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Márcio Braga Coração Rubro-negro: Histórias do Tabelião, Cartola e Político
Márcio Braga Coração Rubro-negro: Histórias do Tabelião, Cartola e Político
Márcio Braga Coração Rubro-negro: Histórias do Tabelião, Cartola e Político
E-book373 páginas4 horas

Márcio Braga Coração Rubro-negro: Histórias do Tabelião, Cartola e Político

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Sobre este e-book

Ele incorpora três dos estereótipos mais apedrejados do Brasil: o tabelião, o cartola e o político. Foi o dirigente que ficou mais tempo à frente do Flamengo, assumindo o clube em situações dramáticas e comandando as conquistas mais importantes. É o notário mais antigo em atuação no país, um dos nomes mais prestigiados da profissão. Viveu a política desde os tempos de JK e participou de episódios decisivos da Campanha das Diretas, da Nova República e da Constituinte ao lado de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e outros grandes nomes da história da redemocratização.
Marcio Braga tem sido campeão na vida, campeão no sentido de vencedor e também no sentido mais forte de lutador e combatente das boas causas. Este livro é uma coleção de histórias dessas brigas nos mundos do futebol, da política e dos negócios. É também uma coleção de lembranças saborosas e surpreendentes, desde a origem judaica e a saga dos antepassados na Amazônia até a intimidade com o presidente Juscelino Kubitschek, a construção de Brasília, as delícias dos Anos Dourados no Rio de Janeiro, a euforia no jet set e os amores de cinema, com rosas vermelhas, champanhe e poesia.
Cenários e personagens se multiplicam em Coração Rubro-negro. Épocas e aventuras se sucedem. E em todas as histórias do livro está viva a paixão da maior torcida do mundo - a Nação Rubro-negra. Mesmo sendo parte desta seita faz tanto tempo, Marcio não se atreve a explicar o que é a entidade mágica chamada Flamengo, essência e comunhão de gente de todo jeito e todo lugar, pelo Brasil e pelo planeta. Ele aprendeu e ensina que esse mistério, que está em cada palavra deste livro, nunca será desvendado por qualquer ciência. Sabe-se que habita a alma do torcedor enlouquecido e assombra o espírito do adversário.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de dez. de 2013
ISBN9788564116429
Márcio Braga Coração Rubro-negro: Histórias do Tabelião, Cartola e Político

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    Márcio Braga Coração Rubro-negro - Marcio Braga

    1.

    SÃO JUDAS TADEU

    UMA BOMBA-RELÓGIO NO PEITO

    Em 2008, cumpria meu sexto e último mandato como presidente do Flamengo. Tínhamos conquistado o bicampeonato carioca naquele ano, e conquistaríamos, em 2009, o pentatricampeonato carioca e o hexacampeonato brasileiro. Como se pode imaginar, foi, para mim, um período de grandes emoções. Um belo dia, acordei com os braços tomados por pequenas manchas escuras.

    Não era para me preocupar muito, mas mesmo assim procurei o dr. Paulo Terra, com quem me consulto há muitos anos.

    Médico patologista de renome, o dr. Paulo Terra é um daqueles meticulosos médicos da antiga, que infelizmente se tornam cada vez mais raros. Para ele, cada pequeno sinal que o corpo emite tem um significado que precisa ser devidamente pesquisado e compreendido. Mas aquelas manchas escuras... Aquilo ele nunca tinha visto, não tinha ideia do que podia ser.

    Recomendou-me que procurasse um clínico geral, que talvez tivesse uma resposta para aquele mistério. Fui ao clínico geral, que, no entanto, deu-me um diagnóstico muito pouco preciso. Para ele, a origem daquelas manchas tinha um nome: PDV — ou seja, era simplesmente a porra da velhice. Disse que não havia motivos para me preocupar.

    Energia das filhas, em 1976, na campanha da FAF — Frente Ampla pelo Flamengo.

