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Corpo do Mundo: Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento
Corpo do Mundo: Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento
Corpo do Mundo: Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento
E-book658 páginas8 horas

Corpo do Mundo: Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento

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Sobre este e-book

"O corpo é onde a nossa mais profunda verdade é vivida e compartilhada"
Lina do Carmo

Essencial para todos que praticam ou apreciam a arte da dança e o teatro

Corpo do Mundo é o aguardado livro de Lina do Carmo. Aautora aproveita sua autobiografia para transmitir didaticamente, ao mesmo tempo que informalmente, história, filosofia e prática sobre a dança e a expressão teatral do movimento. Lina conta detalhes sobre sua evolução como artista, de como consolidou sua carreira internacional, seus trabalhos e performances mais marcantes que vão dos palcos Europeus à aldeia dos índios Karajá, passando por televisão e cinema. Também conta em detalhes sua permanente busca por aprimoramento e autoconhecimento, importante não apenas na arte mas em todas facetas da vida. Um dos destaques da obra é o relato da autora de como ela consegue fundir sua arte à sua espiritualidade, permitindo-a, desta forma, alcançar a liberdade física necessária para desenvolver linguagens estéticas sinceras e de vanguarda.
Corpo do Mundo é o título perfeito para obra transcultural de Lina do Carmo, pois a autora consegue se encontrar ao mesmo tempo entre vários mundos, o físico, cultural e o espiritual.

"Através da linguagem do próprio corpo que se transforma nas diversas faces do movimento, a dançarina viajante terminará por entender seu destino"
Lina do Carmo
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de abr. de 2016
ISBN9788566464917
Corpo do Mundo: Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento

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    Pré-visualização do livro

    Corpo do Mundo - Lina do Carmo

    CAPIVARA, Lina do Carmo, Colônia (Alemanha) 1997, Foto: Gert Weigelt

    A EDITORA

    A Livros Ilimitados é uma editora carioca voltada para o mundo. Nascida em 2009 como uma alternativa ágil no mercado editorial e com a missão de publicar novos autores dentro dos mais diversos gêneros literários. Sem distinção de temática, praça ou público alvo, os editores ilimitados acreditam que tudo e qualquer assunto pode virar um excelente e empolgante livro, com leitores leais esperando para lê-lo.

    Presente nas livrarias e em pontos de venda selecionados, tem atuação marcante online e off-line. Sempre antenada com as novidades tecnológicas e comportamentais, a Livros Ilimitados une o que há de mais moderno ao tradicional no mercado editorial.

    Copyright © 2015 by Lina do Carmo

    Copyright desta edição © 2015 by Livros Ilimitados

    Conselho Editorial:

    Bernardo Costa

    John Lee Murray

    Fotos capa e 4a capa:

    Capa: Gert Weigelt

    Contracapa: Victoria Regia, Lina do Carmo, Colonia (Alemanha) 1989.

    Foto: Gert Weigelt

    Projeto gráfico e diagramação: John Lee Murray

    Conceito de capa: Felipe Horst

    Revisão: Jaime Gesisky e Moema Ungarelli Gonzaga

    Preparação de originais: Daniella Wagner

    Direitos desta edição reservados à

    Livros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA.

    Rua República do Líbano n.º 61, sala 902 – Centro

    Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20061-030

    contato@livrosilimitados.com.br

    www.livrosilimitados.com.br

    SBN 978-85-66464542

    1. Ficção brasileira. I. Título. CDD– 869.3

    Proibida a reprodução, no todo ou em parte,

    através de quaisquer meios.

    Agradecimentos:

    Minha gratidão às pessoas que direta ou indiretamente colaboraram de diferentes formas na concretização deste livro. Aos fotógrafos(as) pela generosa participação. A Lenora Lobo pelo encorajamento do seu olhar acolhedor e sua orientação artística. A Adriana Nunes pelo impulso que me fez escrever o que eu escondia. A Ida Schrage, Gerda Ehrlenbruch, Kátia Hilleke e Marianne Pichon pelos estímulos e escuta. Ao Serge Troude pelas noções fundamentais sobre o Eneagrama de Gurdjieff. A Niède Guidon pelo seu jeito guerreiro de ser, inspirando minhas andanças e pesquisas. A Jaime Gesisky e Moema Ungarelli Gonzaga. A Sandra, minha irmã, por sua amizade sem limite. Aos meus filhos Max e Luiz pelo afeto e aprofundamento da vida. Ao Michael pela longa parceria de vivências desafiadoras. Aos meus pais que me ensinaram a encarar as injustiças do mundo, com a compaixão. Ao Marcel Marceau e a minha avó Maroca, em memória, pelos ensinamentos e poéticas inspiradoras

    Sumário

    Prefácio

    Lina do Carmo, a alma do corpo

    Capítulo 1

    Um sentido primordial

    A pré-história da dança?

    Encantamento arqueológico

    Ressonâncias do corpo rupestre

    Encontros fundamentais

    Regresso ao lar

    Vestígios da raiz

    Infância

    A menina adolescente

    A fuga

    Capítulo 2

    Deslumbramento – a Cidade Maravilhosa

    Caminhos da formação

    Boston – nova camada de entendimento

    Noves meses, Ted Shawn e Krishnamurti

    O clã dos músicos brasileiros e o corpo-mãe

    Capítulo 3

    Apostando nas incertezas

    Ausência, presença e a boneca Pepita

    Movimento e imobilidade

    Impulsos e impressões

    Buscar a perfeição

    Capítulo 4

    Paris, chez Marceau

    L’École de Mimodrame

    Gravidade e leveza

    Paz, presença e olhar

    Cada passo, um gesto

    Caligrafia da teatralidade

    Planète mime

    Estudar com o gênio

    Mímica e mãe

    A caricatura

    O clown

    O ritmo

    A projeção

    Metamorfose do amor

    Maternité - o cíclico da vida

    Invocar e evocar

    Instintividade e o animalesco de Stefan Niedzialkowski

    A mímica pura de Decroux

    Decroux ou Marceau?

