O Sertão Educa
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O Sertão Educa - Gilmar Leite Ferreira
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO & CULTURAS
Dedico este livro aos meus pais, Francisco Ferreira e Rita Leite, pela educação sertaneja que recebi. Foram eles os primeiros a me mostrarem o mundo-sertão. Suas histórias, experiências de vida, seus trabalhos e sua visão de mundo foram indicadores educacionais para desenvolver em mim um sentido de respeito, amor e paixão pelo sertão.
Agradecimentos
Agradeço à Petrucia Nóbrega (UFRN), orientadora de mestrado e doutorado. Sua presença na minha vida, quando retornei para a academia, foi e é de fundamental importância. Essa grande amiga, de forma rigorosa, disciplinada, responsável, ética, e acima de tudo sensível, abriu caminhos, apontou direções para que eu pudesse levar para o meio acadêmico a minha experiência de poeta e sertanejo.
Agradeço ao amigo Walter Pinheiro Barbosa Junior (UFRN), pelos incentivos desde os primeiros passos no campo da pós-graduação. Como coorientador, tanto no mestrado como no doutorado, e no concurso para professor efetivo da UFPB, o pedagogo amigo foi uma pessoa importante em toda a minha trajetória acadêmica. Suas sugestões foram decisivas na minha vida, desde quando morávamos em Caicó. A gentileza, a simplicidade e a responsabilidade no exercício de pesquisador e professor apontaram diretrizes de compromisso com o ensino e a educação, fazendo-me ser uma pessoa entusiástica com o que envolve todo o processo do ensino, pesquisa e extensão.
Agradeço ao amigo de São José do Egito, Marcos Brito, por ter sido meu guia durante a pesquisa de campo. Seu conhecimento e a amizade com os sertanejos que estão neste livro foram fundamentais para que eu pudesse, em várias viagens aos sítios e às comunidades rurais, conversar com os sertanejos que fazem parte desta obra.
Agradeço aos sertanejos do Pajeú pernambucano e do Cariri paraibano pelas conversas que tivemos durante as visitas que fiz aos sítios e às comunidades rurais. As suas palavras sobre a experiência vivida no sertão foram de grande relevância para que eu pudesse fazer a articulação fenomenológica sobre a vida do sertanejo e o conhecimento livresco.
Agradeço aos grupos de pesquisa da UFRN, Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (Estesia), pelos estudos e discussões no campo da Filosofia. Os momentos compartilhados foram de grande importância para que eu compreendesse algumas noções filosóficas, principalmente na filosofia de Merleau-Ponty.
Agradeço ao grupo de pesquisa Sertania, pelos momentos de debates, leituras, escritas e compartilhamento dos saberes, sem os quais não teria chegado aonde eu cheguei. As viagens do grupo à Serra da Barriga (União dos Palmares), a Canudos (BA) e ao Museu do Sertão (Mossoró, RN) foram elementares na busca de compreender o sertão no seu espaço físico-humano.
APRESENTAÇÃO
Fazer um trabalho de pesquisa acadêmica sobre o sertão, pautado numa tese de doutorado, foi gratificante e ao mesmo tempo desafiador. Justamente porque o sertão sempre esteve presente no meu sentimento, caracterizando meu modo de ser, pensar e agir. Dissolver o mundo vivido em palavras, conceitos, noções e proposta epistemológica, fez-me ficar em alerta para não ser contaminado pelo extremo entusiasmo em pesquisar algo tão constante na minha existência. Por isso, necessitei de muito cuidado diante do encantamento do mundo-sertão. Foi preciso voltar à minha origem de sertanejo, como se fosse a primeira vez diante do sertão. Esse voltar às mesmas coisas, reinaugurando a visão por meio de um olhar inocente
, usando os primeiros passos da fenomenologia do filósofo Edmund Husserl, aprofundada por Maurice Merleau-Ponty, impulsionou uma pré-reflexão sobre o sertão, pela qual senti que poderia interpretá-lo como um lugar que educa, sem fechá-lo em uma ideia, mas sim abrir um campo de interrogações, em busca de novos sentidos e significados, numa atitude pautada de vários diálogos e compreensões diversas.
