Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Peixe-elétrico #03: Sarlo
Peixe-elétrico #03: Sarlo
Peixe-elétrico #03: Sarlo
E-book228 páginas3 horas

Peixe-elétrico #03: Sarlo

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Nesta edição de Peixe-elétrico:

O romance de Barthes – BEATRIZ SARLO
Barthes, leitor de Loyola – BEATRIZ SARLO
Dois textos da ensaísta Beatriz Sarlo abrem a terceira edição da Peixe-elétrico. Duas formas inéditas e surpreendentes de enfrentar a obra daquele que foi sua principal referência intelectual: Roland Barthes.

A pele da cebola – JAVIER CERCAS
Como contar a verdade a respeito de uma mentira? Quanto há de verdade em um falso relato? Tentar entender é o primeiro passo para perdoar? Essas são algumas das questões colocadas pelo premiado autor espanhol Javier Cercas para enfrentar os dilemas de narrar a vida de um dos maiores impostores da história.

Jameson e a forma – TERRY EAGLETON
Alguns autores podem e devem ser reinterpretados continuamente. Fredric Jameson, capa da edição anterior da Peixe-elétrico, certamente é um deles. Nosso segundo texto originalmente publicado pela prestigiosa New Left Review é do britânico Terry Eagleton e trata da importância da forma na escrita de Jameson.

Da experiência ao melhor entretenimento do mercado – TALES AB'SÁBER
Ab'Sáber escreve sobre o fim da ideia de contracultura, ou melhor, de sua absorção total pelo mercado. Um tema central para se enfrentar os desafios culturais da contemporaneidade. Originalmente encomendado por um grande veículo de imprensa, mas nunca publicado. Segundo o autor, o texto havia atravessado "certos limites".

Meninas mortas – SELVA ALMADA
Autora do consagrado romance "O vento que arrasa", Selva Almada publica um conjunto de crônicas sobre feminicídio na Argentina. Com a mesma sofisticação estilística de sua ficção, Almada traz à tona essa trágica dimensão da vida contemporânea.

Remanentes – NINO CAIS
As imagens que ilustram esta edição são do artista plástico Nino Cais. Apresentadas pela primeira vez em Buenos Aires, o flerte com o pornô nas colagens de Cais vêm confrontar a onda conservadora que avança pelo Brasil.

Laudato Si – MICHAEL LÖWY
O marxista Michael Löwy aponta a radicalidade e os limites da ação do Papa Bergoglio ao analisar a encíclica sobre meio ambiente, Laudato Si.

Atenção e indiferença: o sentido em Machado de Assis – PEDRO MEIRA MONTEIRO
O crítico literário Pedro Meira Monteiro parte do romance derradeiro de Machado de Assis – "Memorial de Aires" – para resgatar os principais pontos da crítica machadiana e colocá-los diante de novas questões.

O Bispo é o rei do Brasil – VICTOR HERINGER
O carioca radicado em São Paulo Victor Heringer publica um ensaio nada convencional sobre Arthur Bispo do Rosário, e tenta compreender um dos aspectos da contemporaneidade: a distração.

Diário de uma releitura – FELIPE CHARBEL
Em um texto que corre no limite entre o ensaio e a ficção, Charbel cria um ambiente rothiano ao apresentar um diário pessoal que tem como fio condutor o livro "O Teatro de Sabbath", de Philip Roth.

A túnica inconsútil do romantismo – DENILSON CORDEIRO
Cordeiro resenha "As raízes do romantismo", de Isaiah Berlin e, em um duplo movimento, demonstra a centralidade do autor e do período histórico em questão.
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento10 de nov. de 2015
ISBN9788584740888
Peixe-elétrico #03: Sarlo

Leia mais títulos de Beatriz Sarlo

Autores relacionados

Relacionado a Peixe-elétrico #03

Títulos nesta série (11)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

Ciências Sociais para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Peixe-elétrico #03

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Peixe-elétrico #03 - Beatriz Sarlo