    Mas eu já estava preocupado. Nunca me saiu da cabeça as circunstâncias da morte de Gilberto Cardoso, um dos melhores presidentes que o Flamengo já teve. Torcedor apaixonado, em 1955 ele assistia no Maracanãzinho a uma partida de basquete entre Flamengo e Esporte Clube Sírio Libanês. Era a final do Campeonato Carioca, um jogo difícil, cheio de lances emocionantes.

    A partida estava acabando e tudo indicava que o Flamengo ia perder. Mas quando faltava um segundo para terminar o jogo, Augusto Vasconcelos, o Guguta, fez a cesta salvadora, e o Flamengo conquistou o título, vencendo por 45 a 44. A torcida explodiu em contentamento. Nessa hora, Gilberto Cardoso começou a passar mal.

    Ele era médico, deve ter pressentido o risco que corria. Poderia ter sido atendido pela equipe médica que dá plantão no estádio. Mas preferiu pegar seu automóvel, sozinho, e buscar socorro fora dali. Conseguiu dirigir alguns quilômetros, até a Praça da Bandeira, onde parou. Morreu de infarto, dentro do carro. O Maracanãzinho hoje se chama Ginásio Gilberto Cardoso. Uma estátua foi inaugurada, em sua homenagem, na sede da Gávea. Mas seria muito melhor que continuasse vivo.

    Voltei ao dr. Paulo Terra. Desta vez ele me prescreveu uma batelada de exames, que não acusaram nada. Fiz novos exames, e o resultado foi o mesmo.

    Essas idas e vindas ao dr. Paulo Terra duraram alguns meses. Até que, num insight, ditado tanto pela intuição como pela longa experiência de médico, ele sugeriu: Por que você não procura seu cardiologista?

    Então a coisa se complicou, porque eu não tinha cardiologista. Expliquei ao dr. Paulo Terra que meu coração sempre funcionara muito bem, nunca tivera problemas cardíacos. O único cardiologista que havia passado pela minha vida fora um jovem médico que me examinara quando operei uma hérnia de disco com o dr. Paulo Niemeyer, na Clínica São Vicente. O cardiologista da equipe se chamava Cláudio Domenico. Então procure ele, é um dos melhores do Rio de Janeiro, disse o dr. Paulo Terra.

    O dr. Cláudio Domenico me prescreveu novos exames e um teste de esforço na esteira ergométrica. Fiquei de oito da manhã até o meio dia no Laboratório Sérgio Franco, na esquina da Ataulfo de Paiva com João Lyra. Levei minha filha Joana para me fazer companhia. E, com orgulho de ex-atleta, comemorei com ela o sucesso da minha performance! Tinha de correr por oito minutos. Quando a enfermeira mandou parar, já tinha corrido onze, e ainda me sentia com gás para correr o dobro.

    Saí de lá saltitante. Matei a pau!, comemorei com minha filha. Eu mesmo fiquei impressionado com minha boa forma. Tinha 72 anos, mas o vigor de um jovem de 20! Minha alegria, no entanto, não duraria muito tempo...

    Fiz o teste de esforço numa segunda-feira. Na terça-feira, ao final da tarde, recebi um telefonema do dr. Cláudio Domenico: Olha, preciso falar com você com urgência.

    Nesses momentos a gente sente um friozinho na barriga. Percebi que as coisas não tinham saído tão bem como imaginava. Fui ao seu encontro às nove da manhã do dia seguinte e ele disse que, pelo resultado do teste na esteira, meu caso merecia uma atenção maior. Precisava fazer um cateterismo.

    Não estava preparado para uma notícia como essa, mas tenho o espírito muito prático. Tinha de fazer cateterismo? Então vamos fazê-lo! Quando? Hoje mesmo!, disse o médico. Fiz o exame horas depois. O resultado não foi nada bom.

    O cateterismo revelou um problema sério nas coronárias. Tratava-se, explicou-me o dr. Cláudio Domenico, de uma lesão bastante traiçoeira, pois é de difícil diagnóstico e quase imperceptível nos exames de rotina. É perigosa, sobretudo, porque não apresenta sintomas. Os cardiologistas conhecem este defeito anatômico como widow’s maker, ou seja, fazedor de viúvas. Tem esse nome porque mata uma porção de gente de repente, gente que não tem a menor ideia de que leva uma bomba-relógio dentro do peito. A coronária fecha de repente, o coração para, e o cara morre na hora.

