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Aos Pés do David
Aos Pés do David
Aos Pés do David
E-book223 páginas2 horas

Aos Pés do David

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Sobre este e-book

Aos pés do David por Rossella Scatamburlo

Uma história de amor marcada pela arte, com um toque de mistério.

Somos o fruto das nossas relações. O nosso Eu é o somatório das experiências, do contato com os outros, das leituras, das memórias. Quando olhamos no espelho, vemos um reflexo de nós mesmos, efêmero, ligado a um hic et nunc irrepetível, visto que, no momento seguinte, já não nos parecemos mais a nós mesmos porque tudo isso com o que estivemos em contato nos transforma, e nós transformamos aquilo com o que nos relacionamos. Assim, mesmo os objetos que tocamos não são mais os mesmos depois que deixamos nossas digitais sobre eles, enquanto vestígios estratificados e indeléveis. Nisto pensava Beatrice Verdi após ter concluído a sua tese de graduação sobre o David de Michelangelo e depois de ter-se aprofundado no tema da Síndrome de Stendhal. A sua pesquisa havia-a levado a ter contato com o fascinante professor Carlo Regis, mas também com o diabólico Stefano Corona, vigia de sala na Galeria da Academia de Belas Artes de Florença, que nela descobriu sua musa inspiradora para a criação da sua obra perfeita, elaborando às suas costas um terrível plano...

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento14 de set. de 2019
ISBN9781071502495
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    Aos Pés do David - Rossella Scatamburlo

    ROSSELLA SCATAMBURLO

    AOS PÉS DO DAVID

    ROMANCE

    1

    Uma chuva de luz iluminava a branca superfície marmórea, deslizando docemente sobre o corpo nu do herói. Brincava com os abundantes cachos de sua cabeleira, iluminando alguns e deixando outros na penumbra. Acariciava a superfície lisa da face, evidenciando cada traço: as sobrancelhas franzidas, o olhar altivo e concentrado, as narinas dilatadas e um trejeito de desprezo nos lábios.

    O olhar da moça se deteve, sobretudo, naqueles olhos tão intensos. A luz penetrava através das pupilas, enquanto a órbita permanecia na sombra. Aqueles olhos pareciam dirigidos a um horizonte distante, ultraterrestre e, ao mesmo tempo, conferiam ao personagem uma seriedade de quem tem consciência de ser dono do próprio destino.

    A moça abaixou os olhos, temerosa de que aquele olhar pudesse penetrar nas profundezas de sua alma, perscrutá-la, atravessá-la. Mas, em seguida, uma estranha força atraiu de novo o seu olhar. Alçou os olhos na direção do resto da imagem e viu aquele corpo nu, perfeito, viril, que somente a luz não temia roçar. Podia admirar a torção da nuca que deixava entrever uma veia, a tensão de cada tendão, a contração dos músculos dos braços e das pernas e as veias nas mãos e nos pés.

    Por um instante, teve a sensação de que a estátua ganhasse vida. Estremeceu. Aquele corpo não teria, por acaso, respirado e transferido o seu peso para a perna direita? O coração começou a bater-lhe forte. Levantou novamente o olhar para aqueles olhos pensativos que tinham tal força de atração. Não conseguia desviar o olhar. Começou a sentir-se dominada por uma sensação de calor e de esgotamento. Sentia seu corpo muito pesado e inerte. Não conseguia mais controlá-lo como se, por algum sortilégio, fosse outrem a manobrá-lo.

    Foi criado um vínculo que não conseguia romper. Sentia-se completamente súcuba daquele olhar. Sua cabeça começou a girar, e aquele rosto diante dela, que antes parecia bem nítido, pareceu-lhe maior, circundado por um halo esbranquiçado, e se desdobrou, até que ela perdesse todo o contato com a realidade sensível.

    Quando voltou a si, estava deitada no chão, e um homem em uniforme estava segurando sua mão e tentando reanimá-la.