    Sumário

    Cinco minutos – os editores

    O romance de Barthes – Beatriz Sarlo

    Barthes, leitor de Loyola – Beatriz Sarlo

    Meninas mortas – Selva Almada

    Laudato Si – Michael Löwy

    Jameson e a forma – Terry Eagleton

    A pele da cebola – Javier Cercas

    Da experiência ao melhor entretenimento do mercado – Tales Ab’Sáber

    Atenção e indiferença: o sentido em Machado de Assis – Pedro Meira Monteiro

    Diário de uma releitura – Felipe Charbel

    A túnica inconsútil do romantismo – Denilson Cordeiro

    O Bispo é o rei do Brasil – Victor Heringer

    Remanentes – Nino Cais

    Quem faz

    Cinco minutos

    Estivemos na última edição da Feira Internacional do Livro de Frankfurt. É o maior evento de compra e venda de direitos autorais do mundo, sempre acompanhado por mesas de discussões, polêmicas e desfiles de escritores, personalidades em geral e adolescentes fantasiados. Frankfurt é a cidade ideal para esse tipo de reunião de negócios: um dos maiores centros financeiros do mundo, tem em frente ao prédio da ópera uma estátua enorme com o símbolo do Euro. A especulação imobiliária é tal que vários edifícios estão sendo erguidos sobre os últimos espaços livres, justamente em cima das antigas ruínas romanas. Logo, para ver um teatro milenar os visitantes terão que pegar um crachá, fazer uma foto na portaria e responder que não, o destino não é o trigésimo segundo andar, mas sim o subsolo.

    A feira tem um ritmo frenético. Funcionando em um centro de convenções ligado a uma estação de metrô, uma hora antes da abertura os trens estão apinhados de gente do mundo inteiro. Alguns carregam caixas, as malas de livros são um pouco mais numerosas, mas a maior parte dos volumes negociados está nos iPads. As conversas são descomplicadas: marcadas com alguns meses de antecedência, duram meia hora sempre. Cada encontro rende a apresentação de mais ou menos seis livros. O editor interessado em vender mostra a capa da edição original, comenta em cinco ou seis frases o conteúdo e acrescenta uma história pitoresca, talvez um prêmio para os de mais sorte e, claro, as vendas. Se o comprador se interessar, recebe na hora um e-mail com um sample do livro. Talvez ele tenha 24 horas para responder. Nesse caso, sua noite está comprometida pela leitura (ele deve ter mais quatro casos assim até o fim do dia) e o stress da decisão. No dia seguinte, correndo até a próxima reunião, talvez ele cruze com o representante de vendas do dia anterior e, com um aceno, agradeça a negociação. Se o outro se lembrar, responderá com um sorriso. Todos em Frankfurt são afáveis, educados e sobretudo muito apressados. Como a adrenalina é fundamental para o mundo dos negócios, o wi-fi funciona muito mal e os setores de alimentação são péssimos. Curiosa, uma editora brasileira ligou um contador de passos no início de um dia de feira e descobriu que, oito horas depois, tinha caminhado 14 quilômetros.

    Escritores, evidentemente, estão em todos os corredores. Os muito famosos vão participar de debates concorridos e algumas mesas de entrevistas. Há um tal de sofá azul em uma das entradas que permite autógrafos. Na edição deste ano, Salman Rushdie falou na abertura, o que fez com que o Irã abandonasse a feira, deixando um estande vazio, algumas declarações inflamadas e mais nada. Os países têm os autores rebeldes, aqueles que não estão a fim de fazer concessões, os escritores de fantasia, infanto-juvenis que vendem centenas de milhares de exemplares, sociólogos, astrólogos, talentos emergentes e muitos escritores hábeis em contar uma história que será resumida, se ele tiver um bom espaço no coração de seus editores, em cinco minutos.

    Todos, dos não concessivos aos onipresentes contadores de uma boa história, querem ter seus direitos negociados para uma tradução. Caso venham de um país subdesenvolvido (desculpe a terminologia, leitor...), podem contar com ONGs de apoio, que reservam um orçamento para traduzir alguns talentos dessas culturas mais sofridas. Mesmo assim é preciso ser escolhido por um comitê de seleção. Quem passar na Feira de Frankfurt para ouvir escritores vindos dos países não centrais (tomando como centro a definição risível do continente anfitrião) ouvirá histórias exóticas e bizarras de violência, autores cuja literatura os salvou da miséria, genealogias familiares que sempre têm espaço para um acontecimento trágico. Um conselheiro da ONG pode estar na plateia e é preciso comovê-lo.

