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Raça e nacionalidade tropical: a obra de Gilberto Freyre para além da Antropologia culturalista
Raça e nacionalidade tropical: a obra de Gilberto Freyre para além da Antropologia culturalista
Raça e nacionalidade tropical: a obra de Gilberto Freyre para além da Antropologia culturalista
E-book345 páginas4 horas

Raça e nacionalidade tropical: a obra de Gilberto Freyre para além da Antropologia culturalista

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Sobre este e-book

O objetivo deste trabalho é oferecer ao leitor da obra de Gilberto Freyre, em especial de Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, uma linha interpretativa que permita considerar de forma adequada o lugar dos conceitos de raça e nacionalidade na obra do autor, sem reduzi-los a interpretações superficiais ou equivocadas que apontam Freyre como criador da "teoria da democracia racial" ou do elogio à "mestiçagem". Para tanto, retornei à obra de Franz Boas, seu orientador e autor que esteve sempre presente na estruturação dos argumentos de Gilberto Freyre, a fim de encontrar o conceito de raça nacional, o qual é usualmente ofuscado pela tradição culturalista atribuída à antropologia boasiana. No trabalho de Franz Boas, encontrei preocupações análogas àquelas presentes nas obras de Freyre, sendo assim possível me contrastar às afirmações de que o pensamento freyriano afastava-se da antropologia boasiana. Ao mesmo tempo, pude encontrar na noção de raça nacional uma das linhas mestras para a interpretação de Casa Grande & Senzala e de Sobrados e Mucambos. Em Freyre, a questão racial centra-se num emaranhado de relações entre variáveis econômicas, ecológicas, de adaptações dos organismos ao clima, da possibilidade de transmissão hereditária de tais adequações assim como da constituição e transmissão de elementos culturais ao que se chamava milieu – complexidades que nos levam muito além da miscigenação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de fev. de 2022
ISBN9786525221229
Raça e nacionalidade tropical: a obra de Gilberto Freyre para além da Antropologia culturalista

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    Raça e nacionalidade tropical - José Wellington de Souza

    CAPÍTULO I - RAÇA E CULTURA EM CASA GRANDE & SENZALA E SOBRADOS E MUCAMBOS

    Iniciar uma leitura crítica sobre a obra de Gilberto Freyre – especialmente tratando-se de Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), obras fundantes do pensamento do autor e que se destacam entre as mais importantes da sociologia brasileira – constitui uma longa e árdua tarefa. Tarefa dificultada pela tendência ao confinamento e à redução da obra a uma abordagem racial, que acaba por descambar em interpretações simplistas e muitas vezes equivocadas, manifestas na defesa da existência de uma suposta teoria da democracia racial, muito usada por comentadores de Gilberto Freyre, a despeito do fato de não haver uma única menção à mesma nas obras Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Outra acusação que pesa sobre a obra de Freyre diz respeito à tese do branqueamento, que se trata de um suposto plano elaborado pelas elites brancas para se diluir a raça negra na branca por meio da miscigenação, plano do qual Gilberto Freyre faria parte, mesmo que tal afirmação seja difícil de ser sustentada se nos restringirmos aos textos do autor.

    As interpretações que fundamentam a tese do branqueamento e a de democracia racial foram difundidas em obras que ganharam grande destaque não apenas entre os leitores acadêmicos, como entre o público em geral.

    A partir da década de 1970, a leitura dominante sobre a questão racial no Brasil, no âmbito das ciências humanas, foi, sem dúvida, estabelecida por uma vertente teórica proposta por Skidmore. Seria inocência colocar sobre os ombros desse autor toda a responsabilidade por uma vertente interpretativa cujos rizomas alcançam as matrizes mais profundas das pesquisas raciais, levadas adiante por décadas, em um vasto número de instituições de pesquisa, sem levar em conta fatores externos à obra e à consciência do próprio autor.

    Especificamente sobre a questão racial, os intelectuais brasileiros estariam, para Skidmore, a par das teorias racistas vindas do exterior, desde Joaquim Nabuco, estendendo-se até os autores modernistas brasileiros⁹. No que se refere à Casa Grande & Senzala (1933), o brasilianista afirma que tal obra teria aberto caminho para uma nova fase na discussão a respeito da questão racial ao demonstrar o quanto a absorção de técnicas indígenas e africanas havia sido positivas para a colonização nos trópicos, sendo capaz de oferecer ao brasileiro a oportunidade de se orgulhar de suas origens étnicas e da civilização tropical. Ao mesmo tempo, Skidmore afirma que Freyre foi um grande difusor da tese da democracia racial, ideologia que, apesar de soar como um elogio à miscigenação, teria sido, na verdade, uma ideia imbuída de um projeto das elites brasileiras para branquear a população¹⁰.

