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Aforismos
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E-book177 páginas1 hora

Aforismos

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Sobre este e-book

"O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia verdade ou uma verdade e meia", escreveu Karl Kraus (1874-1936) a respeito do gênero em que se tornou um mestre. Personagem singular do debate intelectual europeu do começo do século XX, Kraus encontrou na brevidade e na condensação extrema dos aforismos a forma ideal de espetar seus adversários – notadamente jornalistas, políticos e figuras prestigiadas do meio cultural vienense. Exprimindo o que à primeira vista pode parecer uma generalização abusiva, o aforismo desestabiliza as certezas cotidianas cristalizadas em frases feitas e, à luz de seu brilho repentino, desvenda aspectos da realidade até então ignorados. Neste volume, apresenta-se uma poderosa mostra de como podem ser cortantes esses pequenos textos – e de como Kraus, manejando a sátira, feriu seus inimigos com grande concisão. Como ele mesmo dizia: "Há escritores que já conseguem dizer em vinte páginas aquilo para o que às vezes preciso de até duas linhas."
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de mar. de 2016
ISBN9788560171422
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    Aforismos - Karl Kraus

    194

    Apresentação

    Para fazer uma excelente sátira, basta

    dizer a maior parte das coisas como elas são.

    Karl Kraus, Hüben und Drüben

    (Do lado de cá e do lado de lá)

    Karl Kraus não foi apenas o maior autor satírico de língua alemã do século XX, mas chegou a ser considerado um dos maiores satiristas de todos os tempos, digno de figurar — no entender de outro grande escritor, Elias Canetti — ao lado dos nomes de Aristófanes, Juvenal, Quevedo, Swift e Gogol. Sua obra é vasta e multifacetada: milhares de páginas de ensaios, aforismos, poemas, peças teatrais e adaptações, cujas primeiras versões foram em boa medida publicadas no jornal Die Fackel (A tocha), que o escritor fundou em 1899 e passou a redigir sozinho a partir de 1911 até poucos meses antes de sua morte, em 1936.

    Kraus nasceu na cidade de Jičin, na Boêmia, em 1874; três anos depois, a família, cujo pai fizera fortuna no ramo da fabricação de papel, mudou-se para Viena, onde Kraus passaria toda a sua vida. De início, estudou direito e, a partir de 1894, contrariando a vontade paterna, filosofia. Entre 1892 e 1899 escreveu artigos para vários jornais, apartando-se bruscamente do meio literário e jornalístico de que fazia parte para fundar seu próprio jornal. Sobre esse momento, Kraus diria anos depois num aforismo: Logo se completarão dez anos que não recobro mais a consciência. A última vez que a recobrei, fundei um jornal polêmico.

    A primeira obra de Kraus publicada em forma de livro foi a coletânea de ensaios Sittlichkeit und Kriminalität (Moralidade e criminalidade), de 1908, em que denunciava sobretudo os abusos cometidos pelo Estado nos processos envolvendo os chamados crimes sexuais, como adultério, pederastia e proxenetismo. Num dos ensaios do livro, Eros und Themis (Eros e Têmis), o autor afirma, por exemplo, que em tais processos se liam cartas de amor em audiência secreta — tão secreta que os cães de caça da opinião pública conseguiam abocanhar os nacos mais picantes... Essa denúncia receberia expressão aforística numa obra posterior: O escândalo começa quando a polícia lhe dá um fim.

    O autor não considerava essa coletânea de ensaios uma mera reprodução de textos já publicados em Die Fackel, mas uma obra completamente nova, pois, segundo ele, os ensaios em que estava baseada foram inteiramente reelaborados quase linha por linha, procurando conservar aquilo que, na condição de valor duradouro, pôde ser salvo das garras dos interesses do dia. Nesse processo de eternizar o dia, o polemista se contrapunha de maneira evidente ao jornalismo de sua época, que, no seu entender, jornalizava a eternidade.