Este trabalho de pesquisa transformado em livro não foi construído de maneira objetiva, baseado na atitude de apropriação das coisas do sertão e depois transformado numa linguagem científica. Ele é fruto do meu profundo envolvimento com as coisas do sertão. Minha bisavó do lado paterno era uma índia cariri que foi pega
no mato por dois cachorros e depois levada para viver no meio da suposta civilização dos homens brancos. Meus avós paternos e maternos e meus pais nasceram e viveram parte de sua vida em sítios. Então, a experiência vivida foi construída pela minha atenção em ouvir dos meus pais e avós histórias e acontecimentos do sertão. Também, nessa mesma esteira, as feiras e as minhas idas constantes aos sítios para participar dos trabalhos na roça e na criação de animais foram de grande importância na minha educação sertaneja. Desde a adolescência, o envolvimento com a poesia do sertão e com a música de Luiz Gonzaga e parceiros, Elomar Figueira Mello, entre outros, tem acompanhado meus passos sensíveis durante a jornada existencial. Dessa maneira, o sertão em diversas dimensões faz parte da minha vida.
Ao buscar interpretar o sertão, apropriei-me de algumas áreas do conhecimento, como: Educação, Filosofia, Literatura, Cultura, Arquitetura, Geografia, Antropologia, Geologia, Poesia e Música, como fundamentos necessários para compreender o campo educacional que envolve o sertão em toda a sua plasticidade. Para ampliar as áreas de conhecimento citadas, foi necessário conversar com os sertanejos, ouvir suas narrativas, dialogar com diversos autores, acolher as orientações de Petrucia Nóbrega e Walter Pinheiro, numa tentativa de dar visibilidade científica a um lugar tão pouco compreendido e ainda um tanto distante de uma quantidade considerável de pesquisas, pois o sertão nordestino, diferente do de Minas Gerais, ainda é um tanto virgem
nos bancos de dados da Capes.
Como sertanejo, sempre me incomodam certos preconceitos acerca do sertão nordestino, pois geralmente é concebido como um lugar atrasado, de pessoas que falam errado, analfabetas, ignorantes, preguiçosas, resignadas, alienadas, violentas e sem cultura. Por esses estereótipos, pautados na ignorância de quem não conhece o sertão em sua plenitude, talvez (para outras pessoas) não seja considerado tão interessante estudá-lo e conhecê-lo. Por isso, senti uma profunda responsabilidade e o interesse de trazer à tona, à luz das ciências humanas (entre outras) e dos sertanejos, o sertão como ele realmente é. O que procurei neste trabalho foi dar um tratamento responsável, ético, de respeito e digno sobre os povos da grande aldeia sertaneja.
Tendo conhecimento da sabedoria que pauta todo corpo do sertão, busquei, por meio de uma linguagem poética-filosófica-educacional-literária, mostrar uma educação da vida tecida pelo aprendizado constante do sertanejo com o mundo que o cerca e que habita a sua existência. Diante disso, mostro com este trabalho que a educação não se resume ao espaço familiar ou escolar, mas que ela é uma constância de aprendizados ao longo da vida, pela relação do homem com o mundo vivido.
É verdade que o sertão, nessas últimas décadas, mudou em certos aspectos. Isso por causa do acesso à informação que o sertanejo recebe em casa por meio dos meios de comunicação, pelo seu deslocamento, frequentando as cidades e outros espaços, onde alguns chegam a completar os estudos do ensino básico e até superior. No entanto encontram-se ainda velhos sertanejos e jovens identificados com o lugar, preservando seus valores éticos e de identidade cultural. Mesmo usando (alguns) da tecnologia para a agricultura, para a criação de gado, caprinos e ovinos, entre outros animais, a relação do sertanejo com a terra é a mesma. Basta ir a um sítio, a uma comunidade rural, nos meses de preparação, da chegada do inverno chuvoso ou quando a seca toma conta, as conversas e os sentimentos são os mesmos dos seus antepassados. Isso mostra o entrelaçamento do sertanejo com o mundo vivido, independente da época do ano ou da relação com outros lugares.
Esta pesquisa aprofundou mais minha relação com o sertão, abriu outros canais da percepção, dilatou a compreensão sobre um lugar que sempre esteve dentro de mim, e me deixou mais inquieto para compreender o sertão por outros caminhos, percorrer outras veredas que pintam ou cruzam seu sentido ser. Agraciado pela interlocução com o filósofo Merleau-Ponty, com a literatura de Euclides da Cunha, Gustavo Barroso, Guimarães Rosa, o poeta Cancão (João Batista de Siqueira), entre outros, pude dialogar por meio da experiência vivida com o mundo das ciências, da filosofia, dando um estatuto poético-filosófico-educacional-literário a um lugar repleto de interrogações, reticências e afirmações, onde a natureza revela-se num tecido estético, cultural e educacional.
