Audiovisualidades: elaborar com Foucault
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Sobre este e-book
portanto, vão ser apresentadas e alinhavadas às formações propostas por Foucault em sua Arqueologia do Saber, fonte essencial para a compreensão dos trabalhos que leremos neste livro. Quem conhece as falas de Milanez vai reconhecer em seus escritos a delicadeza da sua voz e a força teórica de seus estudos. Audiovisual, Discurso e Foucault vazam pelo corpo escriturário do pesquisador dando nascimento à noção de audiovisualidades, que chega até nós por meio de mobilizações teórico-metodológicas dos Estudos Discursivos Foucaultianos no Brasil.
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Audiovisualidades - Nilton Milanez
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Audiovisualidades é uma noção que já nasce plural, o que implica a extensão de seus domínios e os tipos de articulação que elas podem estabelecer com objetos e discursos. As audiovisualidades são fatos históricos que possuem um tipo de organização específica, à qual cabe sua descrição e investigação para se compreenderem em casos de discursos, sendo estes que fazem proliferar as audiovisualidades. Essa pluralidade também fala de sua mobilidade, descontinuidade e heterogeneidade. São enunciações em um campo ordenado por séries de audiovisualidades em um jogo de coexistência dentro de um sistema e entre si. Elas constroem, então, as significações, no interior de uma rede de relações, cuja natureza é polidimensional. Por tais razões, o estudo das audiovisualidades é plural na mesma medida em que o estudo arqueológico está sempre no plural
(FOUCAULT, 2000a, p. 180). O imbricamento entre audiovisualidades e o estatuto arqueológico do pensamento foucaultiano é que aguça, incita e revela um exercício de multiplicidades discursivas.
Enveredo-me, neste livro, pelas aventuras de uma história cotidiana das imagens em movimento vistas e dos sons ouvidos, armazenados em nossa cultura de audiovisualidades. Para tanto, elaboro com as problematizações de Michel Foucault, a partir de suas discussões, um esquema que me permite trazer à tona alguns elementos importantes no campo do ver e do ouvir para a formação dos discursos. Não se trata de uma novidade teórica. Falo, principalmente, de como considerar a rede de postulados foucaultianos para se pensar uma realidade nossa e de nosso tempo.
Elaborar com Foucault não é tomar conceitos prontos, isso não me parece frutuoso. Foucault disse e escreveu sobre seus estudos em um momento determinado, em condições de pensamento específicas que, acima de tudo, nos ajudam a pensar nossas condições de políticas de vida hoje. Ao elaborar com Foucault, isto é, tomando suas propostas em A arqueologia do Saber, ajo em descontinuidade a céu aberto. Descontinuidade no tempo em que as apresentou, descontinuidade na história em que elas se produziram, descontinuidade em atualizações de novos acontecimentos. Repetir o que já foi dito é reapresentar, reintroduzir, redirecionar qualquer fala pessoal ou teórica no nível das descontinuidades histórico-espaço-temporais. Tal posicionamento me demanda a providência de um deslocamento intrínseco a qualquer esboço teórico, como o caso das audiovisualidades.
Procedo em tal elaboração estabelecendo recortes, limites teóricos e metodológicos, buscando transformações e andamentos nesses aspectos que realocam os conceitos e as noções às audiovisualidades como objeto de pesquisa e objeto de discurso. Acredito que esse tipo de elaboração atravessa a discussão foucaultiana da descontinuidade naquilo em que ela toca a questão das rupturas com a história, do lugar do corte para a instauração de um movimento, do espaço da mutação para se organizarem formas outras de arquitetura no discurso. É assim que Foucault me ajuda a elaborar a constituição de uma posição diante de objetos fílmicos e vidiáticos.