    I’m fine – disse enquanto se levantava. O vigia propôs que fosse chamada uma ambulância, mas ela assegurou-lhe de que se sentia melhor.

    What’s your name?

    I’m Jessica.

    O homem ofereceu-se para chamar alguém que a acompanhasse até em casa, mas ela explicou que estava sozinha de férias em Florença e que estava hospedada no Hotel Santa Marta. De qualquer forma, ele não teria pelo que se preocupar, pois o hotel ficava perto; então deixou ela ir embora.

    2

    Quando voltou ao seu quarto, Jessica, sem forças, deitou-se na cama. Fechou os olhos e reviu aquela imagem do David. Não conseguia deixar de pensar no efeito que aquela estátua teve sobre ela. Como podia ter acontecido? Era a primeira vez que visitava Florença e a Galeria da Academia de Belas Artes, mas antes disso, tinha recorrido muitos museus e obras de arte. Esta questão a atormentou até que bateu o sono.

    Quando acordou na manhã seguinte, pensou em ligar para sua mãe, em Washington, para contar-lhe o ocorrido, mas depois deduziu que a deixaria preocupada inutilmente. Tinha que admitir que ela mesma tinha-se assustado quando se viu estirada no chão do museu. Por sorte, o vigia tinha-a ajudado. Como tinha sido gentil! Preocupou-se muito com ela.

    Enfim, era seu último dia em Florença; no dia seguinte, domingo, pegaria o voo para Washington e contaria tudo à sua mãe pessoalmente.

    Enquanto isso, decidiu que, após o café da manhã, sairia para passear pela cidade e para comprar as últimas lembrancinhas. Mas ainda era cedo e então podia ficar na cama por mais uma meia hora. Assim, pegou o guia de Florença no criado-mudo e releu algumas informações sobre o David.

    O David foi esculpido por Michelangelo Buonarroti entre 1501 e 1504 e é considerado uma obra-prima mundial, especialmente do Renascimento. Retrata o herói bíblico enquanto se prepara para enfrentar o gigante Golias. A estátua é em mármore branco e tem 4,10 metros de altura. Os florentinos da época a consideravam símbolo da cidade de Florença. Inicialmente concebida para ser instalada ao ar livre, em 1872, devido a várias vicissitudes, foi transferida à Galeria da Academia e posta em uma sala iluminada por cima por um conjunto de claraboias.

    Vasari fala dela como um exemplo de arte primorosa. Com efeito, suas formas viris remetem à escultura grega do século V a.C. para representar um jovem e atlético herói. A posição do quiasma, no modelo de Policleto, evidencia a contraposição entre tensão e relaxamento dos membros. Um estudo atento dos detalhes anatômicos favoreceu o conseguimento de formas viris poderosas e harmônicas.

    O nu heroico, porém, encarna também valores filosóficos e estéticos. Ele é expressão da força e da potência de uma cidade democrática que, em seu momento de máximo esplendor, vence a tirania, assim como David vence Golias após tê-lo desafiado com seu olhar penetrante.

    Michelangelo, então, parte da emulação do antigo para construir uma figura masculina nua em movimento, que atende os ideais estéticos de unidade, harmonia e perfeição. Trata-se de uma figura solene que, através de uma notável força expressiva, paira acima da realidade humana, em uma dimensão de dignidade suprema. Nela estão evidentes as virtudes da força e da ira, da grandeza e da dignidade do homem. Um elástico movimento muscular une-se a uma forte tensão psicológica interna com a finalidade de evidenciar a força física e moral de um personagem dono de seu próprio destino.

    A este respeito, é também interessante a concepção estética de Michelangelo, próxima às ideias neoplatônicas do tempo. Segundo esta visão, a beleza sensível é reflexo de uma beleza mais elevada, divina. Somente uma alma virtuosa, porém, dispõe da arte com a consciência de que ela é um meio de ascensão espiritual. Se nos esquecemos que o fim último da beleza artística é a contemplação da essência divina, os sentidos podem perder-se, aturdidos somente pela materialidade. A arte deve, portanto, ser o lugar privilegiado da relação entre a matéria e o mundo das ideias.