Encontrei no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte um espaço aberto para trilhar nas veredas da linguagem sensível, construindo um conhecimento poético, aproximando diversas áreas, por intermédio de um trabalho multidisciplinar, tornando possível juntar as dimensões do mundo inteligível com as do mundo sensível, para a construção de uma pesquisa repleta de flores, espinhos, chuva, secas, certezas e incertezas, poesia e ensinamentos, sobre um lugar-mosaico que tem as cores da terra e os movimentos do sentimento da vida.
PREFÁCIO
Paisagens do sertão, uma educação sensível
O sertão é um lugar que educa. Essa é a tese do professor, pesquisador e poeta Gilmar Leite Ferreira ora apresentada sob a forma de livro. Embora fruto de sua tese doutoral, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o livro apresenta uma linguagem cativante que conduz suavemente o leitor por entre as paisagens do sertão brasileiro, do sertão do Pajeú pernambucano e do sertão do Cariri paraibano. Pela dimensão da sensibilidade, o sertão educa nosso modo de ser e de estar no mundo, princípio fenomenológico seminal a partir do qual Gilmar nos apresenta a natureza do sertão, as figuras humanas do vaqueiro, do agricultor e a poesia de Cancão como paisagens que educam nosso olhar e nosso sentimento.
A tese de Gilmar rompe com uma maneira de compreender o conhecimento ou a elaboração de uma tese acadêmica de modo apenas intelectual
, deixando em segundo plano a sensibilidade e a escrita poética. O livro articula diferentes referências para formular uma proposição a um só tempo estética e educativa, uma educação do olhar e da sensibilidade como cenário para o conhecimento da cultura e de suas variações sociais, linguísticas, literárias, científicas, artísticas.
Para seguir e compreender esse itinerário sertanejo, o pesquisador-poeta convida o filósofo francês Merleau-Ponty para empreenderem juntos uma expedição no interior de Pernambuco e da Paraíba. Merleau-Ponty encantou-se com a paisagem que marcou para sempre o olhar e a pintura de Cézanne: a montanha Sainte-Victoire, ao sul da França. O Pajeú pernambucano e o Cariri paraibano inspiram e abrigam nosso poeta. No meio do caminho, o filósofo afirma sua tese de que a natureza não é inteiramente objeto
, posto que nela se entrelaça a vida em toda a sua dimensão biológica, geológica, ontológica. Gilmar o pega pela palavra
, na arte das citações com as quais fazemos nossas teses, para afirmar, por sua vez, o ser sensível do sertão, a paisagem cinzenta da caatinga seca na qual o verde do mandacaru se destaca
. Essa é apenas umas das imagens poéticas que povoam o pensamento, a palavra, o ser de Gilmar e a tessitura deste livro.
Nesse encontro com Merleau-Ponty, Gilmar pôde atribuir outros sentidos à noção de natureza, bem como nos faz perceber de modo diferente, poético, a filosofia da natureza. Além do filósofo Merleau-Ponty, o autor nos presenteia ao dialogar com Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Assim, em meio às paisagens literárias d’Os Sertões ou do Grande Sertão: Veredas, deparamo-nos com outros personagens, reais e simbólicos, como Zabé da Loca, a sertaneja tocadora de pífano. Quero ressaltar as fotografias feitas por Gilmar dessas paisagens do sertão como material estético e educativo que nos transportam para esse sertão como lugar que educa
. O portrait, o retrato de seu Inácio de Brito, é apenas um dos exemplos picturais dessa educação sensível incorporada pelo autor para criar mundos imaginários e partilhar saberes que podem sensibilizar a educação e o ato de educar.
Pois bem, por tudo isso, alegro-me com este livro sobre o sertão e uma educação sensível, construído por Gilmar com dedicação, competência intelectual, beleza e sentimento. O sertão educa nosso olhar, cria palavra poética, sensibiliza nossa relação com a natureza de modo amplo e significativo. A leitura desta obra irá descortinar outras paisagens que entrelaçam filosofia, literatura, poesia, fotografia e experiência humana em atos de criação e de invenção educativa.
Escrevo este prefácio estando longe do sertão, mas apenas geograficamente, pois minha alma sertaneja jamais deixou esse lugar entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Assim, ao ler o livro de Gilmar, percorro espaços interiores, sinto na pele a poeira da terra seca, revivo a alegria aquosa dos banhos no riacho que passava ao lado do sítio onde nasci e onde morei até meus 7 anos de idade. Penso no meu pai, esse homem do sertão que se foi, mas que continua em mim. Obrigada poeta, amigo Gilmar, por esse presente.