A elaboração deste livro com a teoria de Foucault exigiu-me o confronto com seus conceitos na medida em que pude avançar nos exercícios analíticos que empreendi sobre alguns objetos de audiovisualidades específicos. A elaboração inicia-se em um processo de esvaziamento da noção, à primeira vista sempre abstrata ou disforme. Seus contornos e o estatuto de análise é que nos deixam verificar a passagem do esquema teórico para o deslizamento do discurso. Em perguntas bastante voltadas sobre ‘O que é isso? O que é aquilo? Como se faz? De que jeito me organizo?’ é que, acredito, elaborei uma grade daquilo que se pode dizer de algum modo sobre objetos fílmicos e vidiáticos, mas apenas na medida em que podemos fazer dessa investigação uma análise sobre o modo de nos conduzir na teoria. Aquilo que somos, portanto, é o que vai aparecer na formação dos objetos das audiovisualidades. A atualidade de uma porção teórica revisitada e reconduzida vai se dar em meio a aceitações, recusas, indefinições, limites e transformação para nós, sujeitos de pesquisa.
Elaborar é um tipo de entrega ao outro — na teoria, na vida —, uma forma de reencontro com seu modo de pensar o mundo. No mundo das audiovisualidades, revejo a mim mesmo em elaboração teórico-metodológica não apenas na leitura de Foucault, no assistir seus movimentos e ouvir suas falas em vídeos, mas também em coexistência com um conjunto de fatos da vida que nortearam a condução do resultado, sempre parcial, desse trabalho.
O movimento teórico vetorial de meus estudos volta-se ao meu pós-doutoramento, em 2010-2011, na Sorbonne Nouvelle, Paris III, sob a supervisão de Jean-Jacques Courtine, com quem aprendi que a análise do discurso pode nos levar há muitos e diferentes lugares. No mesmo período, fiquei surpreso com as problematizações de Philippe Dubois no cinema. De imediato, debrucei-me sobre a relação de Foucault com o cinema, tema e teoria que persigo até o momento em meus Projetos de Extensão, Pesquisa e no trabalho em sala de aula na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), bem no coração do Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo (Labedisco/CNPq).
A partir daí, as elaborações foram desenvolvendo-se em formas de conversação por meio de seminários, cursos, disciplinas, congressos e, sobretudo, com Grupos de Pesquisa que levam a cabo uma produção em nível de extensão e ensino. Em cada capítulo, preocupei-me em retomar às questões descritivas e analíticas de um campo teórico para as audiovisualidades, às vezes imbricando-as, às vezes isolando-as, para, devagar, avançar um pouquinho. Para cada capítulo busquei uma questão teórica que pudesse fazer a noção de audiovisualidades entrar em embate com o jogo das enunciabilidades das materialidades das imagens em movimento e sua materialidade sonora. Estabeleci também temas específicos para cada um dos capítulos, a fim de poder movimentar a teoria e suas práticas de análise.
No primeiro capítulo, dou os contornos para uma base da noção de audiovisualidades no quadro dos estudos foucaultianos, organizando os modos de formação deste objeto de pesquisa e de discurso. No segundo capítulo, apresento tipos de espessuras que podem compor as audiovisualidades em sua descrição e funcionamento discursivo, tomando como alicerce o filme Cisne Negro para discutir sobre a formação do eu e do corpo. No terceiro capítulo, enveredo-me para uma constituição do regime discursivo das audiovisualidades em uma narrativa belenense, a Matinta Perera, e seu deslocamento para o curta-metragem paraense Matinta. No quarto capítulo, abordo o movimento erótico dos sujeitos em relação a produções vidiáticas no youtube que manifestam modos de amar no campo das sexualidades. No quinto e último capítulo, discuto a questão da contradição entre corpo e espírito como um tipo de biopolítica para novas formas de vida no domínio das audiovisualidades espíritas. Ainda, seja mais, seja menos, a discussão sobre o corpo vai afetar todos os capítulos na produção das audiovisualidades. Deixo, no final, a porta entreaberta para um devir. É sempre esse futuro incerto, com um passado renovado, que nos leva para frente, seja na mobilização da nominação de uma noção, como essa das audiovisualidades, seja para o inominável de tantas coisas na vida.