    O dr. Cláudio Domenico não fez rodeios: disse que eu tinha de me operar com a maior urgência. Foi um choque. Mais uma vez, porém, meu senso prático se manifestou. É preciso operar, vamos operar! O único problema é que eu tinha um compromisso em Brasília naquela semana. Mas garanti que na segunda-feira, já de volta, trataria logo da internação. Mas o médico tinha outros planos: Não, esquece Brasília. Não dá para esperar. Você tem de se internar hoje mesmo.

    Ele perguntou se eu conhecia algum cirurgião. Disse que não. Mas me lembrei de que o dr. Ivo Pitanguy havia se submetido a uma cirurgia cardíaca um mês antes. Perguntei quem o havia operado. Foi o dr. Ricardo Miguel. É este que eu quero, respondi.

    O dr. Ricardo Miguel me operou no final da semana, na Clínica São Vicente. Como se pode imaginar, não é uma cirurgia que se tire de letra. Lembro que logo depois que o general Figueiredo operou o coração em Cleveland, um repórter perguntou como se sentia. Figueiredo respondeu que se sentia como se uma jamanta tivesse passado por cima dele.

    E era exatamente isso que eu sentia. Os médicos, para chegar ao coração, têm de serrar o externo, separando as costelas para um lado e outro. Quando o presidente Figueiredo operou, eles juntavam e grampeavam as duas metades do osso depois da cirurgia. Hoje, em vez dos grampos, usam uma cola especial. Mas a sensação é a mesma. Uma tosse, um espirro, causam dores terríveis no peito.

    Passei o carnaval de 2009 entubado, esforçando-me para não tossir. Em compensação, meses depois, pude retornar ao Flamengo renovado, para comemorar o tricampeonato do clube.

    Agradeço por tudo ao dr. Paulo Terra. Agradeço ao dr. Carlos Domenico. Agradeço ao dr. Ricardo Miguel e sua equipe. Não posso deixar de agradecer também à maravilhosa psicanalista Gladis Brun, que segurou minha cabeça e segura até hoje.

    Mas tenho certeza de que iria morrer se não fosse a intervenção de São Judas Tadeu. Devo minha vida a ele.

    Foi São Judas Tadeu que botou aquelas manchas escuras na minha pele.

    MINHA RELIGIÃO

    Meus amigos sabem como gosto de me qualificar quando se trata de fé: sou filho de Abraão, de ventre judaico, carioca e flamengo de nascimento, devoto de São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis, padroeiro do meu time do coração. Tudo o que quero peço a ele, e ele me concede. Mas sou esperto: não peço nada de totalmente impossível, pois, embora ele seja o santo das causas impossíveis, há coisas que nenhum santo pode resolver. Sempre que passo por algum aperto, uma preocupação, um perrengue qualquer, olho para o alto e invoco o padroeiro. Ele sempre me ajuda.

    Não tenho mesmo dúvida de que foi São Judas Tadeu quem pôs aquelas manchas nos meus braços para me alertar de algo muito pior que estava para acontecer e que felizmente não aconteceu. Depois da operação, ainda me submeti a outros exames hematológicos, orientado pelo dr. Daniel Tabak, especialista na matéria. Não se chegou a nenhuma conclusão. Assim como as manchas surgiram, desapareceram de repente.

    Muita gente me diz que o santo padroeiro do Flamengo deveria ser São Jorge, que é o santo do povão. Só que as ligações do clube com São Judas Tadeu têm uma história maravilhosa, que vale a pena ser contada. Remonta aos tempos do padre Góes, pároco da igreja de São Judas Tadeu, no Cosme Velho. Hoje há até uma estátua dele lá, numa praça, pois ele era um tipo muito popular, todo mundo gostava dele.