    Seguindo perspectiva similar à de Skidmore, embora com um vocabulário marxista, Carlos Guilherme Mota, na obra Ideologia da Cultura Brasileira- 1933-1974¹¹, aponta uma contradição entre a noção de cultura, em especial de cultura brasileira, e a de ideologia da cultura brasileira. Para o autor, a noção de cultura brasileira era na verdade o reflexo ideológico da perspectiva da classe dominante¹². Mota destaca Gilberto Freyre dentre os primeiros ensaístas que fortaleceram o mito da democracia racial, responsável por eclipsar as contradições de classe e de raça¹³. Tal perspectiva se tornara possível devido a uma leitura tendenciosa que Freyre teria feito das teorias de Franz Boas ao dar às raças um peso psicológico maior que o suposto pelo antropólogo, chegando a mencionar certas qualidades condicionadas pela raça¹⁴, motivado pela decadência dos valores de seu estamento oligárquico, que Freyre tentaria transmitir para as noções ideológicas de nacionalidade e de tropicalidade¹⁵.

    Seguindo o mesmo raciocínio, Carlos Hasenbalg traçou as linhas gerais de seu livro Discriminação e desigualdades raciais no Brasil¹⁶, produto de sua tese de doutorado, defendida em Berkeley no ano anterior, sob o título Race Relations In Post-Abolition Brazil: The Smooth Preservation of Racial Inequalities. A obra de Hasenbalg aborda questões referentes às desigualdades raciais no Brasil; às dificuldades de acessão social dos negros e as de cunho simbólico, consideradas pelo autor como ideológicas, que, aliadas às questões de classe, seriam responsáveis pela constituição de um movimento negro organizado no Brasil (HASENBALG, 1979, p. 237).

    Hasenbalg chama de armas ideológicas o branqueamento e a democracia racial, ambos produtos intelectuais das elites brancas dominantes, como forma de evitar conflitos sociais, ao enfraquecer a solidariedade entre os não brancos que evitavam sua identificação com a negritude¹⁷. Baseando-se na obra de Skidmore¹⁸, o autor denuncia um processo de branqueamento social e racial no Brasil ¹⁹e afirma que o sistema induz os não brancos a casarem-se com pessoas mais claras, de modo a maximalizar as chances de mobilidade ascendente de sua prole (HASENBALG, 1979, p. 240). Esperança de mobilidade social que teria sido, segundo o autor, capaz de induzir indivíduos negros ao cálculo racional de que suas chances de ascensão seriam diametralmente opostas à sua solidariedade étnica (HASENBALG, 1979, p. 241). De acordo com o autor, o ponto central da ideologia da democracia racial é a inexistência de preconceito racial no Brasil, com a existência de oportunidades econômicas e sociais para brancos e não brancos; A adesão dos brasileiros brancos à ideologia da democracia racial é tal que a distinção entre falsa consciência, como conjunto de concepções cuja inadequação não é clara para seus aderentes, e a falsidade de consciência ou hipocrisia pura, torna-se difícil²⁰.

    Na mesma linha, Lilia M. Schwarcz²¹ afirma que o branqueamento foi um fenômeno nascido entre os intelectuais brasileiros como resposta às teorias de cientistas estrangeiros, que apontavam para a impossibilidade de progresso e para a inviabilidade de constituição de uma nação desenvolvida no Brasil devido à degenerescência racial do povo brasileiro, tanto por sua formação por raças inferiores quanto pela miscigenação²². Para Schwarcz, a principal função da tese do branqueamento teria sido fazer frente às teorias racistas e à incômoda condição de país miscigenado, de maneira que a elite brasileira teria lançado mão de tal tese como forma de se contrapor às críticas estrangeiras a respeito das raças miscigenadas no Brasil. Assim, a autora destaca o esforço de João Batista Lacerda no I Congresso Internacional das Raças, em 1911, onde o então diretor do Museu Nacional apresenta a condição racial brasileira como um problema cuja solução se daria pelo processo de miscigenação e de branqueamento. Os argumentos de Lacerda estavam cristalizados nas cores compostas em tela por Modesto Broccos em A Redenção de Cam, quadro em que o pintor põe em cena o processo de branqueamento brasileiro, capaz de tornar branco o filho de pai caboclo e mãe mulata, e neto de uma velha negra²³.