    Os sentimentos da pedra

    Boris Tissot e Paris

    Sombra do mestre e referencial no ensinamento

    Atividades adjacentes

    Ator silencioso e o diferencial de Anne Sicco

    Ambições e medos

    Capítulo 5

    Outro jeito de se ver

    Pronta para os desafios

    Digerir, integrar, transformar

    Intuição, intelecto e técnica

    A forte fala do silêncio

    A riqueza da dúvida

    Dramaturgia da essência

    Influências, impressões e expressões

    Estilização em tentativas estéticas

    Metáforas corpóreas

    Principiando o Lume Teatro

    No destino das inovações televisivas

    Otelo

    O que é sonho e o que é realidade?

    Reencontros e definições de vida

    Capítulo 6

    Destinação germânica

    Mergulho na cultura do outro

    O sopro da realização

    Fronteiras móveis

    Desenraizamento: rompimentos ou ampliação?

    Dança como linguagem das vivências

    Desnudar-se

    Victoria Regia, uma ficção amazônica

    Alquimia das linguagens

    O corpo das sensações

    Nudez e frio

    Dividir-se e divertir-se

    Voodoo do Plastik

    O corpo das fugas

    Et kütt wie et kütt

    Entre mundos

    Capítulo 7

    Um grito de pertencimento

    CAPIVARA: resgate de essências e memórias

    Dança e arqueologia

    Corpo dos arquétipos

    Figuras em mutações

    Corpo-território sem fronteiras

    Fronteiras e limites

    Insights do novo milênio

    Mitos e migração

    Aruanãzug: a busca do coletivo

    Viagem ao sagrado

    Mergulho no mito

    Trajetos míticos

    Encontro do masculino e feminino: o mundo do meio

    Conexões simbólicas

    Karajá, Gurdjieff e a Lei do 3

    Imagem da totalidade

    Vivência da arte objetiva

    Fluxo e precipitações

    Pororoca de sentimentos

    Imaginário arquetípico

    Mensagens sonoras

    Relações autênticas

    Atrito entre o arcaico e o moderno

    Uma sinfonia coreográfica

    Reflexões restantes

    Serra da Capivara, meu eterno retorno

    O chamado do cineasta José Araújo

    Sensações do enigmático

    Entre lá e cá

    Capítulo 8

    A bailarina do sonho

    Espiral do retorno

    O lúdico do ser na dança

    A organicidade da presença

    O sentido espiritual

    Sintonia do Pró-Arte e o Cidadão 21 Arte

    Desafios da trilha

    Construindo intimidades

    Pedagogia da transformação ou dançar outra realidade

    Retornos e retornos

    Aruanãzug no encontro com o Alaya

    Equilibrando realidades

    Batalhas por um festival no sertão

    O Festival Interartes

    A construção de um mundo melhor

    Uma etopeia coreológica

    Transversalidade da arte

    Estética do paradigma

    Todas as artes no sertão do Piauí

    Queremos uma coisa e acontece outra

    Capítulo 9

    A bailarina volta-se para dentro

    Queda das ilusões

    Arqueologia da alma

    Do corpo físico ao corpo espiritual

    Corpo da transcendência

    Dançar com as crianças do mundo

    Lustspiel

    Viajante da Luz

    Gurdjieff – o retorno a si mesmo

    Lembrar-se de si

    Bem-vindo à fricção

    Alinhamento dos centros energéticos

    Viagem à Índia

    Combate às identificações

    O cavalo, o cocheiro e a carroça

    O duplo em nós: essência e personalidade

    Caminho sem fim

    O vaso da alma

    À bientôt, cher Maître

    Cruzando caminhos de transformação

    Um grande turbante branco na mala

    A bailarina não sonhou nada à toa

    Bach Johannes Passion 2011

    No riacho do ashram

    Enraizar-se no sagrado

    Bibliografia

    Prefácio

    O sol vai dissolvendo a cerração e sua luz traz para a superfície as penumbras que se embolavam em caminhos que pareciam desordenados, à espera de uma datação que se tornasse pública. Aguardavam serem chamadas para mostrar os seus contornos. Agora, reunidas nesta mistura entre caderno de artista, diário e relato de experiência, deixam ver que estiveram escutando, desde sempre, o canto do mesmo pássaro. Escrevendo em primeira pessoa, Lina do Carmo entremeia a sua história com os muitos fragmentos do seu jeito de pensar a dança, a mímica, a arte. E os vai espalhando para que, recompostos, possam resguardar a sua crença de que ser artista não é uma escolha e sim um desígnio.

    Lina vai acendendo as lâmpadas da sua trajetória e reanimando a sua biografia, repovoando-a com os que a constituíram. Pessoas, encontros, fatos, escolhas, projetos, ações, em um fluxo de intensidade incomum. Conhecer a sua formação é esbarrar em parte do ambiente artístico que se gestava no Rio de Janeiro, Teresina, Boston, Paris, Colônia, na pré-história. Enfileira acontecimentos e pensamentos e os costura com o que pode ser, talvez, identificado como um viés artístico-espiritual-mítico, em um caldeirão que vai abrigar, dentre outros componentes, Krishnamurti, Eneagrama, Jung, Gurdjieff, Kundalini Yoga.

    Escrevendo em primeira pessoa, seu texto amealha, por exemplo, a Faculdade de Teatro do Rio de Janeiro (hoje, UniRio), Escola Martins Penna, Alejandro Bedotti, Klauss Vianna, Lennie Dale, Hélio Eichbauer, Ausonia Benardes, Sylvia Ortoff, Decroux e Martha Graham, Ted Shawn e Delsarte, Nelson Xavier, Naum Alves de Sousa, Claudio Gaya (Dzi Croquettes), o Ballet do Século XX, de Béjart, a telenovela Sétimo Sentido, o Sítio do Pica Pau Amarelo, Alcione Araújo, Luiz de Lima, Hugo Carvana, até chegar a Marcel Marceau e a Maximilien, o filho de Decroux. Marceau e Decroux se tornariam as forças centrípetas dos entendimentos até então constituídos, e passariam a ser os pilares a sustentar a continuidade, na qual tantos outros não param de se agregar: Stefan Niedzialkowski e seu teatro total, a escultura de Camille Claudel, Boris Tissot, Yves Casati, Anne Sicco, a ida para Alemanha, Michael Hilleckenbach, e mais um rastro caudaloso de outros encontros e descobertas.

    Quem deseja transformar a densidade rude da vida em leveza de ser precisa de um apetite inesgotável. E ele, quando aporta na Serra da Capivara, ganha outra densidade.