    O padre Góes — nunca tinha visto isso num religioso — era Flamengo doente. Quer dizer, doente não, pois, para os rubro-negros, doentes são aqueles que torcem para outros times. O fato é que o padre Góes torcia pelo Flamengo, rezava pelo Flamengo, fazia missa e promessa para o Flamengo ganhar. Ia ao Maracanã de batina e carregava um inseparável guarda-chuva. Talvez por isso, quando cheguei à presidência do clube pela primeira vez, em 1977, já havia esse culto lá, e passamos a cultivar a tradição.

    Botávamos a bandeira do Flamengo no altar da igreja, no dia 28 de outubro, o dia de São Judas Tadeu. Levávamos as camisas do time para serem benzidas, levávamos inclusive os jogadores para receber a bênção. Depois, entronizamos uma imagem do santo no vestiário e construímos um pequeno oratório nos jardins da Gávea. E, não satisfeitos com essas homenagens, edificamos ao lado das piscinas uma capela onde se reza e se celebra missa. De protetor do Flamengo, o santo passou também a ser meu protetor, e eu não tenho queixas dele, muito pelo contrário.

    Depois que padre Góes morreu, assumiu no lugar dele o monsenhor Bessa, um pároco típico, muito sério, meio intelectualizado. Tinha sido secretário do cardeal Dom Eugênio Sales, por quem foi nomeado para o cargo, e não entendia nada de futebol. Resolvi me encontrar com ele para falar daquela tradição que ligava São Judas Tadeu ao Flamengo. Falei outras coisas também, como das vitórias do time que eu pessoalmente atribuía à intervenção do santo. Enfim, acabei convertendo o monsenhor Bessa. Basta dizer que, no fim da vida, ele rezava missa com a camisa do Flamengo por baixo da batina.

    Com o sucessor dele, o padre Benedito, foi a mesma coisa. Este tinha sido auxiliar do monsenhor Bessa e conhecia a tradição da igreja, seus vínculos com o Flamengo. Era um padre pretinho, baixinho, de 1,60m de altura, mas um gigante na sua paixão pelo time! Meu casal de filhos gêmeos foi batizado por ele, e em qualquer solenidade que acontecia no Flamengo lá estava o padre Benedito dando sua bênção. Ele benzia até o vestiário do clube. Quando a situação estava ruim, o que se ouvia era isso: Chama São Judas Tadeu, traz o padre Benedito! Fazíamos um auê, levávamos camisa à igreja, íamos à missa rezar para que o Flamengo superasse suas dificuldades. Sempre deu certo. Padre Benedito morreu em 2012. Fiz questão de ir ao seu enterro, no Caju. Só havia padres, os únicos leigos — além da humilde família do padre Benedito — éramos eu e o Washington Rodrigues, outro alucinado pelo Flamengo, o melhor comentarista de futebol na ativa no Brasil, um craque à altura de João Saldanha. O melhor de todos os cronistas foi o genial Nelson Rodrigues, o único que entendeu de futebol. Depois, só o Tostão.

    Mas voltando a São Judas, tudo começou com o padre Góes, que era um exagerado. Ele costumava dizer: Quem fez essa igreja aqui foi a torcida do Flamengo, devemos tudo isso à torcida do Flamengo! Imagine se a torcida do Flamengo tinha dinheiro para construir aquela beleza de igreja!

    Fiz todo esse relato para dizer que ser rubro-negro, ter um coração rubro-negro, não deixa de ser uma espécie de religião. Sei que para o torcedor de outro time é difícil de entender isso, mas não para o do Flamengo. Eu, por exemplo, sou um torcedor rubro-negro típico. E um torcedor como eu nem está tão interessado assim em conquistas espetaculares.

    Vibrei, evidentemente, com o hexacampeonato brasileiro, em 2009. Tinha vibrado, no mesmo ano, com o pentatricampeonato carioca e com outras grandes vitórias. Mas fico feliz por muito menos. Qualquer vitória me alegra. Se o Flamengo jogar num domingo com um time irrelevante, da terceira divisão, e vencer de 1 a 0, sei que vou acordar na segunda-feira com o coração leve, feliz da vida, pronto para enfrentar uma semana de trabalho.