    Tais argumentos foram ganhando terreno e sendo assumidas, de forma direta ou não, por um grande número de intelectuais, mas também por aqueles que não são especialistas no assunto, tornando-se lugar comum nas críticas direcionadas à obra de Gilberto Freyre, entre jornalistas, professores e, consequentemente, o grande público.

    Desprezando as obras, o mais usual é que os comentadores de Gilberto Freyre tomem como certo o pressuposto de que o autor sustentava uma visão paradisíaca da sociedade e de que fazia a descrição das relações existentes entre os distintos grupos humanos durante a colonização e a formação nacional do Brasil como sendo um exemplo sui generis de harmonia e confraternização, apesar de estarem esses grupos separados por raças, ou etnias, e pelas posições sociais extremadas nas figuras dos senhores e escravos.

    A adoção de tais perspectivas traz um sério obstáculo a uma leitura hermenêutica da obra de Freyre. Assim, qualquer esforço de utilização de seu pensamento, que não seja no intuito de desconstruí-lo, incide na tentativa de repudiar ou extirpar todas as discussões que envolvem raça ou relações raciais, por serem consideradas ultrapassadas, demasiadamente complicadas ou mesmo politicamente delicadas, fato que tende a reduzir o trabalho de Freyre a interpretações meramente culturais.

    Ao contrário do que se tem feito, pretendo apresentar aqui uma leitura baseada na leitura das definições de raça e cultura presentes na obra do autor, que me parecem estar apoiadas em um projeto de definição da civilização tropical, baseado em teorias raciais que buscam definir para o Brasil uma raça genuinamente nacional, como ocorreu e continua na formação da grande maioria dos Estados Nacionais Modernos. Para tanto, pretendo analisar e tencionar as definições de raça e cultura na obra de Gilberto Freyre, tentando decifrar o sentido que o autor oferecia a tais termos, baseando-se da teoria antropológica de Franz Boas²⁴, sem, no entanto, tomar os termos raça e cultura como antagônicos, a exemplo de comentadores como Ricardo Benzaquen de Araujo²⁵ e Celso Castro²⁶, entre outros, na tentativa de entender esses termos como complementares, como o faz o próprio Boas.

    Feito isso, o presente capítulo tem a intenção de apresentar, de forma um pouco mais aprofundada, as interpretações a respeito da obra de Gilberto Freyre, na busca por demonstrar suas falhas argumentativas e, ao final, propor uma interpretação alternativa às que já foram consagradas.

    1.1. GILBERTO FREYRE E A ANTROPOLOGIA CULTURALISTAS.

    Diante da problemática produzida pela discussão racial, manifesta na interpretação que usualmente se faz sobre a obra de Freyre, tanto como acusação da presença de uma teoria da democracia racial quanto da suposta existência de uma tese do embranquecimento, a solução encontrada por um grande número de intelectuais interessados na interpretação do Brasil contida em Casa Grande & Senzala e em Sobrados e Mucambos foi acirrar a oposição entre os termos raça e cultura na obra do autor, supervalorizando o último termo – recurso que, ao que tudo indica, não aparecia como matriz válida para os primeiros leitores de Casa Grande & Senzala, como testemunhou Antonio Candido, em um prefácio escrito em 1967, para Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda²⁷ Conforme Antonio Candido, o lançamento do primeiro livro de Gilberto Freyre causou um impacto excepcional à sua geração. Gilberto Freyre, de acordo com Candido, havia inaugurado com seu Casa Grande & Senzala o uso no Brasil de interpretações antropológicas boasianas, o que trouxe implicações revolucionárias para os jovens estudantes de ciências humanas em relação a definições de termo como raça, cultura e clima, e, especialmente em relação à valorização sociológica de variáveis como organização familiar, religião, alimentação e sexo. Além disso, a obra teria sido considerada portadora de tamanha importância histórica e sociológica, que acabou por oferecer ao estudante uma ponte entre o que Candido chamou de o naturalismo de Euclides da Cunha, Silvio Romero e Oliveira Vianna, e a nova sociologia brasileira, que traria a lume nomes como o de Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Por fim, Antonio Candido declara ter sido, ele mesmo, afetado pela renovação instaurada por Casa Grande & Senzala nas então ainda incipientes ciências sociais no Brasil, obra considerada pelo prefaciador como prenhe de um poder revolucionário até então nunca visto²⁸

    Tais afirmações parecem estar afinadas com tantas outras que tendem a centrar todo o mérito do trabalho de Freyre – caracterizado como de inegável impacto libertador para o pensamento social brasileiro, conforme Antonio Candido – na inovação metodológica adotada a partir do uso da então revolucionária teoria boasiana. Tal vertente antropológica se destacou especialmente durante a primeira metade do século XX, e ainda mantem grande peso na sociologia norte-americana, embora destituída de sua discussão raciais.