    A preocupação em contar da sua origem (uma piauiense andando pelo mundo) acompanha Lina nas suas perambulações criativas. Em Pierrot Nordestino, seu solo de mímica, essa necessidade já se faz clara. E em Victoria Regia fica desenhado o interesse por um corpo arcaico – Junto às memórias sensoriais da minha infância piauiense, dialoguei com algo da profundidade da origem.

    É no encontro com a dança na pedra que a origem deixa de ser pessoal para se entender ancestral. Agosto de 1996. São Raimundo Nonato, seus habitantes, sua natureza, e a força gravitacional do homem enraizado na terra das pinturas rupestres raptam Lina. Ela diz que "em vez de coreografia, queria elaborar uma corporeografia. Como uma invenção epistemológica declinando o significado de coreografia, o termo corporeografia expressaria meu pensar na criação do corpo cênico. O corpo sendo o espaço ficcional da dramaturgia do gesto".

    O corpo arcaico brasileiro e trans-histórico passa a ser a sua busca, que deságua no seu solo CAPIVARA e segue como uma corrente permanente. Um interesse no corpo dos arquétipos, um corpo rupestre que se levanta da pedra, se movimenta e se põe a caminho, alçado pela arte de Lina, que o faz desabrochar de novo. O impulso que a impele é da ordem do inevitável. Produz registros que não se sabe se são dados ou tomados de um tempo do qual pendem aquelas inscrições, que se arremetem da pedra para os corpos que estancam na sua frente, encapsulados na sua contemplação. São golfadas de estrondos que não cessam de provocar espantos.

    Os privilegiados que puderam assistir aos dois Festivais Internacionais que ela produziu na Serra da Capivara puderam lá descobrir essa outra dança, que parecia escorrer da Pedra Furada para o palco instalado aos seus pés, no qual era a anfitriã. Nas paredes das cavernas, se aspira o que se pode apenas pressentir . Um sublime que fica ofuscante, transbordando porque não existem margens. Você sente o cheiro da pedra, da pedra que chegou antes, a pedra da qual somos agora apenas os rastros.

    Lina propõe o uso da coreologia de Rudolf Laban para lidar com a arqueologia de uma herança cultural muito complexa, ao mesmo tempo obscura e translúcida, simultaneamente aberta e fechada. Olhando seu percurso, vê-se que ela fez da caligrafia da gestualidade sua sina e sua saga. Desnudar-me é minha oração estruturante. Fazendo uma ponte entre o mítico e o cotidiano.

    Difícil descrever a sua errância, porque as errâncias, geralmente, se escrevem sozinhas. E o mosaico que Lina não para de montar oferece ao leitor o que realmente pode ser chamado de um viver intenso ou de uma intensidade no viver. Minha encenação de atos sem certezas, apenas pressinto os traços de um arco-íris no fim do dia. Aproveito essa visão como quem mastiga uma estratégia. Crivo os primeiros pontos de uma nova toalha.

    É um turbilhão que não termina porque não começou: sempre esteve presente. Não à toa, ela diz: Eu sou. Eu posso. Eu quero. E o cosmo me responde.

    Helena Katz

    Professora na PUC-SP,

    crítica de dança do jornal O Estado de São Paulo,

    coordenadora do Centro de Estudos em Dança-CED

    Lina do Carmo,

    a alma do corpo

    O mundo do corpo avassala a alma de Lina do Carmo como uma invariante. A alma do corpo e o corpo da alma formam uma dialética da criação artística na obra pluridimensional de Lina do Carmo. A alma é corpo. O corpo é alma. E ambos se unem para o desempenho exigido pela imaginação criadora. Arte é forma. Com a intuição e a imaginação criadora à flor da pele, na epiderme do delírio da criação, Lina transporta a si mesma como suporte da obra de arte. Isso significa que o ser-da-imaginação é o ser-da-criação quando a alma do corpo decide ultrapassar a condição de criatura e se apresenta como criadora de criaturas artísticas. Para além da desgastada visão da antinomia corpo-alma, Lina do Carmo prova que o corpo é anímico e a alma é carnal.

    Eu a conheci nos anos 1980 em Paris, no período dos anos de formação com o gênio Marcel Marceau, e vi que o seu entusiasmo onírico era oriundo da penetrante condição criadora que o seu gênio artístico a conduzia. Inclusive a correr todos os riscos. Depois a reencontrei no Rio de Janeiro, como que esperando que o Brasil a acolhesse no berço esplêndido de todas as imaginações. Perdidas todas as ilusões, mostrei o caminho da Alemanha como o mais seguro. E acertei, para a sua felicidade, e para a minha alegria. Depois a vi em 1989, quando vivi três meses em Aachen, quando a visitei em Colônia, já devidamente adaptada e produtiva, com família constituída.

    Lina do Carmo tem a inquietação vibrante das almas verdadeira e autenticamente criadoras. Nada escapa à sua invenção. Nem ela mesma, ou melhor, sobretudo ela mesma. E agora, buscando na razão os elementos já amplamente trilhados pela imaginação criadora, rumo ao doutorado, Lina do Carmo é uma usina de criação artística em busca permanente de combustível limpo e renovável para o exercício da invenção de suas criaturas nascidas do assombro da vida. Corpo do Mundo é o resultado da vertigem da história da criação da sua arte, e ao mesmo tempo um momento singular de uma trajetória sem fim. A alma é o corpo da vida eterna. E o corpo é a alma da vida no mundo.

    João Ricardo Moderno

    Presidente da Academia Brasileira de Filosofia. Docteur d’État (Doutor de Estado) pela Université de Paris I – Panthéon – Sorbonne. Doutor Honoris Causa

    pela Universidade Soka, Tóquio, Japão. Cavaleiro das Palmes Académiques,

    Presidência da República da França

    No Eneagrama, a nota DÓ (9)

    Nova informação-afirmação,

    impulso positivo,

    impulso ao movimento.

    Um sentido primordial

    Na luz do amanhecer. Meu olhar foi vislumbrando aquele cenário selvagem, enquanto meu espírito se preparava para adentrar um mundo que, naquele momento, inspirava mistério. A origem é um enigma em diversas camadas a serem perpassadas. Era agosto de 1996 e eu chegava à Serra da Capivara, no estado do Piauí, minha terra natal. Desfrutando do apoio de subvenções de instituições culturais da Alemanha, escolhi a Serra da Capivara como tema para uma nova coreografia. E assim fiz um retorno à minha própria origem. Na excitação em pesquisar pistas sobre a origem da dança, continuando meus estudos sobre o corpo arcaico brasileiro, percorri a longa estrada esburacada até o município de São Raimundo Nonato para conhecer as pinturas rupestres existentes há milhares de anos naquela remota região do Brasil. Tais pinturas foram motivadoras do solo de dança intitulado CAPIVARA.