Capítulo I
Quais vias para o discurso das audiovisualidades? modos de formação de um objeto
O discurso se constitui-se por uma quimera de redes intrincadas, que marcam um espaço geográfico, físico ou mental, em um momento particular no tempo de uma história coletiva ou individual. O discurso, antes de ser aquilo que dizemos ou o modo de falar as coisas, está muito mais em tudo aquilo que não pronunciamos, nos nossos gestos, atitudes, modos de nos relacionarmos e vivermos em um espaço localizado. A questão que exige aqui um movimento teórico não é apenas a do discurso, mas a sua complexidade e especificidade de discurso das audiovisualidades. De onde vêm, então, as contingências que regulam certas regras de formação para o discurso das audiovisualidades? Quais fortunas materiais incorporam o sujeito a esse discurso? Que objetos se levantam em direção à constituição do filme, seu arsenal audiovisual e seus discursos? Vou tomar, pois, alguns breves delineamentos desse campo, que subjazem a dois pontos de intersecção, a história e o cinema.
De onde vem esse modo de encarar o discurso das audiovisualidades?
Os contornos dessa teorização têm um objetivo único, esboçar as regras de formação
(FOUCAULT, 2000a, p. 43), nas quais o personagem se torna sujeito no interior de audiovisualidades que, em seus desdobramentos, contará sempre a nossa própria história. Para tanto, é importante situarmos os registros dos quais emergem essa possibilidade teórica. Tanto nomear quanto circunscrever esse campo de atuação no cinema é um bom começo para se pensarem os regimes discursivos das audiovisualidades e as formas que dão existência a esses objetos.
Essa forma de encarar o discurso das audiovisualidades vem, primeiro, dos direcionamentos de Foucault acerca de domínios históricos de longa duração, como é o caso de As palavras e as coisas ou a História da loucura; segundo, vem também de histórias de curta duração, de microhistórias, tais como as memórias e confissões em Pierre Rivière, degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão ou Herculine Barbin, o diário de um hermafrodita. Foucault se ampara em uma História Nova que coloca no centro as descontinuidades, os limites e as séries, evocando como protagonistas não mais os reis, rainhas, príncipes e princesas de uma história de soberanias da história tradicional, mas sujeitos vulgares, comuns, do dia a dia, como peças fundamentais da escrita da história.
Ajo, portanto, sobre os signos de uma história nos quais seus elementos tomam força, intensidade e furor simultaneamente, não em linearidade; em pulverização de acontecimentos, entretanto. Aquilo que me é muito significativo em termos de produção histórica e que se estende ao cinema em seu sistema audiovisual é o estabelecimento de séries, de quadros possíveis de se constituírem em um jogo de correlações uma organização de audiovisualidades. E, não é com espanto, que, na Arqueologia do Saber, em sua Introdução, ao discorrer sobre a Nova História, Foucault (2000a, p. 12-122) situa, em nota, uma provocação:
Será que preciso assinalar, para os mais desatentos, que um quadro
(e, sem dúvida, em todos os sentidos do termo) é formalmente uma série de séries
? De qualquer forma, não se trata de uma pequena imagem fixa que se coloca diante de uma lanterna mágica, para a grande decepção das crianças, que, nessa idade, preferem, é claro, a vivacidade do cinema.
Como atesta Foucault no encadeamento de sua fala, pensar a delimitação de uma série, estabelecendo seus quadros, concerne aos artefatos da história que se ligam aos procedimentos de imagem, não a fixa, mas a da luminosidade mágica de uma lanterna que traz o som e o movimento, dando vida às audiovisualidades na produção cinematográfica. O lugar da história e sua ligação com o cinema é antecipado, então, brevemente, e salutarmente, por Foucault em ١٩٦٩. Será em ١٩٧٦ que François de la Brétèque, Professor de estudos cinematográficos, discute a relação entre cinema e história. Em Les Cahiers de la Cinémathèque, Bretèque (1976), em seu artigo Mémoires d’une Nation percorre um caminho que considera o cinema uma tessitura em que se enredam a memória histórica e sua intervenção na memória fílmica, chegando a falar da Archéologie des deux mémoires no cinema, o que em tão curto espaço de tempo, 1969-1976, nos remonta à Arqueologiado Saber de Michel Foucault, que será retomado em um quadro para fixar uma memória no presente.