    Entendimento semelhante a respeito da obra de Franz Boas aparece na seleção de artigos do autor, destinada a jovens estudantes das Ciências Sociais, organizada, selecionada e traduzida pelo professor Celso Castro, sob o título de Antropologia Cultural. Nela, foi possível ler, pela primeira vez em língua portuguesa, alguns trabalhos de Boas. No curto volume, com cinco textos, apenas um trata do tema racial, enquanto outros quatro abordam questões metodológicas e críticas feitas por Boas ao método comparativo e difusionista, no qual se baseava a antropologia no início do século XX²⁹, em detrimento do relativismo cultural e da valorização das diferentes culturas, apregoados pelo antropólogo.

    A justificativa apresentada por Castro para a escolha de artigos acerca das questões metodológicas baseia-se no fato de se tratar de uma obra destinada à introdução do tema para estudantes universitários. Apesar da coerência, algumas conclusões apresentadas em seu prefácio são um tanto problemáticas, especialmente no que se refere à relação entre raça e cultura na teoria boasiana e às consequências de tais teorias culturalistas na obra de Gilberto Freyre, restringindo-se a citar um famoso trecho da introdução de Casa Grande & Senzala, no qual Freyre assume sua dívida intelectual para com o seu antigo professor da Universidade de Columbia. Na breve citação Castro menciona a mudança da perspectiva na perspectiva de Freyre em relação à mestiçagem no Brasil, graças à intervenção de Franz Boas e sua distinção entre raça, ambiente e cultura.

    No trecho citado, Freyre afirma:

    Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos – descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a impressão de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: the fearfully mongrel aspect of most of the population. A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes.

    Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio. Também no da diferenciação de entre hereditariedade de raça e hereditariedade de família³⁰

    No entanto, a citação não é comentada ou problematizada por Castro, sendo apenas complementada pelo enxerto de uma estrofe do não menos famoso poema de Manoel Bandeira, intitulado Casa Grande & Senzala:

    Essa história de raça,

    Raças más, raças boas

    -Diz o Boas-

    É coisa que passou

    Com o Franciú Gabineau

    Pois o mal do mestiço

    Não está nisso

    Está em causas sociais,

    De higiene e outras que tais:

    Assim pensa, assim fala

    Casa Grande & Senzala.

    O poema serve então de conclusão aos argumentos esboçados e dá ao leitor a impressão de que a questão racial tenha sido superada por Freyre ou, ao menos, posta em segundo plano, pelo culturalismo da antropologia boasiana. Tal concepção fazia da antropologia boasiana portadora da capacidade ímpar de substituir o uso do termo raça, como elemento explicativo da constituição dos homens e dos grupos humanos, pela noção de cultura, entendido como o elemento explicativo dominante e o grande trunfo tanto na obra de Franz Boas quanto em Casa Grande & Senzala.

    De fato, a compreensão da perspectiva boasiana como antirracista e de Boas como fundador de uma escola antropológica chamada culturalista não destoa da análise de pesquisadores internacionais dedicados à elaboração de uma narrativa da histórica do corpo da disciplina antropológica, conforme afirmam os antropólogos Thomas Hylland Eriksen e Finn Sivert Nielsen, no livro História da Antropologia (2007), por exemplo. Nele, os autores afirmam a existência de tais virtudes em Franz Boas ao elegerem-no como um dos fundadores da disciplina antropológica ao lado de Malinowski, Radcliffe-Brown e Marcel Mauss.

    A respeito da atuação de Boas contra a antropologia evolucionista e racista, a qual contrapôs sua valorização da cultura, os autores são enfáticos:

    Boas foi um dos primeiros e mais incansáveis críticos do racismo e da ciência inspirada por ele – esta contava com defensores entre o establishment da antropologia vitoriana. Esses antropólogos haviam afirmado que cada raça tinha um potencial inato distintivo para desenvolvimento cultural. Boas respondeu que a cultura era sui generis – sua própria fonte – e que diferenças inatas não podiam explicar o volume impressionante de variação cultural que os antropólogos já haviam documentado. O termo relativismo cultural, a que nos referimos várias vezes acima, foi efetivamente cunhado por Boas³¹.