    A viagem foi decidida de última hora e deu-se com o apoio da Fundação Cultural do Estado do Piauí: um carro com motorista, aptos a enfrentarem a longa viagem até o sul do estado. Pegamos a estrada com crateras que mais lembravam a topografia lunar, o que para mim fazia parte do valor autêntico da excitante experiência de aventura naquele lugar. Estava orgulhosa em teatralizar a ancestralidade presente no Piauí, podendo unir apoios culturais entre as cidades de Colônia, na Alemanha, e Teresina, no Brasil. Queria fazer desse trabalho um hino à origem da dança, tirando partido da força da herança cultural, um resgate de essências e memórias. Fui descobrir na vastidão dos resquícios do corpo gestual das pinturas rupestres algo da origem que até então eu desconhecia nesse pedaço de chão da minha terra. Movida por essa intenção de resgate, já sentia a predestinação da busca, face a face com o rupestre.

    Durante a viagem, meu olhar desvendava a paisagem da Caatinga. Todo o meu ser vibrava em sensações vitalizantes. Deixava liberar a inocência amorosa, revivendo algo da minha essência. Meu corpo logo reconhecia seu bem estar natural ao calor do sol. Uma felicidade imediata me descontraía.

    Sentia também certa tensão. Impossível esconder. Com o cheiro do mato seco me invadindo, vivia uma alegria especial dos tempos da minha infância. Minha atenção captava a presença das pessoas, realçando sinais de vida nos lugarejos pobres à beira da estrada.

    Parávamos para beber ou comer. Nesses momentos, aproveitava o contato humano mais direto com as pessoas, sempre subservientes, meio adormecidas pela meiguice permeada do rústico jeito de ser. Sentia um êxtase em poder falar minha língua com a simplicidade da linguagem do povo. A afetividade intensifica nossa intimidade e faz algo arder na nossa alma.

    Acendia dentro de mim a velha questão da desigualdade social, que sempre intrigou minha mente. Ali, meu estado mental ficava muito ativo com comparações dolorosas de mundos paradoxais em que me encontrava, misturada entre passado e presente. Do meu passado, a menina matuta acordava em mim. O resgate da essência surgia pela identificação sensorial no pulsar das impressões. Também constatava naquele lugar a presença, a teatralidade que fui inventando fora de mim ao adentrar outros mundos e culturas.

    Seguíamos o percurso no asfalto despedaçado da estrada. Entre trepidações e golpes súbitos, avançávamos em nossa rota naquele Brasil profundo. Os pneus do carro driblando a buraqueira deixavam para trás uma nuvem de poeira vermelha. Eu até que me divertia com os impactos, relativizando os fatos não só no meu corpo – já acostumado com o very smooth standard das rodovias do Primeiro Mundo – mas, sobretudo, relativizava em minha consciência presente a mulher adulta intrigada com os paradoxos. Vivia o choque cultural como autoestudo. O motorista animava a viagem, acentuando ironias, sobretudo porque sabia que eu morava na Alemanha. Michael, meu marido, me acompanhava. Ficava perplexo com a realidade das estradas, mas fascinado com a descoberta do pitoresco. A força de me encontrar com velhas realidades injetava novas verdades no meu sangue.

    O sol descia no horizonte e banhava a vegetação com uma luminosidade magnífica. Não demorou a escurecer. No breu da estrada, subia em nós uma certa tensão, quebrada às vezes por situações absurdas e até mesmo engraçadas. Inesquecíveis nossas gargalhas ao cruzar com um Fusca, caindo aos pedaços, sem farol, tendo como único recurso para clarear a visão da estrada nada mais do que uma lanterninha, que a mão do copiloto segurava, esticando o braço para fora da janela em um improviso fenomenal. O espírito de sobrevivência do povo e a garra natural manifestam-se no nordeste do Brasil como a arte de viver. Só eu sei como essa arte impregnou minha imaginação.

    Paramos numa cidadezinha chamada Amarante para deixar um amigo, Arimatan Martins, na época o diretor do Teatro 4 de Setembro, o principal de Teresina, e que compartilhava a viagem até ali. Passamos o resto da noite em um festival de teatro de rua que acontecia no lugar. A vivacidade de toda a movimentação contagiava-me dentro da realidade simples do lugar, muito bonito, por sinal. Nessa viagem, Arimatan profetizava: a Serra da Capivara será seu eterno retorno.

    No dia seguinte, retomamos o trajeto. Os sentimentos agitavam minha mente e tudo isso devia ser parte de um processo criativo. A arte estava no comando da viagem, meu objetivo era a dança como autoexpressão. A observação precisava estar afiada para catalisar as impressões fundamentais, de forma que elas penetrassem todas as dimensões do meu ser. Isso exigiu um trabalho de atenção em três focos: o mundo de fora, que me afetava por aguçar minha mente crítica; o mundo de dentro, acordado pelas emoções que davam ao meu corpo a postura justa da sua gestualidade; e a consciência em estado de canalização, aberta para captar a essência da experiência mais autêntica. Thomas Hobbes, no Leviatã, explica que quando um corpo está em movimento, move-se eternamente (a menos que algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos que acontece com a água, pois, muito embora o vento deixe de soprar, as ondas continuam a rolar durante muito tempo ainda. O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vê, sonha etc., pois, após a desaparição do objeto, ou quando os olhos estão fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais obscura do que quando a vemos. E é a isto que os latinos chamam imaginação.

    Sem conhecimento arqueológico ou método acadêmico apropriado no âmbito da pesquisa, fui com a sede da minha origem, atendendo ao impulso do meu interior. A intuição e a vontade focadas na invenção da dança foram os fatores que me empurraram para desafiar meu próprio destino.

    Na minha fragmentação, internalizava as identificações que me capturavam e, francamente, eu podia medir minha dualidade, lembrando da mesma dualidade de outrora. A essência utilizando a personalidade para autorrealização através da devoção natural da linguagem lúdica, a qual não encontra nas palavras a tradução apropriada. Ao saborear o valor e a beleza da minha origem, sentia ao mesmo tempo repúdio pelo contexto social insólito.

