Arte contemporânea: modos de usar
De Paula Braga e Thiago Lacaz
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Arte contemporânea - Paula Braga
Read me
1 Labirintos mentais
O meu eu mesmo faço
2 Arte, oxigênio e náuseas
Eye-candy
3 Devir-homem
Boa-tarde
4 O ato de criação
O que é o ato de criação
5 Penumbra
O tempo e a crítica de arte contemporânea
6 Tempo
Festa
7 Sinapses
Para um jovem sem expectativa de futuro
8 Bilhete de ida e volta
O lugar psíquico da criação artística
9 Artesania
Adendo ao processo *** Comarca de *** Vara Cível ***
10 Lutos e rituais
Não mais, mas ainda
11 Querido Hélio,
Colmatar o vazio
12 Zaira
Jaque
13 Ninguém chama o Hélio de datado aqui não, mermão!
Tempo e espaço estéticos: a vida como grande labirinto
14 Bloquinhos
Mundo erigindo mundo
15 Naturalismo e idealismo
Performance: arte do corpo
16 Andamento
Auto-objetificação
17 A arte contemporânea é uma festa permanente
Resistir, persistir
18 Medo da janela
Inserções
19 Conto de uma pandemia sem fim
Vai passar?
Sobre a autora
Arte é o que faz a vida ser
mais interessante que a arte.
— Robert Filliou
Read me
Recebo frequentemente e-mails de um algoritmo que insiste em me recomendar filmes. Ele erra muito, mas percebeu que eu assisto a tudo o que ele me indica sobre o mercado de arte. Aceitei a dica de um longa de horror em que um artista morto volta do túmulo para vingar-se de galeristas e curadores, adorei uma história sobre um leiloeiro que manipulava o mercado a favor de sua própria coleção, fiquei um pouco entediada com o roteiro em que um galerista forja a morte do artista para aumentar o valor das pinturas, mas recobrei a fé no algoritmo vendo o filme sobre os dilemas morais de um curador sueco e outro sobre um escritor que homenageia, em um livro sobre perversão, a ex-esposa, que é dona de uma galeria de arte contemporânea.¹
Com reconstruções fidedignas de jantares de gala em museus e de vernissages em galerias, esses filmes optam por enfatizar o mercado de arte como parte do mercado de luxo, e sem dúvida seduzem o público que, no início da década de 2010, notou nas prateleiras de livrarias títulos sobre a vida dos artistas contemporâneos mais celebrados, sobre sete dias passados em feiras, escolas e bienais de arte, ou sobre um tubarão de doze milhões de dólares.² Os livros e filmes mais recentes sobre o mundo artístico enfatizam as cifras astronômicas, o sucesso reservado a poucos, e ironizam os discursos sobre arte como esnobes e sem sentido. Sumiram das livrarias e dos cinemas personagens e cenários que tratam a arte como investigação existencial, produção de pensamento, formação de subjetividades desviantes da norma.
Apresentar números sobre o mercado da arte é um ardil simples para captar a atenção do espectador ou leitor.³ É estratégia infalível, que, quando estou em total desespero pedagógico, utilizo como último recurso para animar os rostos apáticos de estudantes universitários, na esperança de que — após os cifrões acelerarem os batimentos cardíacos e dilatarem as pupilas — haja tônus muscular para a discussão poética e teórica que realmente importa: o que é viver com arte, não nas paredes, mas na forma de pensar. Dispensemos, então, o sensacionalismo dos milhões. Este não é um livro que ensina a comprar arte ou que discute a vida de artistas como excêntricos geniais que cravejam caveiras com diamantes (ainda que Damien Hirst seja um caso intrigante, pois induz as pessoas a comprarem pinturas de bolinhas coloridas graças à tal caveira).
Os cenários dos textos aqui apresentados passam longe dos jantares de gala do Metropolitan Museum de Nova York e das ruas de Veneza durante la Biennale. Geograficamente, não se afastam do eixo Rio-São Paulo, o que é limitante, mas é a parte que melhor conheço do sistema da arte contemporânea no Brasil. Por isso, os personagens das crônicas ficam à vontade no território meio hippie das livrarias que acionam a libido em cantinhos da zona oeste paulistana, nos ateliês com telhados furados em Santa Teresa, em salas de conferência de universidades. Nesses lugares, a gente topa com Orlando, da Virginia Woolf, e começa a pensar sobre o que é ser mulher; coloca o Ian McEwan sentado no sofá da sala, como muso
da narrativa; e deita no divã de Freud, para lidar com as inibições literárias.
