado no meu lugar, entre o privilégio e a distância. Fora do programa, o tiro de espingarda e sua vítima corrigiam minha recordação e contrapunham uma realidade rebelde ao pitoresco. Eu não havia visto nada. Retrospectivamente, a notícia desmentia minha reconstrução da paisagem idílica, com suas crianças escuras, pobres e discretas. Foi uma mudança repentina de programa que organizou a recordação para sempre. A violência demonstrava que nada restava a salvo e que em meio ao idílio rural está a morte. O louco do manicômio vienense, que me seguiu ao entardecer, fez com que a São Leopoldo fosse para mim não só a perfeição da arquitetura de Otto Wagner. O tiro de espingarda reorganizou as imagens de montanhas e rios transparentes.

    Nem sempre a mudança repentina é terrível ou espetacular. Muitas vezes é um reconhecimento inesperado, uma familiaridade impensada. Pode ser só um instante: na Sicília, ao sair de Noto, pequena cidade ápice

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