Para além de minhas idiossincrasias, penso que este livro pode interessar a um público diverso: antropólogos, filósofos, artistas, educadores, pois há muitas entradas, veredas a serem percorridas, andanças a serem realizadas pelos leitores disponíveis a percorrer o sertão e suas naturezas.
Boa expedição!
Petrucia da Nóbrega
Paris, inverno de 2016.
Sumário
1
UM CAMINHAR FENOMENOLÓGICO PELAS VEREDAS DO SERTÃO
2
A NATUREZA DO SERTÃO
2.1 Aproximação da noção de natureza em Merleau-Ponty
2.2 Os movimentos do sertão
2.3 O sertão encanta
2.4 Expressões distintas do sertão
3
A VIDA HUMANA NO SERTÃO
3.1 O agricultor do sertão
3.2 O vaqueiro do sertão
4
A POESIA DO SERTÃO EDUCA
5
REFLEXÕES SOBRE A JORNADA PELAS VEREDAS EPISTEMOLÓGICAS DO SERTÃO
REFERÊNCIAS
1
UM CAMINHAR FENOMENOLÓGICO PELAS VEREDAS DO SERTÃO
O meu corpo é todo o sertão
Carlos Pita
Entre os espinhos dos cactos vorazes; sob um sol inclemente, abrasador e causticante; sobre os cascalhos e os tocos pontiagudos; acariciado pelas flores perfumadas, pelas asas de seda das borboletas multicores e pelos cantos dos pássaros; o sertanejo se faz terra e se transforma no imenso corpo do sertão. Envolto de esperança e desilusão, mergulha em si mesmo, procura o equilíbrio da existência diante de uma natureza impiedosa e acolhedora, a qual afeta a sua vida sensível com os movimentos, as cores e os sons da caatinga¹ (em tupi, caatinga
significa mato (caa) branco (tinga). Atordoado pelas contingências dos dias vindouros, o sertanejo reinventa-se a todo instante; adapta-se; constrói relação com os vegetais, minerais e animais; elabora a beleza da expressão artística por meio de uma cultura diversificada e vive na eterna busca de um sentido de convivência compartilhada, numa terra onde os excessos e as faltas fazem parte do cotidiano.
Com um solo formado de rochas, granitos, quartzos, serras, vales, o sertão é um lugar repleto de contradições, pois parte do ano apresenta-se como um grande deserto, dando a impressão da impossibilidade da presença da vida. Sua vegetação, constituída de cactos, juremas, favelas, bromélias, coroas-de-frade, baraúnas, marmeleiros, angicos, carnaubeiras, umbuzeiros, espinheiros, camarás, pinhões, mata-pastos, ipês, juazeiros, moleques-duros, entre outros vegetais; o sertão expressa sua flora, revelando um ambiente muitas vezes inóspito, onde a vida passa por constantes desafios. Independente de se apresentar ora seco, desértico, ora verde, pulsando a vida das plantas e dos animais, o sertão revela uma beleza singular, assustadora, encantadora, na qual todo biossistema é um grande mosaico estético-trágico-deslumbrante.
Segundo Monteiro (1994, p. 15),
Solo, vegetação, fauna e o homem da caatinga, no quadro dos grandes sistemas florestais brasileiros, apresentam-se revestidos de uma áspera e transparente beleza euclidiana. Transborda tudo uma aura de dramático estoicismo, e ali nada se entrega fácil, a não ser em gestos de extrema solidariedade humana. A luta de seu povo tem raízes profundas, entrelaçadas às raízes do angico, da baraúna, do umbuzeiro e das cactáceas todas. Árvores que são verdadeiros monumentos de resistência. Sempre em atitude de prontidão e autodefesa, não se deixando envolver em abraços e afagos. Irmanadas ao homem, "cercam-lhes relações antigas. Todas são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente, cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados²".
Por viver e ser o sertão, o sertanejo não possui termos para defini-lo. Porém a carga sentimental transborda a sua existência, e anda. O sertão é isso. Nada pronto, nada determinado. Sua capacidade de transformação e de adaptação constitui um campo de expressão em que o certo, o incerto, o trágico, o esperançoso, o real e o imaginário formam um imenso tecido bordado de várias significações. Assim, ele foge à concepção de que não é possível fechá-lo em um conceito ou uma ideia, pois está sempre em movimento; mas é possível vivê-lo. Paradoxal e uno ao mesmo tempo, ele confunde e funde a existência com suas paisagens distintas. Quando mais se aproxima dele, mais escorre e foge sem que possamos pegá-lo, igualmente a água que tentamos segurar entre os dedos. Cruel e acolhedor, o sertão encanta e desencanta. E