    A ideia da obra está em curso na mente do artista, como um dom divino, enquanto latente na matéria a qual, em si mesma, está morta até que o artista libere sua beleza.

    Jessica releu a frase que falava da perda dos sentidos aturdidos somente pela materialidade. Provavelmente era isto o que tinha acontecido com ela: concentrou-se somente na fisicalidade daquela obra. Recordou o momento no qual entrava na Galeria da Academia. Assim como acontece no aeroporto antes do embarque, tinha tido que passar pelos controles de segurança. Uma senhora anciã que a precedia na fila, provavelmente de nacionalidade espanhola, por alguma razão tinha feito acionar os sensores do detector de metais. O marido, um senhor distinto e tranquilo, já tinha passado e esperava, enquanto o agente fazia-a tirar cada objeto de metal: relógio, chaves, celular. Depois de tê-los depositados em uma caixa, a senhora, um pouco desajeitada, passou novamente, mas os sensores voltaram a soar. Assim, com uma expressão de leve constrangimento, voltou para trás e tirou também a máquina fotográfica que levava a tiracolo. Finalmente, os sensores não detectaram nenhuma irregularidade, e a senhora passou sem maiores entraves.

    Quando foi a sua vez, Jessica depositara a bolsa na esteira rolante e passara sob o detector de metais sem que ele identificasse nenhum objeto suspeito. Uma vez recuperada a bolsa, dirigiu-se à bilheteria e pagou sua entrada de seis euros e cinquenta centavos.

    Na entrada da primeira sala, uma jovem funcionária rasgou o ingresso com um gesto bruto e mecânico de quem é obrigado a repetir a operação uma infinidade de vezes e, com voz privada de qualquer entusiasmo, dissera-lhe que não tirasse fotos no interior do museu. Jessica sabia que, em muitos museus, é proibido tirar fotos, talvez porque podem danificar as obras. Ela tinha sempre concordado com esta norma, mas nesta ocasião, no fundo do seu coração, lamentava particularmente não poder levar consigo uma recordação pessoal do David.

    Ao entrar na primeira sala, achava que teria visto de imediato o herói de Michelangelo. Mas, ao contrário, estava exposta uma outra escultura da qual agora não lembrava nem mesmo o tema. Em volta desta, nas paredes, estavam pendurados alguns quadros, mas mesmo esforçando-se para se lembrar deles, não conseguia. Lembrava-se só que, à sua direita, havia uma entrada para outra sala onde, segundo uma tabuleta, deviam estar em custódia alguns instrumentos musicais, mas eles não a interessavam. Eventualmente, ela os veria depois. Agora, o seu objetivo era ver o David e as outras esculturas que Michelangelo tinha deixado inacabadas. Sabia que até o inconcluso confere à arte uma notável fascinação.

    A última coisa de que se lembrava, antes de deixar a primeira sala, foi um turista desconsiderado que sacara uma foto e que tinha sido pronta e asperamente repreendido por um vigia. Depois, cada lembrança sua remetia à sala sucessiva e ao vórtice de sensações que a tinham tomado quando transpusera a soleira entre a primeira e a segunda sala. À esquerda, a porta levava a um longo corredor no final do qual havia uma sala semicircular com o teto em forma de cúpula. Sim, era justamente ali. Sua vista foi capturada como se um potente ímã tivesse atraído o seu olhar. Não tinha dado bola para as esculturas inacabadas do artista, que estavam posicionadas nas margens do corredor, porque no final dele, no meio de uma enorme sala, erguia-se um gigante.

    Recordava-se perfeitamente de como, com a emoção, seu coração começara a bater mais forte. Abriu caminho entre as pessoas, percorrendo o longo corredor com o olhar fixo naquele gigante que a chamava. Sentia uma força estranha que a atraía cada vez mais adiante, até que se encontrou a seus pés, completamente súcuba de uma estranha força invisível, divina.