Os ensaios teóricos deste livro andam aleatoriamente pelo labirinto da arte contemporânea, sem fio condutor. Teseu desenrolou o carretel de Ariadne para entrar no labirinto de Creta porque ele pretendia voltar. Nós queremos viver perdidos dentro do labirinto, seguir diferentes autores, ir e voltar, passar duas vezes pelo mesmo ponto sem perceber.
Temas como feminismo, feminino, loucura, contemporaneidade, subjetividade e finitude são apresentados por uma crônica e, na sequência, por um texto teórico, o que exige do leitor disposição para alternar entre uma narrativa leve sobre o cotidiano e uma reflexão com formato de crítica de arte. Claro, fique à vontade para ler como bem entender.
As crônicas são inéditas, e é importante fazer a ressalva de que os personagens, se possuem qualquer semelhança com pessoas reais, ou se até possuem os mesmos nomes de pessoas reais, ou é porque são mesmo reais — e confio que vão se divertir com os textos —, ou foi apropriação artística com a nobre finalidade de dar mais sabor às tramas. Os textos teóricos foram escritos ao longo dos últimos dez anos para catálogos de exposições, folhetos de galerias ou conferências acadêmicas. Alguns deles são resultado da pesquisa de pós-doutorado que desenvolvi no Instituto de Artes da Universidade de Campinas (Unicamp) entre 2010 e 2012, e nunca foram publicados.
Vários textos críticos de que gosto muito (por causa da obra, do artista, da abordagem teórica) não estão explicitamente apresentados neste volume, mas cada artista que conheci ou sobre o qual escrevi aparece nos espaços entre as palavras aqui escritas. Sem essas pessoas incríveis, que vivem para desafiar a racionalidade hegemônica, eu não teria passado horas que fazem a vida valer a pena. Este livro divide com os leitores o prazer de circular pelo universo da arte contemporânea.
São Paulo, janeiro de 2021
1 Refiro-me respectivamente aos filmes Velvet Buzzsaw (Dan Gilroy, 2019), O melhor lance (Giuseppe Tornatore, 2014), Minha obra prima (Gastón Duprat, 2019), The square: a arte da discórdia (Ruben Östlund, 2018) e Animais noturnos (Tom Ford, 2016).
2 Calvin Tomkins. As vidas dos artistas. São Paulo: Bei, 2009; Sarah Thornton. Sete dias no mundo da arte. São Paulo: Agir, 2010; e Don Thompson. O tubarão de 12 milhões de dólares: a curiosa economia da arte contemporânea. São Paulo: Bei, 2012.
3 Se o interesse do leitor for conhecer valores transacionados no mercado de arte, sugiro a leitura dos relatórios publicados anualmente pela The European Fine Art Fair (Tefaf) entre 2000 e 2017: uma tentativa de dimensionar um mercado bastante avesso à transparência financeira. A partir de 2018, os relatórios da Tefaf passaram a focar assuntos específicos relacionados ao mercado da arte, como tipos de financiamento disponíveis para aquisição de obras. Segundo o último relatório que tentou mapear o mercado global, o valor das transações de arte em 2016 foi de 45 bilhões de dólares, incluindo obras de arte contemporânea, moderna e antiga. Esses relatórios, bem como estudos que começaram recentemente a ser desenvolvidos pela feira Art Basel, são facilmente encontrados na internet.
1
Labirintos mentais
Nem sei mais a diferença entre a cidade e eu. As rotas são sempre as mesmas, como meus pensamentos obsessivos. Eu tenho a obsessão da Avenida Sumaré, fazendo aquela alcinha que dá no bairro do Pacaembu; a obsessão da Rua Diógenes Ribeiro de Lima, descendo até a rua que vira à esquerda para a Vila Madalena; a obsessão da Rua das Palmeiras para ir a qualquer lugar do centro.
Eu não tenho esses caminhos claros na minha cabeça. Então é errância: às vezes conflituosa (custa parar para raciocinar antes de dirigir?), às vezes estética (delícia ver o muro do cemitério aparecer magicamente a quilômetros de onde eu supunha que estivesse). Dou voltas à toa porque meu mapa mental é plano. Muita representação bidimensional e pouca vivência do espaço tridimensional atrapalham minha compreensão da cidade. Em dias de esplendor bioquímico, eu me divirto com isso, me perco valorizando a paisagem do caminho e não a distância ao ponto final da viagem, blá blá blá, revista Vida Simples na bibliografia do trajeto. Me irrito ao perceber o autoengodo da autoajuda. Sucumbo e ligo o aplicativo. Há um ano entrou essa voz na minha vida, o único homem que manda em mim. Ele me diz para virar à direita e à esquerda, e eu viro. Nietzsche surge na nota de rodapé do mapa: deus morreu, mas a voz do aplicativo está aí para me guiar. Na esquina, reconheço alguém. Por acaso são três e meia da tarde? Não tinha uma lenda de que os habitantes de Könisgsberg acertavam o relógio ao verem Kant sair para o passeio vespertino pontual? Então o que ele está fazendo sob o sol do meio-dia, ali na esquina da Wisard com a Natingui, apontando para minha própria minoridade nessa aceitação de um aplicativo-guia? Meu supereu assume tantos disfarces: calor insuportável, e ele ali, com uma casaca de alemão do século XVIII.