    Dessa forma, parece ser indubitavelmente legítimo considerar como sendo plausível a alegação de que Freyre pretendeu valorizar os elementos culturais sobre os biológicos, na construção de sua obra, em dívida com os ensinamentos de Franz Boas, especialmente quando escreveu Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, o que parece estar comprovado pelo trecho do prefácio à primeira edição de Casa Grande e Senzala, citado por Castro. Nele, Gilberto Freyre afirmou ter Franz Boas atuado em sua formação intelectual de maneira ímpar, tendo lhe possibilitado repensar toda a história e o destino da sociedade brasileira, ao redefinir raça e cultura, tornando, assim, possível superar os estigmas que pesavam sobre as raças miscigenadas. Tais afirmações também foram feitas por Ricardo Benzaquen de Araujo, que afirmou se possível encontrada em diversas outras passagens de Casa Grande & Senzala assim como de Sobrados e Mucambos, citações que confirmam o apego de Freyre em relação ao pensamento de Boas³².

    No entanto, Ricardo Benzaquen de Araujo afirma haver uma relação ambígua entre raça e cultura nos livros de Gilberto Freyre, que, para além das descrições culturais, estão repletos de citações a respeito de raças distintas assim como de uma detalhada descrição de características raciais que teriam facilitado, em alguns casos, e dificultado em outros, a adaptação de determinados grupos humanos, entendidos quase como que naturalmente aptos para desenvolver-se em um determinado clima. Tais reflexões servem de base para a famosa afirmação de Freyre a respeito do fracasso de europeus não ibéricos no processo de povoação de regiões tropicais. De acordo com Araujo, tais declarações soam realmente como uma contradição e dão o aspecto de confusão no uso dos termos raça e cultura, o que inclusive já havia sido denunciado por Luiz Costa Lima³³ que entendia tal confusão de conceitos como uma característica inerente à obra de Gilberto Freyre. A posição de Costa Lima também foi comentada por Araujo, que afirmou:

    Com efeito, como já foi dito antes, desde o texto de Costa Lima (1989), a maior dificuldade que adviria do fato de Gilberto empregar noções tão contraditórias quanto as de raça e cultura residiria, exatamente, na extrema imprecisão que passa então a povoar o seu texto. Esta imprecisão, obviamente, tende só a aumentar com o aparecimento da idéia de clima, inclusive porque todas elas parecem ser tratadas em pé de igualdade, consideradas como equivalentes e quase sinônimas, numa indefinição que poderia apenas afastar a sua reflexão dos critérios que orientam a atividade científica³⁴.

    Na tentativa de explicar a imprecisão no uso de termos por Gilberto Freyre, Ricardo Benzaquen afirma que ela se dá pelo fato de o autor ter feito uma leitura pouco ortodoxa da tradição fundada por Boas. Freyre, inclusive, teria lançado mão de uma definição muito específica do termo raça, que poderia ser entendido em relação ao clima e às variáveis do meio físico. Isso faz com que Araujo alegue que Gilberto Freyre:

    (...) opera com o conceito de raça, mas transmite a curiosa sensação de que não quer se comprometer com o seu sentido mais usual, deixando-nos diante de um dilema ou, pelo menos, obrigando a questão a permanecer em aberto. Acredito, porém, que este pequeno enigma possa começar a ser elucidado se introduzirmos na discussão uma terceira categoria, o meio físico, cuja importância na costura das teses apresentadas em CGS não pode de maneira alguma ser desprezada³⁵

    Para Araujo, as definições do meio físico, ou meio ambiente, são elementos ainda pouco explorados na obra de Gilberto Freyre, especialmente nos que se refere à definição precisa da concepção de raça. Nesse contexto, a variável climática, ou mais precisamente a noção de meio ambiente, tem um papel preponderante para o perfeito entendimento da definição racial oferecida por Freyre. Nesse sentido, Araujo buscou demonstrar que a definição de raça presente em Casa Grande & Senzala e em Sobrados e Mucambos não é a definição genética ligada à tradição galtoniana-mendeliana com a qual estamos mais acostumados a lidar, mas sim uma definição baseada na acepção neolamarckiana do termo. De acordo com a teoria neolamarckiana, muito presente entre os intelectuais brasileiros durante as primeiras décadas do século XX, era preciso levar em consideração as alterações que o meio ambiente exerce sobre os corpos e a possibilidade da transmissão hereditária de tais alterações por meio das gerações, ao contrário do que é defendido pela genética mendeliana e sua noção de transmissão imutável de caracteres herdados. Por isso é que, em Freyre, a noção de

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