    Na estrada, via pessoas vendendo beiju, milho assado e caldo de cana. Parecia que nada havia mudado. Nem no lugar, nem em mim. Minhas questões eram as mesmas. O olhar acabrunhado de resignação me ensinava a aquietar meu senso de denúncia. Quando surgia um trechinho de asfalto novo, o motorista exclamava: Dona Lina, agora estamos na Europa. Ele me fazia rir pela ironia justa mas, na verdade, me doía ser impotente diante da urgência de uma atitude contra aquela desgraceira. Que força é essa que inibe a prosperidade e a evolução? Que outra resposta eu teria para aqueles rostos marcados pelo maltrato? O maltrato aos animais, o maltrato com a natureza, aquela irresponsabilidade generalizada em relação à qual qualquer mente sã deveria se revoltar. Por um momento, fechando os olhos e interiorizando as paisagens, tentava calcular as diferenças entre os mundos e vi que elas estão em apenas duas coisas: nas estruturas sociais que refletem as histórias e na ecologia de cada lugar, determinando as características culturais. E é isso que deixa nas nossas células a sensação da raiz, uma sensação intensa de pertencimento. Eu meditava sobre o que me levou a partir da raiz. Eu retornava ali com novas ilusões e via que a raiz é como um magneto que nos aprisiona. Novamente no Leviatã, Hobbes já falava que memória é a duração das sensações. Eu estava a recordar para tornar a sentir o que sentia antes.

    Também não conseguia me livrar das paisagens humanas da Europa, que já me contagiavam com certas tendências egocêntricas, diferente do egocentrismo brasileiro, mais pueril. Minha mente borbulhava elucubrações sobre questões humanas e do mundo em geral, tendendo a fazer as coisas mais densas. Ouvia minhas revoltas e meus conformismos. Ficava no meio, dividida, verificando onde, afinal, eu estava com o meu ser. De que me serviria o sentimento de revolta? Apenas para me sentir mais esclarecida, participando da supercultura? Neste momento, pelo menos, estava certa de que minha revolta era contra o contexto destrutivo que conseguia entrever nas diferenças de mundos. E já era suficiente esse conflito para me ajudar a descobrir alguma verdade em mim mesma. Seria então um privilégio ocupar-me com questões de autoconhecimento? Serei eu parte da sociedade abastada, passando ao lado do essencial sem me dar conta? Seria eu mais um daqueles que reclamam de barriga cheia? Não podia deixar de ver, naqueles pobres coitados cavalgando nos seus jumentos pela estrada, a falta de energia e de condições para refletir sobre si. Faltava-lhes a primeira nutrição. O pão de cada dia exigia todo o seu tempo. Alguns tinham no olhar algo de santo, vagando naquele destino coletivo, sem queixas. Mas se lhes deixássemos falar, seria pura filosofia.

    A resignação é qualidade típica desse contexto sociológico em que se encontram os ditos ‘desprivilegiados’. Teriam eles esta marca como consciência de si mesmos? E eu? Por que as coisas me falam dessa forma? Em cada contato humano, recebia algo para pensar. Sei que, independentemente da qualidade de vida de que desfruta, o homem tem a tendência natural de sofrer. Como centro da problemática humana, o sofrimento está dentro de nós. No sexo, na mente ou no coração. E para que serve conhecer, se não for para arder em nós o desejo de mudança? Mudar significa acordar nossos sentidos para alguma atitude que possa servir na criação de uma nova sociedade, mais verdadeira e justa. Hobbes diz que a diminuição da sensação nos homens acordados não é a diminuição do movimento feito na sensação, mas seu obscurecimento. Entrar em contato com minha origem acordava a mente imaginativa obscurecida. E por isso estava sendo tão vital retornar para acordar novamente com as impressões que meus sentidos recebiam daquilo tudo ainda vivo em mim.

    Não sabia ainda como minha observação poderia dinamizar tantos questionamentos de vida por via da dança. A viagem marcava o início da relação entre dança e arqueologia. Abria-se uma nova percepção da linguagem do corpo arcaico como impulso para a dança contemporânea. Precisava pagar com o meu próprio esforço para acrescentar alguma singularidade de sentimento e emoção no meio cultural internacional, onde a matuta piauiense ascendia e se desenraizava. E essa busca por uma identidade brasileira, às vezes, me tirava o fôlego. Dar o justo valor à existência exige um preço. E é isso que conta no ato do retorno: reconhecer aquilo que realmente somos.

    Indo para a Serra da Capivara, minha inquietação extrapolava a temática puramente artística da dança para escavar a profundidade da vida como um percurso iniciático. O desejo de resgatar a mim mesma gerava a energia criativa de vibração, no encontro do berço da fruição transcendente.

    Acordava para outras facetas do fazer artístico. Instigada, refleti os lampejos da hipótese de que quanto mais longe se busca no tempo, mais encontramos impulso para renovação do presente. Tive aquela sensação de que algo cerimonial impregnava a história daqueles resquícios sobreviventes de uma existência humana profunda.

    O que me interessava era a origem do vital. A busca da raiz como fonte não era meramente teórica ou filosófica. Quis perceber os códigos dessa comunicação primordial, admitindo serem atemporais, pois até hoje fertilizam o fluxo da expressão. Arqueologia, para mim, parecia ir além de uma ciência social. Tornava-se uma fonte de ideias e caminhos sensitivos para a dança.

    A pré-história da dança?

    O sol tinia de tão quente. Atravessando a Serra Vermelha, surgiam as primeiras visões da Serra da Capivara: um panorama que magnetiza. Não via a hora de poder esticar minhas pernas e sacudir meu esqueleto, depois de tanto sacolejar na estrada. Logo entramos em São Raimundo Nonato. Eu me deparava com a imagem típica da vida no interior do Brasil, aquela atmosfera meio caótica, mas também cheia de vida. Minhas impressões eram críticas, detectando a miséria naquele cenário, algo comum desde a minha infância. A agressividade do tráfego, carros e caminhões passando pelas ruelas quase sem calçadas, bois e cavalos soltos pelas ruas comendo o que encontrassem, inclusive sacos plásticos; caubóis munidos com seus facões pendurados na cintura; mulheres carregando trouxas e baldes d’água na cabeça.

