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TEATRO ALQUÍMICO: Diário de leituras
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TEATRO ALQUÍMICO: Diário de leituras
E-book210 páginas2 horas

TEATRO ALQUÍMICO: Diário de leituras

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Sobre este e-book

Esta obra é um diário de leituras do autor. Apresenta de forma singular alguns dos livros que marcaram sua adolescência e sua juventude. Um verdadeiro convite para se refletir, uma vez mais, o espaço da literatura e do ensaio.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de jul. de 2018
ISBN9788594850584
TEATRO ALQUÍMICO: Diário de leituras

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    TEATRO ALQUÍMICO - Marco Lucchesi

    Autorais).

    Conselho Editorial:

    Ana Maria Haddad Baptista (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)

    Catarina Justus Fischer (Doutora em História da Ciência/PUC-SP)

    Lucia Santaella (Doutora em Teoria Literária/PUC-SP)

    Marcela Millana (Doutora em Educação/Universidade de Roma III/Itália)

    Márcia Fusaro (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)

    Vanessa Beatriz Bortulucce (Doutora em História Social/UNICAMP)

    Ubiratan D’Ambrosio (Doutor em Matemática/USP)

    Ficha Catalográfica

    LUCCHESI, Marco. Teatro Alquímico – Diário de leituras – 152 pp. – São Paulo: BT Acadêmica, 2018.

    ISBN 978-85-9485-058-4 | 1. Literatura 2. Literatura brasileira 3. I. Título

    DUAS PALAVRAS

    Este livro é um diário de leituras. Seja-me então permitido iniciá-lo com uma história que marcou minha infância. A esplêndida invenção do Orlando furioso sempre foi demasiadamente generosa para abrigar distâncias, que não fossem ultrapassadas pelo Hipogrifo, profundidades, que não fossem suplantadas pela astúcia de Bradamante, labirintos, que não fossem vencidos por Rinaldo, todos em armas e amores sublimados, que tanto desconcertaram o Cavaleiro da Triste Figura. A passagem a que me refiro é a ida de Astolfo à Lua, para recuperar a razão de Orlando, paladino infeliz, que não fora correspondido em seu amor pela belíssima Angélica, filha de Galafrão, rei do Catai, e que agora errava louco pelos bosques.

    Tudo quanto se perdia na Terra, achava-se na Lua: lágrimas de amor, tempos ociosos, coroas de reis e rainhas, escombros de palácios e castelos, moedas esquecidas e ampolas, especialmente aquela, onde estava escrito razão de Orlando, que seu primo, Astolfo, cuidou trazer de volta ao nobre paladino. Tenho para mim que este diário é como a paisagem lunar de Ariosto. Cheia de possibilidades e de combinações. Surpresas que motivaram o buscador literário a seguir o pensamento emocionado de Orlando. Eis os limites da geografia dos ensaios.

    Marco Lucchesi

    O PRINCÍPIO DOSTOIÉVSKI

    Um clássico é sempre um divisor de águas em nossa história. Um acontecimento impressionante. Um incêndio. Um terremoto.

    Deve perturbar e arrebatar. Toda a sua leitura repercute em vários órgãos de nosso corpo. Sim, porque alguns livros recordam que somos pensamento. Outros, recrutam o sentimento. Outros, ainda, perturbam o sono. Um clássico deve tocar o cérebro e o coração, os ossos e as vísceras, tirar o sono, triturar nossas certezas, esmagar nossos erros.

    Ou tudo, ou nada.

    Assim aconteceu quando fui abalroado pelo O idiota, de Dostoiévski, e meu sono, e minhas vísceras, e minhas lágrimas foram convocadas de mim para mim. Tinha treze anos de idade, e O idiota foi um relâmpago em meus céus de puro Sol. A tempestade-Dostoiévski me deixou marcado até os ossos. Não era um capítulo da literatura, mas era a Literatura. A nuvem-Dostoiévski começou a habitar os meus olhos. E mal desconfiava que minha vocação estava toda em seus romances. Que minha vida seria tocada pela chama de sua grandeza atormentada.

    Comecei a aprender russo, mais tarde. Contemplei o Cristo de Holbein, que comoveu Dostoiévski, ao descer da Cruz, em Basel. Visitei, em Florença, o apartamento onde terminou O idiota, enquanto ele, Dostoiévski, e eu, passeávamos pelo jardim de Boboli e pelo Palazzo Pitti.

    Pelo que se vê, eu não me tornava apenas um leitor esquizofrênico de Dostoiévski, mas começava a fazer parte de seu mundo, cinzento e abissal, tornando-me, talvez, um de seus próprios personagens. O último de seus personagens, frequentando o príncipe Liév Nicolaievitch Míchkin, em sua trágica santidade, Nastássia Filípovna, varada pela tristeza de seus abismos, e O tempestuoso e maldito Rogójin. Todos estranhamente próximos.