    Mesmo fora da presidência do clube, continuo trabalhando pelo Flamengo todo dia. Uma vez, marquei uma audiência com o Gilberto Gil numa quinta-feira da Semana Santa, no tempo em que ele era ministro da Cultura. Era um assunto urgente e aquele era o único dia que ele tinha para me receber. Quando cheguei ao seu gabinete, no Palácio Capanema, Gilberto Gil comentou: Puxa, Marcio, impressionante a sua disposição! Numa quinta-feira como esta, véspera de feriadão, ninguém trabalha! E eu respondi: Não tenho dia para trabalhar para o Flamengo, ministro, pode ser sábado, domingo ou feriado. O dia que você podia dispor para mim era este e, então, estou aqui.

    Pelo Flamengo, já me empenhei em missões difíceis e delicadas como, por exemplo, o meu encontro com o papa João Paulo II, quando ele esteve pela primeira vez no Brasil, em 1980. Considero isso um ato de fé. Cismei que ia entregar uma bandeira do Flamengo ao papa, e a duras penas consegui. Fui eu quem inventou essa história de oferecer presentes, bandeirinhas e camisas do clube aos papas, e tenho mantido a tradição, da mesma forma que o culto a São Judas Tadeu no Flamengo.

    Marquei audiência, em Roma, com Bento XVI e mais recentemente com o papa Francisco. Os dois receberam camisas de presente, com os respectivos nomes impressos nas costas. Em geral, eles olham, riem, mas não entendem muito. Talvez o papa Francisco tenha entendido, pois ele gosta de futebol e, como se sabe, torce pelo San Lorenzo na Argentina. Mas o papa Bento XVI ficou me olhando com aquela cara de quem não estava entendendo nada. Não faz mal. É uma boa tática de fazer a imagem do Flamengo circular pelo mundo.

    Entregar a bandeirinha ao papa João Paulo II foi bem mais difícil, pois decidi fazer isso na marra, sem avisar os assessores de Sua Santidade. Soube que ele iria visitar o morro do Vidigal e rumei para lá com minha filha Marcia. Às seis da manhã já estávamos na avenida Niemeyer à espera da comitiva papal.

    Junto com minha filha, fiquei no sopé do morro, anonimamente, esperando o papa no meio de uma pequena multidão contida por cordões de isolamento. Senti-me como se estivesse assistindo a um Fla-Flu na antiga geral do Maracanã.

    Tinha escolhido uma posição estratégica para interpelá-lo. Só que o papa atendeu aos acenos de uma senhora e rumou para o lado oposto, a fim de cumprimentá-la. Ele já ia embarcar no carro oficial e tudo parecia perdido, quando a Divina Providência interveio na hora H, colocando o cardeal Dom Eugênio Sales bem à minha frente.

    Dom Eugênio era arcebispo do Rio e me conhecia. Percebendo minhas agruras, prontificou-se a ajudar, e perguntei se ele não se importaria de entregar aquela bandeirinha vermelha e preta para o papa. Num gesto de desprendimento cristão, ele disse: Sou vascaíno, mas vou fazer esse favor ao Flamengo. E assim, por causa do meu empenho, e graças à ajuda do simpático cardeal, correria mundo afora aquela foto do papa polonês sorrindo e levando à mão uma bandeirinha do Flamengo, de cujo significado e procedência, por sinal, não devia ter a menor ideia.

    UM MARCIO E QUATRO CLICHÊS

    Referi-me a missões difíceis e delicadas, e os meus encontros com os três papas representam o lado bom e ameno de ser um dirigente rubro-negro. São missões que você cumpre sorrindo. Por outro lado, há aquelas difíceis e amargas que poderiam muito bem ter feito o meu coração estourar de vez. Envolvem desde o desafio de conseguir dinheiro para pagar o décimo terceiro salário dos empregados no clube no fim do ano, a macroproblemas, envolvendo altas instâncias do governo federal.

    Entre 1977 e 2009, cumpri oito mandatos como presidente do Conselho Diretor ou do Conselho Deliberativo do Flamengo. Fui o dirigente que esteve por mais tempo à frente do clube e o comandou nas maiores vitórias. Mas esta nunca foi uma tarefa fácil. Dirigir o Flamengo é matar um leão por dia, lutar continuamente contra a falta de recursos, de compreensão e de apoio. Gostei de ser presidente do Flamengo, entre outros motivos, porque gosto de brigar pelas causas justas.

