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Tropas e Boiadas
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E-book212 páginas3 horas

Tropas e Boiadas

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Sobre este e-book

Edição Especial em homenagem aos 115 anos de nascimento do autor Hugo de Carvalho Ramos.
Tropas e boiadas encaixa-se no restrito grupo das obras que moldam as feições daquilo que se denomina, por vezes até de modo abusivo, cultura brasileira. Editada pela primeira vez em 1917, a obra reúne, 14 contos e a novela "Gente da gleba".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de ago. de 2018
ISBN9788540025356
Tropas e Boiadas

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    Tropas e Boiadas - Hugo de Carvalho Ramos

    Copyright © 2014 by Hugo de Carvalho Ramos.

    Diagramação, revisão e arte-final da capa: Sandra Rosa

    (A presente edição foi revisada, respeitando-se o texto original, porém, empregando-se as regras do Novo Acordo Ortográfico às palavras que sofreram mudanças).

    Imagem da capa: Tropa de Carga (www.asminasgerais.com.br)

    Coordenação Gráfica: Editora Kelps

    Rua 19 nº 100 - St. Marechal Rondon

    CEP 74.560-460 - Goiânia - GO

    Fone: (62) 3211-1616 Fax: (62) 3211-1075

    E-mail: kelps@kelps.com.br

    homepage: www.kelps.com.br

    Sumário

    Prefácio

    Caminho das tropas

    Mágoa de vaqueiro

    A bruxa dos Marinhos

    Nostalgias...

    Caçando perdizes

    Alma das aves

    À beira do pouso

    O poldro picaço

    Ninho de periquitos

    O saci

    Peru de roda

    Gente da gleba

    A Madre de Ouro

    Pelo Caiapó Velho

    Dias de chuva

    Prefácio

    A LINGUAGEM DO SERTÃO

    José Fernandes

    A linguagem, antes de ser um fenômeno físico, uma estrutura qualquer, é um fenômeno metafísico, revelador da essência do ser. Desvela não somente o lado ontológico, à medida que o ser vai se construindo em travessia, no verdadeiro sentido hebraico de nasa’, peregrinação, como também o lado ôntico, marcado pelas inter-rela­ções que compreendem a existência em nível social, econômico, cultural etc. Não é sem fortes motivos, portanto, que Heidegger (1967, 24-25) postulara que A linguagem é a casa do ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensado­res e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é com-sumar a mani­festação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam em linguagem.

    Os poetas ou os ficcionistas lhe servem de vigias, porque a criam e recriam todos os dias, ao transformar as vivências sem importância em palavras e, sobretudo, ao harmonizá-las em falas diversas, consoante os modus vivendi e operandi de cada personagem, como pretendemos verificar na análise do regionalista e iniciador da prosa em Goiás, Hugo de Carvalho Ramos, em seu singular Tropas e boiadas. O regionalismo, ao exigir que se cruzem cul­turas, mediante a cristalização de usos e costumes em uma linguagem específica, permite ao escritor, poeta ou ficcionista, jogar com realiza­ções linguísticas operadas tanto no nível considerado padrão, quanto no nível chamado caipira, verificado principalmente em regiões desabitadas, conhecidas como sertão. Daí, a linguagem do sertão.

    1 – A FALA SERTANEJA

    Falar e escrever, por mais que se defenda a dinamicidade da lín­gua, são práticas e exercícios diversos que demandam a ciência da lin­guagem. Só a análise atenta dos discursos chamados regionalistas nos demonstra que, no uso da linguagem com finalidades estéticas, a interação dos dois modos de realização da língua pode confluir para direções idênticas: produzir ideologias, consubstanciar o verossímil e estabelecer uma correlação consistente entre os substratos físicos, social e ontológico das personagens. Esta verdade, já percebida por Platão, no Crátilo, será aprofundada por Heidegger no século XX, ao afirmar que a linguagem é a manifestação do ser. Para que o ser do sertanejo se revele em todas as suas potencialidades, o ficcionista terá de proceder a perfeita sintonia entre a fala do sertão e a linguagem escrita, a fim de não produzir um discurso artificial e inverossímil, que nada tem a ver com a existência camponesa.