    Mas o que tinha em mente Dostoiévski quando começou a pensar nesse romance?

    Ora, Dostoiévski buscava fixar a representação de um homem incomparavelmente excelente, o príncipe Míchkin, embora soubesse que a Rússia e o Ocidente houvessem falhado na criação desse belo em estado absoluto. Para Dostoiévski, não existe no mundo senão um ser absolutamente belo, o Cristo, que significa, para São João, a própria encarnação do Belo. Dentro da literatura, contudo, a figura mais bem-sucedida é a de Dom Quixote. Mas, Dom Quixote (escreve Dostoiévski para Sofia Ivánovna) só é belo, por ser ao mesmo tempo ridículo. O Pickwick de Dickens (onde a idéia é infinitamente mais fraca do que em Dom Quixote, mas assim mesmo imensa) é também ridículo, e é por isso que ele prende a atenção. Sente-se compaixão por uma bela figura que é vítima de zombarias e que ignora o seu próprio valor, e assim nasce a simpatia do leitor. Esse despertar da simpatia, eis precisamente o segredo do humor. No meu romance não há nada de semelhante, absolutamente nada, é por isso que temo que resulte num malogro completo.

    Todos os que conheceram Míchkin, esse Dom Quixote da literatura russa, como o definiu Carpeaux, foram tocados estranhamente pela sua condição, que era (ao mesmo tempo em que também não era) de louco rematado, para uns, de perfeito idiota, para outros, ou talvez de santo, para os que o amaram (houve de fato quem o amasse?), cuja santidade, estranha e arrevesada, era toda compreensão e desespero.

    Como esquecer as páginas vibrantes de Romano Guardini, para quem Míchkin era a Figura Christi?

    Pouco importa, contudo, se a sua imagem labirintada e profunda, varrida pela tempestade da loucura, e minada pelo abismo de sua grandeza, tenha deixado os críticos incertos, a tal ponto de atribuírem esta ou aquela figura, este ou aquele conceito, para determinar-lhe o indeterminável rosto.

    O que mais surpreende, encanta, esmaga e redime, em O idiota, e em toda a obra de Dostoiévski, é o princípio da indeterminação, onde as fronteiras psicológicas, muito mais amplas e profundas, e arriscadas do que certa psicanálise argentária e glacial, tocam as fronteiras da loucura e do milagre. Como que tudo brilhasse sob a luz de uma estrela imprecisa e derradeira, incapaz de vencer a noite, plural e absoluta, no céu em que brilha, solitária.

    Algo parecido com Os noivos, de Manzoni, em que algumas de suas personagens, toca das pelo mistério, podem cumprir novas e inesperadas tarefas, sob a luz das possibilidades mais altas do ser humano. Ao comentar Manzoni, Luigi Russo afirmava que todo ser humano, no arco de sua existência, por mais criminosa, há de ter uns cinco minutos de grandeza. E – para alguns críticos – Míchkin poderia ser o projeto iniciado, nos últimos e belíssimos capítulos de Crime e castigo, onde Ródion Románovitch Raskólhnikov vivia o seu processo de dolorosa redenção.

    Para O idiota, toda uma vida de miséria e de grandeza bastariam a determinar o rosto dos anjos de Rilke, de todos os seres despegados de um céu irreconhecido e dramático, queimados pela loucura e pela santidade, quando o príncipe, exausto do peso da tristeza que via nos olhos tristíssimos e desesperados de Nastássia, da coquetterie de Agláia Ivanovna, terrível em seu mundo primevo, e do fogo macabro que reconhecia em Rogójin, muito depois de com ele ter trocado a cruz bizantina, Míchkin sonhava com as montanhas, e de modo muito particular, com um sítio em que sempre gostava de pensar, um sítio onde sempre gostava de ir e donde costumava contemplar a aldeia lá embaixo; a cascata brilhando como um filete branco, a cair: as nuvens brancas, e aquele castelo em ruínas. Por que não estava agora lá, sem pensar em nada? Oh! A não pensar em coisa alguma, pelo resto da vida! E então mil anos não seriam demasiado longos! E ser completamente esquecido daqui!.

    E essa é realmente a parábola de O idiota. Do silêncio para o silêncio. Míchkin completou a sua vida, breve e intensa, num grave e soberbo projeto de redenção do humano para somente depois, preso na esfera sublime de sua santidade, para apenas depois, voltar a contemplar dolorosamente toda aquela paisagem suíça do sanatório, que o levara, das primeiras páginas do romance, de Varsóvia a Petersburgo. Do silêncio para o silêncio. Do abismo para o abismo.