    Foi assim também na minha vida de político. Quando vejo um bafafá dentro do Congresso e penso nos meus tempos de deputado, morro de saudades. Daria tudo para estar lá, participando também dos debates. E até hoje sou convocado quando há algum problema grave ou impasse na minha atividade profissional de tabelião, que exerço há mais de cinquenta anos. Bato na porta das autoridades, defendo posições, negocio e discuto.

    No momento em que escrevo este livro, participo de uma briga desigual com o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que passei a considerar um inimigo não apenas do Flamengo, mas de todos os clubes esportivos do Rio.

    Anos atrás, ele vetou um projeto de revitalização da nossa sede da Gávea, a ser executado com recursos privados, que daria vida nova a uma importante área da Zona Sul do Rio, hoje entregue às traças, onde muita gente evita até transitar.

    Entre outras coisas, o projeto previa um estádio de porte médio, para cerca de 30 mil pessoas, que poderia atender o Flamengo em grande parte dos jogos em que tem mando de campo e propiciar receitas sustentáveis ao clube. O governador vetou com o argumento de que a população da Zona Sul não aprovava o projeto, embora uma pesquisa do Ibope o tenha desmentido cabalmente.

    Mais recentemente, num gesto de alta traição, pois ele garantiu duas vezes que o Flamengo iria participar da concorrência para a privatização do novo Maracanã, Sérgio Cabral cometeu o absurdo de ceder, numa ação entre amigos, a administração do estádio à mesma empresa de construção que fez a milionária obra da reforma, com grande prejuízo para a sociedade e para o futebol do Rio de Janeiro. A reforma custou 1,3 bilhão de reais e foi paga com dinheiro público, ou seja, dinheiro do contribuinte.

    O Flamengo tem de ter papel de destaque na gestão do Maracanã, porque responde por 70% da economia do futebol no estado. Quem é que enche as arquibancadas do Maracanã de gente há 63 anos? São os clubes cariocas, especialmente o Flamengo, responsável pela maior parte da arrecadação.

    Pela intervenção desastrosa desse governador, o Flamengo foi impedido de construir o seu estádio e está fora da administração do Maracanã. Mas se depender da minha disposição de luta e de muitos outros rubro-negros vamos vencer também esse jogo de virada.

    É para contar histórias dessas brigas sem fim que travei vida afora — pelo Flamengo, pelos esportes, pela minha profissão, pela democracia — que escrevi este livro. Mas não apenas sobre isso. Este livro é também para falar a meus amigos, meus filhos e meus netos das posições que tenho assumido ao longo dessa trajetória.

    Outro dia, num momento de reflexão, percebi que encarnei três dos mais difamados estereótipos brasileiros: o dono de cartório, o político e o cartola.

    Incrustou-se desde muito tempo na opinião pública a ideia do tabelião como dono de uma sinecura que não para de produzir dinheiro: grã-finos que não trabalham e estão sempre bem de vida à custa da burocracia cartorial. Há muito preconceito nisso. Existem milhares de cartórios pelo Brasil, nas grandes cidades e também nos lugares mais pobres e nas fronteiras. A grande maioria está hoje sob a responsabilidade de profissionais concursados e que dão duro para pagar as contas do cartório e as suas próprias. Prestam um serviço público essencial sem um tostão do governo. Ao contrário, arrecadam grande parte do custo cobrado pelos serviços para órgãos públicos e associações ligadas à justiça.

    Uma pesquisa feita pelo Datafolha, em 2009, revelou que o cartório era a segunda instituição de maior credibilidade entre a população. A primeira eram os Correios.

    Muita gente desconhece que nem todo tabelião é rico, assim como desconhece o papel fundamental que os notários exercem na organização da sociedade brasileira. Vou abordar o assunto nas próximas páginas.