    A estrutura da negociação internacional de direitos é muito fechada e o único ato político que permite em seu interior é esse tipo de trânsito. O resto – a arte – fica em outro circuito.

    No sábado, os agentes já foram embora e a feira, embora sem grandes estandes de venda, é aberta ao público. Neste ano, como aparentemente sempre, hordas de adolescentes fantasiados de vikings, princesas, ogros, bruxas, magos, guerreiros, seres mitológicos e gnomos foram maioria, dividindo espaço com os refugiados, em bem menor número, que já tinham um documento válido e para quem a feira decidiu organizar alguns eventos. A propósito, nas rodas de conversa eles eram o assunto: a Alemanha vai mudar de rosto se Angela Merkel, depois de ter sufocado a Grécia, de fato levar adiante sua admirável política de aceitação. Nesses círculos mais esclarecidos, todos apoiam a chegada dos refugiados, embora dividam apreensões quanto ao futuro incerto. Visitamos um abrigo e de fato constatamos que, ao menos ali, sírios, iraquianos, afegãos, argelinos, paquistaneses e ainda muitos outros estão sendo tratados com dignidade, apesar da apreensão que o confinamento à espera de documentos causa.

    Voltando à feira, talvez seja possível defini-la com uma expressão bastante corriqueira: cinco minutinhos. Em outro ritmo, a partir do início de 2016, a revista Peixe-elétrico amplia seu horizonte e abre um selo para publicar uma série de livros voltados para a reflexão de fôlego sobre arte e outros campos das ciências humanas. São ensaios escritos por especialistas e que encontram dificuldade para se estabelecer no mercado veloz e facilmente resumível dos livros de cinco minutos.

    Queremos mais tempo.

    Os editores

    Novembro de 2015

    O romance de Barthes

    Beatriz Sarlo

    Barthes sabia que, na segunda metade do século XX, depois de A náusea de Sartre, A era da suspeita, de Nathalie Sarraute, e O ciúme, de Robbe-Grillet, havia passado o momento de escrever o romance que queria. Sabia, pois escreveu sobre Brecht, que a representação profunda de uma subjetividade havia se esgotado, pelo menos para a literatura culta. O romance que queria era Em busca do tempo perdido, mas em um de seus seminários sustentou, com coerência e talvez nostalgia, que assistíamos a um esgotamento trágico da literatura. Não haverá outro romance de Proust.

    Com um tom que lembra Adorno, já escrevera em O prazer do texto, de 1973: O novo não é uma moda, mas um valor... Para escapar da alienação da sociedade atual só nos resta o voo para a frente. No entanto, sabe-se que Barthes deseja escrever um romance poucos anos depois. Insiste em dois de seus últimos seminários, desde 1978 a 1980, publicados depois de sua morte com o título de A preparação do romance. Barthes deseja algo impossível.

    As fotografias

    O conjunto de fotografias incluído em Roland Barthes por Roland Barthes é o que ficou desse romance: imagens do que ele poderia ter sido. Na primeira, uma mulher jovem, vestida de branco, mangas curtas e cinturão escuro, caminha pela praia; ao fundo, turvo, o mar e um carro desses que eram usados para chegar à costa ou atravessar o horizonte. É a mãe de Barthes que aparece na abertura do livro, como a mãe do narrador nas primeiras páginas de Proust. Uma foto de época que, no entanto, não tem ar arcaico e nem esse rude anacronismo que às vezes enfeia as mulheres bonitas quando olhamos suas fotografias antigas.

    Duas páginas depois, a mãe de novo, abraçando um Roland Barthes menino, com botas, meias três quartos, roupa escura, cabelo quase loiro e uns olhos tão grandes como os dela e igualmente melancólicos. Nenhum dos dois sorri. O menino é grande demais para estar nos braços da mãe. Seu lugar normal nessa foto tirada durante um passeio seria ao lado de uma mulher jovem, segurando-a talvez pela mão ou olhando para ela. O mesmo menino, talvez a mesma tarde, está sentado, as pernas abertas e as mãos relaxadas, sobre uma ravina coberta de grama e de flores. O centro da foto são os olhos tristes, que Barthes adulto comenta em uma legenda como se fosse a anotação para um personagem de romance: De menino me entediava muito e com frequência. Isso começou muito cedo e continuou por toda a minha vida... Um tédio pânico, que chega ao desespero: como o que experimento nas conferências,nos colóquios, nas noitadas no exterior, nas diversões em grupo. Será o tédio minha forma de histeria?. Na frente dessa fotografia, outra de Barthes durante uma mesa-redonda, com o olhar opaco enviesado, coberto pelo tédio. Na primeira pessoa, apontamentos para um romance futuro que não aconteceu.