    Consoante com as vivências, a consubstanciação da linguagem no discurso literário se processa de maneiras várias, concorde com os caracteres simbólico e alegórico que o escritor lhe queira imprimir. As­sim, visando a estabelecer uma perfeita sintonia entre a linguagem do narrador e a da personagem, que pode assumir a voz narrativa, o ficcionista se utiliza de vocábulos que, mesmo pertencendo ao sistema da língua, são usados quase exclusivamente em determinadas regiões e por um segmento social determinado. Neste caso, o narrador registra na fala culta palavras da fala popular a que chamaremos caipira, sem que o belo, no mais genuíno sentido filosófico, seja diminuído; ao contrário, às vezes, é até valorizado, porquanto aproxima o fictício do real, além de registrar uma linguagem que, em nossos dias, com a influência das tecnologias de ponta e da mídia, tende a desaparecer.

    Analisando o conto Caminho das tropas, averiguamos que, a despeito de Hugo de Carvalho Ramos compô-lo em linguagem escorreita; mas liberta da gramática, no sentido heideggeriano, fá-lo mediante o consórcio de vocábulos característicos do caipira ou do sertanejo, no estrito sentido de habitante do sertão, entendido como região inóspita, distante do mar. O emprego da linguagem do sertanejo e a libertação da gramática nem sempre implicam o uso de palavras deformadas, próprias da fala dos analfabetos. Ela pode ser caracterizada unicamente pela utilização de palavras da linguagem padrão, mas usadas somente no meio rural, como observamos neste trecho:

    O lote derradeiro desembocou num chouto sopitado do fundo da vargem, e veio o trouxe-mouxe enfileirar-se, sob o estalo do relho, na outra aba do rancho, poucas braças adiante da barraca do patrão.

    O Joaquim Culatreiro, atravessando sem parar o piral na faixa encarnada da cinta, entre a espera da garrucha e a niquelaria da franqueira, desatou com presteza as bridas das cabresteiras, foi prendendo às estacas a mulada, e afrouxou os cambitos, deitando abaixo arrochos e ligais, enquanto um camarada serviçal dava a mão de ajuda na descarga dos surrões. (1938, 27).

    Dentre as várias palavras utilizadas pelo narrador, que objetivam a fala dos tropeiros, destacamos cambito, um típico brasileirismo, expressivo do idioleto sertanejo; além de vargem, variante popular de várzea; estacas, pau fincado no terreno para sustentar o arame e/ou amarrar animais; mulada, espanholismo platino — amostra de mulas; arrochos, pequeno pedaço de madeira usado para apertar a sobrecarga, e surrões, bolsa empregada no transporte de cargas em lombo de burro. A imbricação de linguagens ocorre quando o discurso passa para a voz narrativa de Manoel, o dianteiro. Assim, verificamos, entre outros, o emprego do vocábulo mecês, variante caipira de você ou, para ser mais exato, forma contraída de Vossa mercê. A contração de uma expressão de tratamento, como essa, operada mediante a supressão de palavras e a síncope do fonema (r), equivale também a quedas na ordem social, porquanto as pessoas a quem Manoel se dirige não conservam o mesmo status que aquelas a quem se dirigiam antigamente com esta forma cerimoniosa. Estabelece-se, através da linguagem, não apenas um processo de igual­dade social entre Manoel e seus ouvintes, como, também, a aproxima­ção entre o narrador e a personagem que assumiu o relato.

    Este procedimento, não obstante pouco observado pela crítica literária e, às vezes, por escritores regionalistas, possibilita a que a oralidade, sempre presente nesta troca de vozes narrativas, não se torne um recurso artificial; mas se apresente como a linguagem popular sain­do da culta. Desse modo, quando Manoel inicia a sua história, expressões outras, próprias da fala caipira, se encaixam, automaticamente, na lin­guagem do narrador, como podemos perceber por este excerto:

    — Homem, inda agorinha, atalhou o Manoel, o dianteiro — relembrava um fato que me sucedeu duma feita, quando viajava esco­teiro, às ordens do Major Matos, pr’essas bandas. 0 caso é que era então acostado, e de fiança, daqueles de pouca conversa e de grande estadão. Na quinta-feira das Dores, o sol ia descambando, o patrão mandou-me chamar, passar a cutuca no lombilho do matungo e a par­tir sem detença para o povoado, uns papéis de eleição bem arrumadinhos na patrona. (1938, 19).