    Nada havia mudado no estilo de vida do interior, a não ser certo acréscimo de modernidade, da tecnologia hipnótica ao alcance de todos. Os celulares em ação. Até o carroceiro, que talvez nem soubesse escrever seu próprio nome, gastava seus créditos para se conectar. O alto-falante nas portas das lojinhas, com som altíssimo, atiçando o povo com suas propagandas, fazia doer meus ouvidos. O mau cheiro dos esgotos sob o céu do mais límpido azul compunha estranhas sensações em meio ao ritmo de vida muito alegre, apesar de tudo. Procurava manter minha mente centrada no meu objetivo arqueológico, para não ter uma indigestão sensorial.

    No primeiro contato com a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), recebi instruções apropriadas ao conteúdo da minha pesquisa, repassadas por Cris Buco, uma simpática arqueóloga paulistana cheia de entusiasmo, quando lhe disse que vinha pesquisar a dança da pré-história. Para minha surpresa, entendi que estava na função pioneira de uma pesquisa de dança na Serra da Capivara.

    Na ocasião, tive contato com as pesquisas arqueológicas, mas não houve tempo para uma aproximação mais aprofundada. Minha intenção era capturar o traço do passado como estímulo para brotar nova configuração do que é eterno. Não pude deixar de perceber, porém, que o trabalho científico da Fumdham – que estava trazendo melhorias de vida em todos os sentidos: água, luz elétrica, mão-de-obra, educação, enfim, impulsos fundamentais para a valorização da incomensurável herança cultural da região – enfrentava todo tipo de empecilho para que se estabelecesse efetivamente o Parque Nacional da Serra da Capivara, criado em 1979 pelo governo brasileiro. Diversas áreas científicas formaram na Serra da Capivara um eixo de excelência internacional. E isso animava o espírito do lugar para possíveis transformações. Encontrei uma intensa exploração do conhecimento. Notar aquele esforço científico confrontado com o paradigma do subdesenvolvimento reforçou ainda mais o signo de contrastes na minha poética de resgate de essências e memórias. Sendo eu mesma, ali, meio piauiense, meio alemã, um contraste inevitável para curiosidade dos outros.

    Encantamento arqueológico

    Fui deixar minha mala no hotel e organizar galões de água e frutas. Em seguida, pegamos a estrada de terra batida, surpreendentemente boa, que nos levou às primeiras trilhas. De repente, entrei em um mundo atemporal. Embriagada pela beleza das formações rochosas, como castelos naturais moldados pelo tempo, meu olhar fitava as pinturas rupestres. De imediato aquilo mudou meu estado geral. Já nem sentia meu corpo. Mergulhei nos cenários de dança que paralisavam o meu olhar e fechava meus olhos, conservando o pulsar dos movimentos que sentia emanar das pedras. Mergulhei numa camada mais profunda da experiência. Com a inocência da minha alma dentro desse passado, percebia na cenografia natural a força criativa do imaginário dos seus habitantes. Estava comovida pelo valor incomensurável dos traços materializados pelo espírito do homem primordial que ali estivera. As pinturas rupestres da Serra da Capivara confirmam que a arte brota mesmo da intuição. Perplexa, deixei que o silêncio me falasse.

    A primeira visita de campo e os contatos iniciais com as pinturas rupestres foram rápidos demais para que eu pudesse absorver a massa do objeto em estudo, porém o bastante para vitalização dos insights necessários à prenhez do processo da criação. Os acessos aos sítios arqueológicos requeriam longas caminhadas no encantamento com a beleza da Caatinga e a investigação coreográfica. Acompanhada por uma guia turística, uma câmera semi-profissional e o excelente motorista, fizemos disciplinadamente o máximo de visitas aos acervos indicados por conterem maior abundância de temáticas em dança.

    Fui absorvida pelos contrapontos do movimento sinuoso das rochas, o canto dos pássaros, a luminosidade que emanava do azul celestial e a peculiar e rude sensualidade do sertão. De forma impressionante, no imenso conjunto de formações rochosas, encontrava inumeráveis pinturas e gravuras com diferentes datações e estilos. Isso significou encontrar um Piauí rico em ancestralidade. A força mítica do lugar tocou na inocência da minha infância confrontada com a fonte de signos imagéticos, como uma caligrafia vivencial de concreta poesia.

    Eu absorvia os estalos da vida no interior da vegetação que contornava os paredões das rochas. Escutava o ritmo dos meus próprios passos para retornar a mim mesma. A jovem guia falava-me todo seu repertório, que servia de um embasamento inicial, dando-me a entender que havia estilos distintos: o estilo Nordeste, o Agreste e o Geométrico. Mas minha escuta priorizava o eco do lugar em mim. O lugar me falava de uma origem da dança totalmente inexplorada, até então. Mal conseguia pensar no processo de criação de um solo de dança, pois estava tomada pelo todo da pesquisa e as sensações tão fortes de poder estar ali livremente. Era um esforço romper com os limites entre o passado e o presente. O mundo interior e o mundo exterior da artista estavam sendo sacudidos para criar uma mistura entre a contemplação e a vívida dinâmica da dança que pulsava das pedras. Deixei respirar tudo aquilo no meu corpo. Para falar do real e do imaginário dessa fonte de movimento, eu teria que criar uma suprarrealidade. Incorporava os grafismos rupestres na minha respiração, para que meu corpo pudesse servir à escritura dos movimentos de uma dança que seria a própria metáfora visual da minha vivência.

    Esse mundo primordial tornou-se o prolongamento da busca de raízes mitológicas para a expressão contemporânea e das minhas inquietações da origem. A pesquisa em torno das pinturas rupestres impregnou-se para sempre em mim. Durante os dias intensos de encantamento percorrendo os sítios arqueológicos, a poeira do sertão fertilizava imagens da minha infância. Com um sentimento de unificação, desejei ficar lá para sempre. Estranha sensação essa de estar retornando para um lugar de onde nunca parti.

    O tempo foi realmente curto para percorrer a vastidão de sítios arqueológicos. Visitei diversos sítios na região da Serra Talhada e da Serra Vermelha. A primeira impressão era a de penetrar num paraíso no meio da miséria do sertão. Miséria que nada mudou em relação ao que já continham minhas memórias. E eu podia rever a miséria habitada pela alma de um povo que transpirava sua força pelos olhares com que eu cruzava a cada momento.