    Depois aparecem as fotografias perfeitamente proustianas: um povoado, Bayona, sobre o qual Barthes afirma na legenda: cidade perfeita, fluvial, aérea e no entanto deserta, cidade de romance: Proust, Balzac, Plassans. Imaginário primordial de infância: a província como espetáculo, a História como odor, a burguesia como discurso. Depois outras mulheres: uma velha mucama, de vestido negro e coque no alto da cabeça, posando com um gato; suas duas avós, as portadoras do discurso familiar e de uma língua francesa de sabor arcaico; um par típico do início do século XX, tomando o chá no jardim; imediatamente abaixo, Barthes tomando chá com sua mãe já velha.

    Uma única fotografia do pai, que o menino não conheceu porque morreu durante a Primeira Guerra, uma morte pela pátria que incomodava Barthes quando o professor de história do liceu obrigava os alunos a dizer em público quem deles tinha na família combatentes dessa guerra. Esse pai, vestido com uniforme de marinheiro, era muito distante, quase um estrangeiro na apertada unidade que formavam a senhora Barthes e seu filho.

    A razão dessa união de dois, esse casal de mãe e filho, oferece a legenda de outra fotografia, A família sem o familiarismo: Barthes quase adolescente e sua mãe, sentados na areia, agora sorriem. Os ombros se tocam, estão confortáveis, como se ninguém pudesse interromper esse momento de intimidade suprema. A cabeça da mãe se apoia no ombro do seu filho, seus rostos estão muito próximos; o braço da mãe se funde à coxa de Roland, procurando um equilíbrio. Felicidade de um romance de infância na província: Quando eu aprendia a andar, Proust ainda estava vivo e terminava seu romance. Pontuação das simultaneidades que apenas se reconhecem décadas mais tarde.

    Por toda a vida, Barthes namorou esse romance imaginário. Quando sua mãe morreu, parece que acreditou ter chegado a hora. Em A câmara clara, conta uma cena posterior a essa morte. Perambula pelo apartamento de sua mãe, tratando de lembrar uma imagem completa (portanto impossível) dessa mulher: Me debatia entre imagens parcialmente verdadeiras e, consequentemente, totalmente falsas. Nas fotografias que revisa só a encontra parcialmente, como se uma quase semelhança estivesse tão próxima do falso como do autêntico. No entanto, os olhos (como acontece conosco com as fotografias do próprio Barthes) são o ponto que condensa a personagem: o olhar claro e luminoso de uma mulher que se entregava, dócil, à câmera. A busca entre esses restos continua, até que encontra uma foto da senhora Barthes menina, quer dizer, a imagem de alguém que seu filho não pôde conhecer. Nessa desconhecida, Barthes finalmente reconhece a sua mãe morta em distante tempo perdido, anterior a seu nascimento. E, muito significativamente, conclui: A fotografia me produziu um sentimento tão claro como o que Proust experimentou quando ao se inclinar para tirar os sapatos percebeu de repente o verdadeiro rosto de sua avó.

    Não faz mais falta: Barthes encontrou em uma fotografia, quando já perdera a esperança de que o rosto de sua mãe voltasse inteiramente à sua memória, a imagem de um passado que, como ele diz, é testemunho de que nossas lembranças não são invenções: A fotografia tem a ver com a ressurreição. Não tem o poder mágico de fazer uma mulher voltar ao presente, mas, pelo menos, assegura que ela não foi uma invenção nem um sonho.