    Nesta imbricação, vocábulos, como inda, variante de ainda, formado mediante a aférese da vogal [a], parece tornar o tempo da história mais próximo da narração, como se o narrador quisesse que os ouvintes participassem de sua aventura. A despeito de ser uma palavra muito usada em poesia dos estilos neomaneirista e romântico, como no Uraguai, de Basílio da Gama, quando diz: Inda conserva o pálido semblante/ Um não se quê de magoado e triste./ Que os corações mais duros enternece, perdeu seu caráter culto, sendo, hoje, quase só de uso popular.

    Por outro lado, signos, como cutuca, vocábulo característico do Estado de Goiás, Espécie de selim com dois arcões altos, usado sobretudo em cavalos de doma; lombilho, brasileirismo proveniente da região platina, que significa apeiro que substitui os arreios, a sela comum, o selim e o serigote; matungo, brasileirismo, com a semia de cavalo sem raça, e detença, vocábulo popular, significando sem demora, interligam-se com outros signos do idioleto caipira usados pelo narrador, no primeiro excerto, como piraí, azorrague de couro cru; bridas, rédea; cabresteiras, estacas, mulada, arrochos etc., inter-relacionando as duas vozes narrativas e as falas culta e popular. Esta interação linguística, além de instalar uma estética singular, conseguida por poucos regionalistas, confere uma especial sintonia entre o falante, o habitat e a profissão, componentes que caracterizam a personagem-narradora como ser social.

    Hugo de Carvalho Ramos, antecedendo o modernismo, quase não registra a fala caipira das personagens; mas uma fala culta em que entra o vocabulário sertanejo, às vezes mesclado de termos da linguagem caipira. No conto O Saci, a narrativa, ao explorar a lenda do diabólico duende, além de registrar palavras que lhe são afetas, como cabaça de mandinga, feitiço, serve-se de termos referentes ao sertão. Entre eles, o verbo topar, os substantivos grimpas, quebranto, trempe, jirau, cumbuca, rancho. Por outro lado, o narrador, para harmonizar sua linguagem com a das personagens, também emprega vocábulos pertencentes à fala do sertanejo, como sinhá, forma sincopada de senhora, formada mediante a síncope dos fonemas [o] e [r] e o iotacismo de [e]. Ora, esta palavra irá interligar-se com vancê e ioiô; a primeira resultante da troca do fonema [o] pelo [a], e a segunda, de sinhô, que sofre a aférese do [s] e a síncope do [nh], e a reduplicação da sílaba [iô]. Sabiamente, o narrador joga com os dois sentidos do vocábulo, uma vez que, na fala do narrador, ele carrega a semia de brinquedo, enquanto, ao final, na voz do preto velho, que conta a história ao narrador, ele funciona como forma de tratamento, como podemos verificar nos excertos que se seguem:

    Por aquele tempo o Saci andava desesperado. Tinham-lhe surripiado a cabaça de mandinga. O mo­leque, extremamente irritado, vagueava pelos fundões de Goiás.

    Pai Zé, saindo um dia à cata dumas raízes de mandioca castela que sinhá dona lhe pedira, topou com ele nos grotões da roça.

    O preto, abandonando a enxada e de queixo caído, olhava pasmado o negrinho que lhe fazia care­tas e trejeitos, a saltar no seu único pé, e fungando terrivelmente.

    Vancê quer alguma coisa? – Perguntou pai Zé admirado, vendo agora o moleque rodopiar como o pião do ioiô.

    [...]

    — Porque, Ioiô, concluiu o preto velho que me contava esta história — a todo aquele que viu e falou com o Saci, acontece uma desgraça.

    Além disso, a narrador, ao nomear as personagens femininas, o faz através da palavra , resultante de, pelo menos, duas transfigura­ções fônicas, porquanto, na primeira vez, advém da passagem de senho­ra para sinhá, e, na segunda, de sinhá, para , mediante a síncope dos fonemas [i] e [nh]. A linguagem, considerando o seu caráter simbólico e ontológico, materializa estados de ser que revelam a submissão e o po­der: e sinhá. A primeira, reduzida a uma única sílaba, objetiva o ser da escrava, subtraído à ontologia e ao social; a segunda, reduzida a duas, consubstancia estados de poderes econômico e social. Este procedi­mento não provém apenas de uma possível intenção de registrar a lin­guagem de determinadas camadas sociais: mas da imposição da língua ao manifestar um estado de ser determinado. A narrativa seria inverossímil e artificial, se o narrador empregasse uma linguagem que nada tivesse a ver com as condições sociais e ontológicas das personagens.