Bretèque discute, assim, a integração do cinema à história e observa a necessidade de dar seu lugar em uma história das mentalidades. Nesse momento, o professor explica que não tem a inocência de querer reconstituir o passado, no cinema, tratando-o como um documento. Isso, sabemos bem, seria uma forma, dentro do quadro da Nova História de abordar um acontecimento. Por isso mesmo, Bretèque (cujas citações serão todas traduzidas por mim) se refere à expressão foucaultiana na qual ele designaria essa tarefa como uma forma de passatempos simpáticos, mas tardios, de historiadores de calças curtas
(FOUCAULT, 2000a, p. 162 apud BRETÈQUE, 1976, p. 8). Esse tipo de significação para o cinema vaza a partir da querela de se fazer um cinema realista, do qual nenhum filme escapa, mas cuja realidade caberia estar, sim, ligada a um referente como a mentalidade da qual a obra é seu reflexo
(BRETÈQUE, 1976, p. 8). Bem, de toda forma, esse é o campo dos historiadores, porém, não poderiam ficar tomando o regime das audiovisualidades fotográficas como um documento apenas. Para Bretèque (1976, p.8),
O historiador do cinema se situa no interior do fato cinematográfico: sua posição específica face ao objeto o leva a operar uma reversão de perspectiva, trabalhando sobre o filme do qual ele tratará, segundo os termos de Michel Foucault, como ‘monumento’.
Com esse tipo de intervenção, Bretèque autoriza a visada foucaultiana em sua Arqueologia, ou seja, a crítica do documento
(FOUCAULT, 2000a, p. 7). Tanto Foucault quanto Bretèque não desconsideram o documento dentro da história como disciplina. Entretanto, ao servirem-se dele, suas interrogações giravam em torno daquilo que eles poderiam dizer sobre sua veracidade, a atestação de autenticidade ou sua fraude. Tudo isso, como diz também Bretèque, vai levar apenas a uma ideia de reconstituição do passado, e o pesquisador quer integrar a história em seu campo no presente. Tomando a proposta de Foucault, Bretèque visa, acima de tudo, mudar o estatuto do historiador do cinema, alertando-o não para um trabalho de interpretação, com expressividade de verdade. Citando Foucault (2000a, p. 7-8), Bretèque (1976, p. 8) insiste no desligamento de
uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental (livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.) que apresenta sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade, formas de permanências [...].
Seguindo o fio do pensamento de Bretèque, a proposta dele não é tomar em desenvolvimento esse problema teórico. De outra forma, é dar legitimidade a um campo de pesquisa com autonomia no que se refere ao historiador do cinema, que deve considerar o filme como produto tanto quanto suas significações devam ser encaradas não somente cinematograficamente. De meu lado, essa voz autorizada de Bretèque explica, esclarece e faz a incursão do posicionamento de Foucault dentro de um quadro da história do cinema e me dá a possibilidade de problematizar o universo das audiovisualidades.
A primeira publicação de Foucault sobre cinema é uma entrevista realizada na rua de Vaugirard, em seu apartamento moderno, branco, muito iluminado, invadido por livros
(TOUBIANA, 2014, p. 179), e concedida a Paul Bonitzer — na época crítico de cinema dos Cahiers de cinéma e, hoje, também roteirista, diretor e ator — e Serge Toubiana — redator chefe dos Cahiers naquele momento e, atualmente, diretor da Cinémathèque Française de Paris, tendo sido publicada sob o título Anti-retro. Segundo declaração de Toubiana (2014, p. 180), Este encontro com Foucault havia sido um encontro decisivo, o signo de uma abertura em direção a um novo tipo de questionamento crítico operante, um desvio pela História, que deveria em contrapartida enriquecer nossa visão nova do cinema
.
Foucault colaborou, portanto, enormemente, com uma virada histórica no cinema, que se desprendia de pressupostos ideológicos marcados por um maniqueísmo nos territórios do cinema. Reformulou a história do cinema por meio dos modos como os objetos cinematográficos poderiam se compor em termos de audiovisualidades, construção de séries históricas, formas de discurso e (des)organização dos gestos e dos corpos em tela grande. Norteou essas discussões em torno das modalidades de formação dos objetos de discurso, como demonstrou em suas problematizações n’A Arqueologia do Saber, sinalizando-as como um lugar bastante efervescente para o debruçamento do analista do discurso sobre as redes do cinema e sua contribuição ao feixe de relações