    Personagens de um relato

    Sabemos, com certeza, que Barthes morreu de morte casual, como consequência de um atropelamento. Sabemos também que o último seminário A preparação do romance era um gesto que podia anunciar uma ficção. Nas notas publicadas depois de sua morte, escrevera: Tudo isso quer dizer que vou escrever um romance? Não sei. Não sei se será possível chamar de romance à obra que quero escrever e que desejo que rompa com a natureza intelectual dos meus textos anteriores. Barthes supõe que um romance significava introduzir um corte com o que tinha escrito durante mais de trinta anos. Ficamos sem o romance proustiano de Roland Barthes. Também não sabemos se o teria escrito.

    No entanto, no mesmo livro em que as fotografias estão publicadas, Barthes abre uma porta para a nossa fantasia sobre esse romance, mesmo que os fragmentos que o componham sejam tão pessoais como discretos. Barthes é nossa celebrity e se nega a alimentar a voracidade do privado, mas de algum modo narra a si mesmo, com dados precisos de uma vida de escritor, suas rotinas e manias. Trata-se de algo propriamente romanesco.

    Roland Barthes por Roland Barthes faz parte de uma coleção da editora Seuil, em que cada livro é dedicado a um escritor, ensaísta, historiador, filósofo que é representado por outro através de seus próprios textos de um modo que seja alcançado um efeito de autorretrato: X por ele mesmo. Barthes tomou para si o tomo que cabe a Michelet (alguém sobre quem quis fazer sua nunca concluída tese de doutorado). Quando a editora decide encarregar um Barthes, é ele quem decide ser seu próprio autor: Barthes no espelho de Barthes, uma tarefa de superposição, de reflexo, de autorretrato, de confissão moderada pelo segredo. Encara esse projeto, talvez porque acreditasse que seus diários pessoais nunca seriam publicados. Um gesto de modéstia, já que os diários e livretos de Barthes foram às gráficas como os de André Gide, em cujas páginas Barthes tinha experimentado pela primeira vez o desejo de escrever.

    Barthes por Barthes é um livro que obedece (na medida em que um livro muito pessoal pode fazer) ao plano de seu autor. Sobretudo não falará de si mesmo em primeira pessoa, exceto nas epígrafes das fotografias. No texto, formado por dezenas de fragmentos curtos, Barthes fala de Barthes na terceira pessoa, como se fosse um romance. Mais concretamente fala na mesma terceira pessoa de Em busca do tempo perdido: uma terceira pessoa que causa a impressão de estar muito próxima da primeira, como se o leitor fosse testemunha de um deslizamento que não está nos pronomes (Eu/Ele) mas na interioridade do ponto de vista.

    Há com certeza exceções à terceira pessoa, quando o fragmento se aproxima muito do registro de uma sensação, como se fosse um monólogo interior (Estou paralisado, por exemplo); ou se faz uma pergunta sobre o próprio projeto do livro que está escrevendo: Produção dos meus fragmentos. Contemplação dos meus fragmentos. Contemplação dos meus restos. De qualquer maneira, a primeira pessoa é realmente esporádica como se o nome de Barthes, que aparece duas vezes no título (RB por RB), tivesse provado a divisão entre o eu narrado e quem o narra.

    Por outro lado, Barthes como crítico nunca fugiu da primeira pessoa, que sustenta o que o texto afirma. Mas nos fragmentos de Barthes por Barthes experimenta a terceira porque está, talvez sem saber ou sem confessar, no mesmo caminho de seu futuro romance, o que não foi escrito. Em um de seus últimos seminários perguntou-se qual é para cada escritor o livro "em que ele vai se colocar por inteiro: o Todo de sua vida, de seus sofrimentos, de suas alegrias e, portanto, o todo de seu mundo e talvez o todo do mundo". Continua com a ideia, dificilmente discutível, de que hoje esse livro é impossível. Mas, qual foi o último possível? E responde em seu seminário: como farsa, foi Bouvard y Pécuchet de Flaubert; e como suma do saber psicológico, mundano, amoroso e erótico, estético, como livro-suma e livro de iniciação (pois é a história de uma iniciação), foi o romance de Proust.

    Quando Barthes começa como crítico, tem a convicção de que traz uma perspectiva nova. Sobre o senso comum, que chama de Doxa, escreve os breves textos de Mitologias. Trabalha toda sua fase estruturalista sobre o método, desde os mais esquemáticos "Introdução

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1