    Esse processo é ainda mais evidente em sua obra seguinte, Sprüche und Widersprüche (Ditos e contraditos, de 1909; literalmente: Ditos e contradições), a primeira das três coletâneas de aforismos que publicou. Se nos ensaios ainda havia referências claras a fatos e pessoas, nos aforismos a mordacidade de Kraus se volta em especial contra estados de coisas — a vida em sociedade, a situação da cultura, a petrificação da língua sob a forma de chavões — e contra tipos: o jornalista, o político, o esteta, o folhetinista, o caixeiro, o filisteu e outros mais; raros são os nomes e raros são os fatos do dia.

    É essa condensação extrema que confere ao aforismo as arestas cortantes que inevitavelmente ferem o leitor. Exprimindo o que à primeira vista muitas vezes parece ser uma generalização abusiva, o aforismo requer reflexão; ele desestabiliza as certezas cotidianas cristalizadas em frases feitas e, à luz de seu brilho repentino, apresenta aspectos da realidade até então ignorados. Talvez também valha aqui uma ideia de outro mestre do gênero, Nietzsche, que afirmou no prefácio de Zur Genealogie der Moral (A genealogia da moral): "Um aforismo, devidamente cunhado e moldado, ainda não foi ‘decifrado’ pelo fato de ser lido; ao contrário, é só então que deve começar a sua interpretação, para a qual uma arte da interpretação se faz necessária".

    Parece ser precisamente isso que Kraus expressa numa sentença de sua segunda coletânea aforística, Pro domo et mundo (Em defesa dos meus interesses e dos interesses do mundo), de 1912: O aforismo requer o fôlego mais longo. E não só o fôlego do autor para redigi-lo, mas também o do leitor para lê-lo — e interpretá-lo... Daí também a exigência, ainda da primeira coletânea: Meus trabalhos devem ser lidos duas vezes para serem bem compreendidos. Mas tampouco me oponho a que sejam lidos três vezes. Prefiro, porém, que não sejam lidos do que o sejam apenas uma vez. Não pretendo me responsabilizar pelas congestões de um imbecil que não tem tempo.

    No intervalo entre essas duas coletâneas de aforismos, em 1910, Kraus inaugurou uma terceira frente de batalha na luta contra o seu tempo: além de redigir um jornal e publicar livros, começou a fazer leituras públicas de seus textos. No segundo volume de sua autobiografia, Die Fackel im Ohr (A tocha no ouvido, publicado no Brasil como Uma luz em meu ouvido), Elias Canetti nos dá um vivo retrato dessas conferências. Em 1924, quando pela primeira vez assistiu a uma delas, o satirista já tinha um público cativo que o idolatrava com veneração incondicional; mais do que tudo, chamou inicialmente a atenção de Canetti o comportamento de massa desse público, sua reação uniforme aos ditos e vereditos que emanavam de uma instância que parecia pressupor uma lei intocável, estabelecida e absolutamente segura, para citar as palavras de outro texto de Canetti (o ensaio Karl Kraus, escola da resistência, incluído na coletânea A consciência das palavras). Aliás, esse aspecto jurídico, por assim dizer, também foi observado com precisão por Walter Benjamin em seus Ästhetische Fragmente (Fragmentos estéticos): Nada se compreende desse homem enquanto não se reconhece que tudo, necessária e absolutamente tudo — a língua e as coisas — se passa para ele na esfera do direito. Ou ainda: "Em torno dele, os processos se acumulam. Não aqueles que ele precisa conduzir nos tribunais de Viena, mas sim aqueles cujo tribunal é Die Fackel."

    No entanto, a despeito da agressividade, da violência verbal e da verdadeira fúria assassina com que perseguia seus adversários (sobretudo jornalistas, políticos e figuras prestigiadas do meio cultural vienense), Kraus era pacifista. O que hoje pode parecer natural, nada tinha de óbvio nos tempos que precederam a Primeira Guerra. Em meio ao entusiasmo belicista generalizado, Kraus foi a voz dissonante que alertou para o perigo de confundir patriotismo com interesses comerciais. Na sua terceira coletânea de aforismos, Nachts (De noite), concluída em 1916, mas só publicada em 1919, ele afirma: Há lugares em que pelo menos se deixam os ideais em paz quando a exportação corre perigo, onde se fala tão honestamente dos negócios que eles não seriam chamados de pátria e em que por precaução se renuncia a ter uma palavra para ela. Nós, idealistas da exportação, chamamos tal povo de ‘nação de negócios’.