    Este processo criativo se confirma, mais uma vez, no conto Peru de roda, marcado pela linguagem escorreita do narrador; mas sempre condizente com a realidade nomeada: a vivência dos tropeiros. Para cristalizar as verdades das tropas, o narrador registra vocábulos específicos do arreamento, como cangalha, cabeçote, sobrecarga, arrocho, ou pa­lavras típicas das lides de quem se desloca constantemente, como trem­pe, estaca, ou que defina a profissão, em que se destacam, arrieiro, ou ainda, que descrevam aspecto físico, como cambito. A linguagem, em um primeiro momento, aquele em que o nome de Joaquim Percevejo se revela íntegro, procura substantivar o equilíbrio e a essência dele desprend­idos. Quando o nome, Joaquim, é suprimido, permanecendo apenas ­o sobrenome, as falas das personagens, principalmente a de Joaquim e a de seu homônimo, Quim, passam a revelar outro estado de ser: o do analfabeto:

    — O Passarinho tá danado de veiaco hoje, es­soutro dia tanto coçou no pau que deitou a carga no atoladô. Agora só qué memo cortá vorta no mato. Tá danado!

    Os status social e econômico das personagens se materializam pelas diferentes linguagens usadas pelo arrieiro e pelos coronéis Pedrinho e Ivo, que, não obstante ser definido como uma criatura inferior, decorrência do ódio zoomórfico que devotava ao vizinho, usa uma linguagem que o distingue dos peões e dos tropeiros, a evidenciar que a linguagem se adapta ao modus vivendi e essendi das personagens, revelando-lhes as faces social, econômica e cultural, como neste trecho em que Pedrinho se refere ao oponente:

    — Pois sim, pois sim: o Zeca Menino, seu capataz, era uma cabeça avoada. Malquistara-o com o administrador do porto de Mão de Pau, um velho correligionário, na passagem das últimas boiadas que por conta própria mandara às feiras de Minas. Demais, um perdido de mulheres... Estava precisando mesmo de um homem de confiança como Percevejo.

    Constatamos, deste modo, que as personagens agem e são em con­sonância com a linguagem. Ela é a matéria que as amolda na ficção. A sua verticalização ou a sua horizontalidade de seres social ou metafísico são substantivadas consoante as conformações linguísticas. É neste sentido que a linguagem assume um caráter mágico, porque homóloga do poder ou da submissão. Sobretudo, a linguagem é homóloga do ser em ascensão ou em queda ôntica ou ontológica.

    2 – O NOME SERTANEJO

    A linguagem, ao ser trabalhada artisticamente, assume feições físicas e metafísicas sui generis, só encontráveis no discurso literário. Assim, se o consórcio da face culta com a popular proporciona ao ficcionista a manifestação de ideologias alojadas na essência do discur­so, o batismo das personagens contribui sobejamente para que as ideo­logias se tornem ainda mais percucientes. Se a linguagem é a manifesta­ção do ser, como preceitua Martin Heidegger, o nome se apresenta como instrumento eficaz na determinação da essência, uma vez que o ser hu­mano só pode aspirar ao ser a partir do momento em que recebe um nome. Muitos são os ficcionistas que jogam com o significado e com as fontes etimológicas dos nomes, ou até com sua fragmentação, como faz Hugo de Carvalho Ramos com pai Zé, no conto O Saci. Se José significa Iavé acrescenta ou aquele que acrescenta, no momento em que se lhe suprime a sílaba [Jo], correspondente a inicial de Iavé, por­quanto pertencente à mesma raiz — em hebraico, as palavras derivadas do mesmo tronco semêmico e da mesma origem etimológica conservam o mesmo significado —, suprime também o sujeito do acréscimo. Resultado: em decorrência da fragmentação do nome, também os desejos de pai Zé não se concretizarão, porque é mutilado na própria essência.

    A magia da linguagem é tamanha que substantiva até o aspecto físico de pai Zé, como bem o descreve o narrador neste excerto:

    Arrastando as alpercatas de couro cru pelas ter­ras de Sô Feitor, pai Zé capengava satisfeito e incha­do com a promessa

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