    O Sítio do Meio, a Toca do Pajaú 1, o Baixão das Mulheres, a Toca do Paraguaio e tantas outras. O grandioso painel do esplêndido Boqueirão da Pedra Furada já teria sido suficiente para me enfeitiçar eternamente. O grand jeté sublime de uma gazela saltou para dentro de mim como uma visão mítica, que me retirou os limites do tempo-espaço. Através da câmera, meu olhar de pesquisadora flutuava no paredão, registrando as mais belas sintetizações da pureza das expressões da dança e da vida que existiu ali. Algo em mim rendia-se diante do concreto que me falava do sutil e do sagrado.

    Compreendi que o enorme sítio arqueológico seria um portal de iluminação artística. Milhares de pinturas me falavam diretamente do alto teor da inspiração. Na diversidade de estilos e tradições, cada registro transmitia uma parcela da individualidade do imaginário. Cheguei a comparar com o contexto místico da Capela Sistina ou da Acrópole de Atenas. Na travessia da longa passarela, fui capturada pela exatidão dos traços de liberdade, que pareciam saltar do paredão da grande rocha. Meu olhar mimetizando cada motivo com seu significado simbólico foi contaminado com a virtude gestualizada.

    Fitando um motivo rupestre na forma de uma pirâmide humana na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, interessei-me pelo equilíbrio estético entre o lúdico e o acrobático do corpo, espírito em interdependência vivente no coletivo. Isso me fez pensar no conceito educativo utilizado nas escolas chamadas Waldorfschule, na Alemanha, cuja pedagogia se baseia no pensamento antroposófico de Adolf Steiner e que prima pela realidade espiritualizada que coloca o saber como a própria experiência vivida.

    Sim, sentia o cordão umbilical invisível me reconectando com a espontaneidade de ser. Fiquei no transe do encantamento, tocada pela simplicidade e beleza dos movimentos e gestos simbólicos, de formas tão cativantes. Confrontei-me com dois aspectos essenciais: a clareza de definição das formas unidas ao teor expressivo e algo mágico que me escapava à compreensão, pois falava de uma realidade não mais acessível ao homem de hoje.

    Mas o que sinalizei de mais relevante no vertiginoso conteúdo arqueológico para o meu resgate de essências e memórias foi que o corpo rupestre engendrava o ser humano com sua pulsação criativa e autorreflexiva, manifestada através da arte.

    A linguagem dessa comunicação, ao meu ver, independeria de uma mente intelectualizada. O ego espiritualizado, que ali nas pedras dedicou longas horas de concentração, estava expressando sua inteligência intuitiva, e a arte rupestre me parecia exercida no plano que transcende padrões estéticos estabelecidos porque estavam submetidos somente a eles mesmos, ao mostrar no espaço livre da criação as mais delicadas danças que originaram a consciência ali presentificada. A estética que encontrei nas pinturas rupestres me pareceu própria de uma visão clarividente, pois elas representavam, em cenas cotidianas, estados de espíritos harmonizados e de tal forma livres, que conectavam diversos aspectos da arte. Fascinante força humana capaz de descrever o belo da vida. A peculiaridade dos sentimentos demonstrava sensibilidade e domínio de uma técnica própria. Entretanto, tais registros ecoam, até hoje, na aura atemporal da dança.

    A emoção do encontro com essa origem conduziu o meu olhar para o reconhecimento súbito dos traços simbólicos do gesto primordial: uma pista elucidativa para estudar certa origem da dança. Eu quis devolver-lhe uma nova corporeidade.

    Meu encantamento foi encontrar essências vitais para expressão do presente. O meu corpo serviu de sujeito e objeto da exploração coreográfica para encorajar questões de identidade e comunicar o ego ancestral do Piauí. Fiz, então, uma arqueologia da expressão. E como é isso? Sendo a criação artística um espaço privilegiado para o autoconhecimento, vale elucidar que grandes inteligências, como Freud, Rudolf Laban, Ted Shawn, Gurdjieff e muitos outros buscadores, foram amantes da arqueologia.

    Era impossível não assimilar o paradoxo daquele universo de abundância artística, onde a vida das pessoas no entorno do sítio arqueológico refletia uma brutal condição existencial. Das mais diversas perspectivas de observação, o que mais contaminou minha experiência não foram os grafismos como fim, mas como meio de comunicação. Uma comunicação que, mesmo datada de outrora, me falava do hoje e do que pode ser o amanhã. A expressividade era plena de volúpia no melhor sentido do animalesco e do transcendente. Sem tabus, as cenas evocavam êxtase sexual, inseridas em ritos de fertilização, cenas de caça e cerimônias de exaltação coletiva em torno de uma árvore. Animais e antropomorfos dançavam na esfera interativa. Tudo isso era transposto como se o pensar sobre o real fosse a própria magia da criação.

    Ressonâncias do corpo rupestre

    A herança da memória material intrínseca da cosmologia social da Serra da Capivara expressa-se unificando o homem ao seu meio. Principiando, a arte inaugurava a comunicação de pensamentos, sentimentos e crenças na integração homem e natureza. Sugeria um conceito primordial de arte como exercício de viver dando nascimento à teatralidade. A força e a sensibilidade do gestual dessa pré-história ensinavam-me sobre a possibilidade do viver pleno através do voo dos sentidos e da pureza do instinto.

    Na entrada do sítio do Baixão da Vaca, observei uma pintura sugestiva, apresentando a estilização de um parto. A figura antropomorfa, com a vagina exposta ao nascimento de uma criança, amparada por três outras figuras, possivelmente auxiliando o nascimento. Nesse mesmo painel, havia uma cena de sexo e uma figura ornamentada com um cocar indígena. Pude compreender a objetividade dos traços como uma evocação livre da sexualidade relacionada ao nascimento, e aquilo pareceu-me não ser acaso da criação, mas experiência refletida ainda imune de tabus e com muita sofisticação.