    Abrem fogo também contra os cartolas. Parte da imprensa os chama de incompetentes e os responsabiliza por todos os males de que padece o futebol brasileiro. Esquecem, porém, que são os dirigentes dos clubes que formam os times que levam multidões aos estádios e que, para isso, é preciso competência.

    Quero mostrar, neste livro, que os problemas crônicos do futebol brasileiro derivam de uma estrutura burocrática pré-histórica, montada ainda nos anos 1940, na ditadura do Estado Novo, e de uma legislação defasada que desvia para outros bolsos o dinheiro que deveria ir para os clubes. Assim, muita gente enriquece com o futebol no Brasil, menos as agremiações esportivas que o promovem.

    O político é outra figura que está por baixo aos olhos da opinião pública. Não é só no Brasil, mas na maioria dos países. E, infelizmente, eles têm dado muitos motivos para isso. No seu tempo de deputado, o ex-presidente Lula disse que há no Congresso uma minoria que se preocupa e trabalha pelo país, mas há uma maioria de uns 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses. Eu não saberia quantificá-los, mas há de fato deputados e senadores que não merecem estar no Planalto votando leis que vão decidir os destinos do país, da sociedade e de cada um de nós.

    Eu também, como o resto da população, revolto-me a todo momento com as armações e os desmandos cometidos por políticos — parlamentares, prefeitos e governadores — que não se dão ao respeito e nem parecem sentir um pingo de vergonha pelos seus gestos nocivos à ética, aos bons costumes e ao bem do país.

    Ninguém que tenha bom senso e um certo conhecimento da nossa história poderá negar, porém, a importância que políticos como Getúlio, Juscelino Kubitschek, Ulysses Guimarães, Tancredo e Fernando Henrique, entre outros, tiveram na vida brasileira.

    O nosso parlamento atravessa hoje uma fase ruim. De fato, da minha parte, conheci de perto momentos melhores. Considero perigosa para a democracia a descrença, especialmente entre a juventude, no papel da classe política. Nem todo político é corrupto e ladrão, e para os que são, existem mecanismos jurídicos para botá-los na cadeia, como começa a acontecer no Brasil.

    Há ainda gente boa no Congresso e essas pessoas, em última análise, atuando na conformidade dos ritos institucionais, podem ajudar a mudar para melhor este país. Assim como mudaram, em vários momentos históricos do passado. Espero, sinceramente, que o relato da minha atividade parlamentar, neste livro, contribua um pouco para a compreensão do papel do político brasileiro.

    Mas existe ainda um outro estereótipo a mim atribuído com frequência: o de mulherengo.

    Tenho de admitir que gosto de mulheres e que tenho sido correspondido, com a graça de Deus. Mas se tivesse conquistado todas as mulheres de que falam os fofoqueiros, não teria feito outra coisa na vida senão namorar.

    O fato é que sou apaixonado por uma mulher chamada Denise, com quem divido minha vida há alguns anos. Eu moro no Rio e ela em Curitiba, mas não há distância entre nós. Nos entendemos maravilhosamente bem.

    Tenho quatro ex-mulheres: Maria Lúcia, Noelza, Elsinha e Rosana. Com Maria Lúcia tive três filhas: Marcia, Patrícia e Andrea. Tive uma filha com Noelza, Joana, e elegi como filha a Olívia, do primeiro casamento da mãe. Com Rosana tive um casal de gêmeos, Maria Raquel e João Marcio, meu único filho homem. Tenho outra filha querida, chamada Luciana, que atualmente vive na Itália. Sobrinha de Maria Lúcia, é minha filha do coração. Foi criada junto com Marcia, Patrícia e Andrea, e apesar de não ser nossa filha biológica, nunca fizemos distinção entre as quatro. Tenho ainda seis netos: Maria Eduarda (filha de Marcia), Gabriel e Rafael (filhos de Patrícia), Lara e Robertinho (filhos de Andrea) e Carola (filha de Luciana). O destino de Robertinho é ser presidente do Flamengo.

    Sou muito feliz com minha descendência, e também não tenho queixa das minhas ex-mulheres. Sou um político, um conciliador. Consegui a proeza de manter todos juntos, apesar do passar dos anos.

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