    VIDAS IMAGINÁRIAS

    Um livro de Marcel Schwob é sempre bem-vindo. Primeiro, porque Schwob é um daqueles escritores intensamente citados, e raramente frequentados. Segundo, por se tratar de um escritor de primeiras águas, reconhecido por Jules Renard ou Rémy de Goumont. Alfred Jarry dedicou-lhe Ubu Rei; Paul Valéry, sua Introdução ao método de Leonardo da Vinci. Além disso, Jorge Luis Borges confessa que boa parte da História universal da infâmia (mas não apenas esta) deve-lhe alguma coisa. Finalmente, motivo mesmo de grande alegria, é que Vidas imaginárias faz uma sublime defesa do singular, matéria insequestrável da literatura. Ora, essa defesa ocorria num momento em que o cientificismo positivista alardeava toda a sua arrogância, esmagando o indivíduo num horizonte esquálido, sobredeterminado pela raça, lugar e história, ou, então, por Oswald Spengler, em A decadência do Ocidente, que definia a humanidade enquanto mero conceito zoológico.

    Em Vidas imaginárias, o indivíduo é palpável. Irredutível. Vivo, como nas telas de Holbein: Olhai uma folha da árvore, com suas nervuras caprichosas, suas tintas variadas pela sombra e pelo sol, a ondulação que a queda de uma gota da chuva provocou, a picada que um inseto deixou, o rastro prateado do pequeno caracol, a primeira douradura mortal que marca o outono; procurai uma folha semelhante em todas as grandes florestas da terra; eu vos lanço o desafio. Para Schwob este deveria ser o norte de uma biografia. O absolutamente singular, sem excesso de bizarrias. Tudo quanto determina o espectro de solidão que devemos reclamar dos indivíduos-folhas ou dos indivíduos-caracóis. Schwob condena a tentação de explicar o singular mediante ideias gerais, aplicadas de maneira impiedosa ao indivíduo, como se este nada mais fosse do que a simples ilustração de uma tese. Recordo, a propósito, o legado obscuro da psiquiatria eugenista. Ou, então, quando certo sociologismo definia Beethoven como o representante das classes dominantes. Até hoje não encontrei o compasso ou a frase musical onde essa tese mesquinha e absurda adquirisse consistência.

    Por essas e outras razões, o livro delicioso de Marcel Schwob serve como antibiótico pré-borgiano para as tentações dominadoras do sistema. O método de Vidas imaginárias (como também do Espicilégio e de A cruzada das crianças) consiste na tensão entre personagem real e vida irreal, entre documento e criação. Cada vida redistribui a tensão, o limite e a forma dessas polaridades. Eis o que ocorre com o poeta Cecco Angiolieri, que escreveu um poema terrível em que, se fosse um dilúvio afogaria o mundo e, se fosse a morte, levaria o próprio pai. Ou Frate Dolcino, mencionado por Dante, considerado herege. Ou a série de corsários e assassinos, tão a gosto de um Blaise Cendrars (que iria entrevistar, quando de sua visita ao Brasil, o assassino de carne-e-osso, que se chamou Febrônio).

    Diante disso, sobressai de Marcel Schwob a lição dos estudos clássicos, onde outras vidas se juntam às que acabamos de citar. Como Empédocles, o filósofo, Eróstrato, o incendiário; o imenso e atormentado Lucrécio, autor do De rerum natura; e, mais intensamente, Petrônio, de quem Schwob sabe reproduzir finamente os detalhes do Satyricon, banquetes e acepipes romanos, dentro de um clima ligeiramente decadentista, à maneira de um Huysmans, embora com um lastro superior de erudição, pois Schwob traduziu Apuleio (como esquecer das belíssimas Metamorfoses?), além de criticar Plutarco e Suetônio, conhecedor que era de grego, sânscrito e latim.

    Penso que boa parte do método das Vidas imaginárias, para usar a expressão de Valéry, deve ter sido originada, muito provavelmente, da tradução de Luciano de Samosata, levada a cabo por Schwob. O traduzido deve ter despertado motivações literárias no tradutor. Leiam os deliciosos Diálogos marinhos e os Diálogos dos deuses em que as cenas da epopeia e da tragédia grega reaparecem deslocadas por Luciano, segundo o gosto helenístico, que havia de perdurar, séculos afora, inspirando até mesmo um Leopardi, em seus Opúsculos. Temos em Luciano o cíclope que reclama de Ulisses com Posseidon; Prometeu que negocia com Zeus a sua liberdade; Hermes que lamenta o seu destino com Maia.

    Se tivesse de escolher uma, dentre as vinte e duas vidas imaginárias, eu escolheria a de Lucrécio, pois a relação entre criação e erudição é de uma felicidade exemplar, quase da mesma altura do Averróis de Borges, embora menos filosófico, mesmo quando faz dizer ao grande atomista Lucrécio que "as lágrimas vêm de

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