    O alto pedestal de mármore branco e vermelho estava circundado por uma proteção de plástico transparente que impedia que se aproximasse demais da obra ou que fosse tocada. De qualquer forma, Jessica aproximou-se tanto quanto possível e dali sentiu que aquele herói, do alto de sua imponência, dominava-a. Erguendo o olhar para poder abranger a obra na sua íntegra, inclinara a nuca para trás e, naquela posição, sua cabeça começou a girar. Deu alguns passos atrás e depois decidiu circundar a estátua para vê-la sob todos os ângulos.

    Em seguida, sentou-se em um banco de madeira atrás da escultura e notou como a funda do herói descia comprida e aderente às costas marmóreas, ao passo que a mão direita segurava a pedra. Cada membro daquele corpo parecia enorme, especialmente os pés em busca de equilíbrio sobre a base.

    Levantou-se e rodou de novo em torno ao herói, admirando a contração dos músculos das coxas e do abdômen, as veias dos braços e das mãos e os tendões das pernas. Aquela escultura diante de si representava a encarnação da perfeição masculina, e todos estes detalhes tornavam-na tão real, que Jessica mal podia crer que tal obra fosse inanimada.

    Novamente, seu olhar elevou-se para encontrar o do herói, e foi naquele preciso instante que seu coração disparou e a vista começou a se turvar. Havia, porém, algo que a perturbava particularmente e que ainda estava nítida em sua memória. Conforme continuou a caminhar na frente do herói, da direita para a esquerda e depois no sentido contrário, sem nunca tirar o olhar daquela face, notara que a expressão do David mudava. De um lado, parecia-lhe um jovem relaxado que se preparava para a campanha com ânimo sério, porém calmo, consciente da própria força interior, mas sem necessidade de ostentá-la. Do outro, tinha diante de si um homem, um adulto irado e pronto para o ataque do inimigo que ele realmente via, e que também Jessica quereria olhar atrás de si para se assegurar de que naquele momento não tivesse realmente se materializado às suas costas, prestes a engajar-se em uma luta díspar e mortal. Deste rosto adulto e viril, liberava-se a força de quem está ciente de que está a ponto de começar a enfrentar uma grande empresa, mas que tem também a certeza da vitória, porque sua mão terá a condução divina.

    Todavia, Jessica continuava a se perguntar como era possível que aquela estátua inerte tivesse mudado de expressão e se continha, dentro dela, outras naturezas em contraste entre si. Porém, quanto mais procurava obter uma explicação para aquele olhar, mais ainda ele a confundia e enfeitiçava. Nesse meio tempo, tudo ao seu redor estava-se desmaterializando. As outras pessoas na sala tinham desaparecido, e ela via somente aquele rosto tão misterioso que, com o intuito de observar um horizonte longínquo, atraia-a sem sequer olhá-la. E assim, em um vórtice de pensamentos e imagens, sua visão ficou enevoada até que, incapaz de suportar a força daquele olhar, seu corpo relaxou toda tensão.

    Mas agora, na cama, enquanto repensava aqueles momentos, a imagem daquela face voltava a obcecá-la. Entrara na sua cabeça e não queria mais deixá-la. Estava revivendo as sensações de opressão e temor do dia anterior, e aqueles pensamentos a assustavam. Por fim, Jessica achou que fosse melhor não trazer aqueles momentos de volta à mente e, assim, saiu da cama, vestiu-se e desceu para tomar o café da manhã.

    3

    Como Florença estava bonita naquela manhã, quando Jessica saiu do hotel para comprar as últimas lembrancinhas antes de partir! Era um dia luminoso de início da primavera e, ainda que fizesse frio, um sol tímido começava a aquecer o ar, conferindo-lhe aquela agradável tepidez que anuncia

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