    O repúdio de Kraus à guerra, contudo, alcançou sua expressão mais veemente na gigantesca peça Die letzten Tage der Menschheit (Os últimos dias da humanidade). Renunciando às formas convencionais — não há herói, não há trama e, dada a sua extensão, a peça não é encenável —, seu conteúdo, nas palavras do prólogo do autor, é irreal, inimaginável, impensável, inacessível a qualquer dos sentidos despertos, a qualquer lembrança, um conteúdo apenas conservado num sonho sangrento, uma vez que figuras de opereta representavam a tragédia da humanidade. E ainda: Os fatos mais improváveis de que aqui se dá notícia realmente aconteceram; eu retratei o que outros apenas fizeram. Os diálogos mais improváveis aqui travados foram pronunciados literalmente; as invenções mais chocantes são citações. Citações, sobretudo, da imprensa da época, que Kraus julgava não ser apenas uma instigadora da guerra, mas a responsável por ela.

    Mesmo os últimos dias da humanidade, porém, não foram os últimos; menos de uma década e meia após o fim da guerra, Hitler chegaria ao poder. A exemplo do que ocorrera depois de declarada a Primeira Guerra Mundial, Die Fackel deixou de circular durante vários meses depois que Hitler foi nomeado chanceler, em janeiro de 1933. A razão: Kraus gestava outra obra, o monumental ensaio Dritte Walpurgisnacht (Terceira noite de Valpúrgis), no qual, invocando o auxílio do Fausto de Goethe — o título é uma alusão a duas cenas da tragédia —, tentou apreender o fato incomensurável da chegada dos nazistas ao poder. A famosa frase de abertura do ensaio é característica da perplexidade do satirista: Nada me ocorre acerca de Hitler. Tal perplexidade, no entanto, é apenas retórica, pois Kraus tinha noção clara do que estava acontecendo e das conclusões a tirar desses fatos: já em fevereiro de 1933, foram abertos os primeiros campos de concentração; notícias de maus-tratos infligidos a prisioneiros eram divulgadas abertamente; políticos se gabavam sem constrangimento dos milhares de detentos em prisão preventiva nos seus estados; intelectuais como Gottfried Benn e Martin Heidegger manifestavam publicamente suas adesões ao regime; Hitler e seus asseclas não faziam segredo algum dos planos expansionistas de criar uma Grande Alemanha.

    Embora só tenha sido publicado na íntegra postumamente, em 1952, trechos desse ensaio chegaram a ser publicados em Die Fackel. Mais uma vez, Kraus foi uma voz dissonante; mais uma vez, tinha razão ao alertar para o pior. Aliás, num aforismo escrito com clareza profética ainda durante a Primeira Guerra Mundial, ele já afirmara: Não, a alma não fica com cicatrizes. A bala entrará por um ouvido da humanidade e sairá pelo outro.

    Algumas palavras ainda sobre a tradução. Os critérios para a seleção dos aforismos ora traduzidos foram basicamente dois: percuciência e traduzibilidade. Embora isso signifique dizer que quase sempre privilegiamos os aforismos mais breves — os mais afiados — e aqueles que não exigissem longas notas de rodapé explicando tudo o que fosse perdido na tradução, ainda assim a presente coletânea traz um bom número de aforismos longos, quase ensaios, e outro bom tanto de aforismos em que só por muito pouco não se perderam as ideias do original (ou aquilo que entendemos que sejam essas ideias...). Dessa forma — e desafiando o implacável juízo do nosso autor sobre a tradução: Uma obra da língua traduzida em outra língua: alguém que atravessa a fronteira sem sua pele e do outro lado veste o traje típico do país —, buscamos apresentar um panorama o mais representativo possível da criação aforística de Kraus.

    Renato Zwick

    Capa da primeira edição do jornal Die Fackel, de 1899.

    [acervo do wien museum]

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