    Perplexa, fiquei nesse resgate como caminho para experimentar um estado de esperança. Os meios para reconhecer a leveza e os riscos do que prendeu minha imaginação é que valeram a pena. Os rituais dos primórdios estavam sincronizados com a instintividade da forma de evocação existencial e lúdica, ainda no estado puro da sensitividade. Livres de temor às sensações, esses agrupamentos humanos podiam frutificar a simplicidade através da elaboração coletiva. Só podia imaginar isso porque a arte, como abstração naquele contexto pré-histórico, fazia-me meditar longamente sobre a essencialidade organizacional na estética do corpo rupestre. O movimento dando forma à integração social revela o viver e o comunicar numa existência natural, onde o humano reflete sua igualdade empática ao meio. Avanços da Neurociência nos informam sobre os neurônios espelhos, responsáveis pela capacidade de captarmos e emitirmos facilmente informações daquilo com que nos assemelhamos. Quando nos encontramos em igualdade, a percepção flui.

    Vivi na Serra da Capivara uma possível equivalência com estados de plenitude, unificação e êxtase criativo. Quando o ser humano abre os braços, abre o coração de imediato. As pinturas rupestres revelam nos cenários um voo simbiótico comum entre humanos, animais e florestas. A dança transparece estados de êxtase no movimento do gesto poeticamente integrado ao todo.

    Suponho que as pinturas eram uma prática mimética da expressão de aprendizado estético pela percepção imediata da vida ainda sem teorias ou filosofias. Admito, então, que a arte é sempre uma abstração, mas, neste caso, servindo de espelho a esse estado de igualdade do vivente, com a profundidade da existência e sobrevivência. O êxtase devia ser temperado com a alegria fundamental da experiência corporificada. O estado extremado daquele intérprete (seria um devoto?) continha, na qualidade da presença, uma ausência. Sem distinção entre teatro e dança, a tensão dramática era o fogo contido no êxtase. Foi isso que mexeu com a minha percepção como observadora da esfera da comunicação ajustada ao indizível.

    Minha curiosidade por esse imaginário livre dentro da situação enigmática mostrava como o intérprete consegue liberar seu íntimo. Impressionada com a maestria da obra humana deixada pelos ancestrais, constatei que a qualidade estética daquela gestualidade rupestre não me falava de primitivismo, mas sim de algo muito atual e que se atualizava dentro de mim. Poderia ser um Penk ou um Picasso. Essa percepção tornou mais mágica minha experiência. Por isso a Serra da Capivara entrou em mim, podendo ser a projeção da minha busca de inteireza. A expressividade das pinturas me falou de cenários vividos, não como uma manifestação artística apenas de esmero intelectual. Revelou estados de conexão da criação do puro espírito com a vida real.

    Eu teria como tarefa dar novo significado à estética capivarense. Vivendo num mundo barulhento e carregado de aparências, lutava para não empobrecer o meu encanto. Nutrindo-me da importância dos traços primordiais da dança, teria dificuldade de explicar o que se passava dentro de mim. Eu pressionava no meu ser o impacto para uma transformação. Comecei a imaginar-me uma xamã, ao explorar o domínio do meu corpo para me desprender da vaidade do meu mental colonizado e me nutrir da expressão de liberdade vivida na Serra da Capivara.

    Através dos vestígios arqueológicos representação da dança, minha experiência tinha algo daquilo que os grandes pensadores falam sobre o transcendental. A mente jorra no plano material o poder de invenção da realidade. Intrigada com tanta beleza, com esse sagrado, muito puro, muito além do que eu podia imaginar, a pesquisa arqueológica me virava pelo avesso. A ternura dominava a dureza das rochas. Com essa impressão, eu podia refletir o triunfo amoroso da figura simbólica do beijo plasmado no Boqueirão da Pedra Furada – um cartão postal da Serra da Capivara – que acorda o homem moderno para a mensagem amorosa dos antepassados. Um singelo retrato do amor na pré-história.

    O sentimento da origem desperta nossa memória para os primórdios dos afetos humanos e, com essa evidência do amor rupestre, comprova-se que o homem, desde o seu princípio, desejou comunicar de forma objetiva a imagem do seu mundo interior.

    O material era muito vasto para o estudo do gesto autoexpressivo. Nas pinturas rupestres, podemos presenciar o dom divino da comunicação sintonizado com a necessidade intrínseca de explorar a inteligência emocional, nossa parcela transcendente. Como disse Kandinsky: O artista é a mão que, pelo uso conveniente deste ou daquele traço, coloca a alma humana em vibração. Então, vi ali a harmonia estampada pela firmeza do gesto eficaz daqueles que seguiam sua necessidade interna.

    Cada vez mais atenta às pinturas rupestres, ficava mais e mais esquecida da realidade do hoje, entrando num estado de transe. A busca da ancestralidade me levava a meditar sobre o paraíso perdido. Eu escavava a minha própria história e encontrava lembranças da minha infância. Lembrando-me de meus ancestrais, viajando nas memórias, fiz as pazes com a afetividade um pouco esquecida de minhas raízes. A força da ancestralidade permite o voo do encantamento frente ao espelho fragmentado em muitas direções e cria uma teia sem fim. Assim, fui guiada para minha verdadeira face.

    Encontros fundamentais

    Ver a si mesmo é como encontrar uma luz até então não manifestada, mas isto foi um adentrar camadas imaginárias que eu conduzia para a anatomia do solo Capivara. Fui encontrando a dramaturgia dos arquétipos da Alma Inalterável, da Matuta, do Primata, da Gazela, e assim os gestos e signos foram surgindo nos instantes de imanência da pura intuição, acordada pelo contato direto com a energia do sentimento primitivo e que irei aprofundar mais adiante.

    O meu encontro com Niède Guidon foi rápido, porém profundo. Como todos que passam pela Serra da Capivara, quis ter a honra de conhecer a arqueóloga desbravadora que, desejando-me sucesso, autografou seu lindo livro Peintures préhistoriques du Brésil: l’art rupestre du Piaui, que estudei e guardo com eterna gratidão. Ela se enraizou na mente do povo como a doutora, mãe e poderosa protetora do patrimônio arqueológico. Vi em Niède a própria imagem da labuta. Empoeirada dos pés ao cabelo, ela me falava de sua trajetória e missão. Ela também estava pagando o preço pelo valor de sua existência real.

    Para quem ama a vida cultural, viver longe do mundo parisiense era uma tristeza. Conviver com toda aquela batalha diária pela paixão científica de validação daquela ancestralidade dava-lhe a razão de viver. Falamos justamente dos nossos destinos paradoxais. Para mim, que amo o sol e a vida

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