O meu eu mesmo faço
¹
O chão da galeria está coberto por grama, demarcando um quadrado verde. Na parede do fundo, há uma foto, pequena. É preciso atravessar o campo de grama para conseguir ver a fotografia. Para tanto, há a sugestão de um caminho, definido com pedras brancas por cima da grama. Tomando o caminho demarcado ou cruzando o campo na diagonal — menor distância entre o ponto de entrada e a fotografia —, o espectador chega à imagem. O que ele vê é um campo de grama sobre o qual foi aberto um caminho espontâneo, pelo pisar constante dos transeuntes. Quem chega à fotografia pelo caminho demarcado pelas pedras brancas sente-se obediente demais, em uma situação em que nada impediria a abertura de um caminho próprio. A obra é O meu eu mesmo faço, de Felipe Cama, instalada no Museu de Arte de Ribeirão Preto, em 2006.
A instituição de arte é um espaço repleto de regras: não toque, não fotografe, não corra. Um poder invisível — talvez a iluminação especial, talvez a aura sagrada do valor financeiro das obras — pressupõe que se fale baixo e que se siga as regras, mesmo as inexistentes. A obra de Felipe Cama imediatamente nos faz rir desse comportamento: se eu não discuto uma regra tão absurda quanto o não fotografe
em plena era da distribuição sem limites de imagens, se eu não ouso pisar na grama artificial dessa obra, dentro de uma instituição de arte — essa arte que há pelo menos cinquenta anos defende a resistência —,² como me comportarei do lado de fora do museu? Confiando que as regras tenham sido escritas por um poder supremo e que, portanto, devem ser sempre obedecidas? Obras como O meu eu mesmo faço justamente apontam no sentido oposto. E isso já sabem bem as camadas menos favorecidas pelas regras da nossa sociedade: gatos elétricos, picadas no morro, labirintos de vielas são os caminhos espontâneos de quem vive e sobrevive inventando os próprios recursos; marcam os fluxos naturais que a regra deveria simplesmente ratificar, seguindo a vontade coletiva.
Felipe Cama
O meu eu mesmo faço, 2006, instalação
Da mesma forma que o papel do artista, para Hélio Oiticica, é suscitar no participante, que é o ex-espectador, estados de invenção
, o arquiteto-urbano seria o suscitador, o tradutor e o catalisador dos desejos dos habitantes. Partiria da ideia de um laissez-faire organizado; partiria, por exemplo, do princípio de que a melhor maneira de se criar um caminho de pedestres em um gramado é vendo a trilha deixada na vegetação pelos próprios passantes.³
A ideia do caminho aberto espontaneamente na grama, da obra de Felipe Cama, nos conduz a uma aproximação entre a arte contemporânea e o espaço liso do pensamento nômade — do pensamento como máquina de guerra, na definição de Gilles Deleuze. Como as pedras brancas, que, na obra de Cama, definem um caminho previsível e o movimento ordenado — a distância entre as pedras define até a largura do passo —, o espaço estriado é uma grade que admite apenas movimentos pré-definidos. Já o espaço liso é o lugar dos fluxos, dos livres movimentos, da turbulência, do devir (não há nada pré-configurado nele)
.⁴
É interessante notar a coincidência geométrica de conceitos como o espaço estriado de Deleuze e a partilha do sensível de Jacques Rancière. Ambos pressupõem uma grade de fundo, um espaço de movimentação limitada e pré-definida, a ser transgredido. Ambos defendem uma ruptura das estrias, das linhas de delimitação, que restringem o movimento no mundo. Em Rancière, as linhas que definem uma partilha do sensível são traçadas com a régua da divisão do trabalho, do fazer que cabe a cada um e que estabelece competências para interferir no comum.⁵ Para Deleuze, as codificações que demarcam as linhas do espaço estriado (ou sedentário) advêm da lei, do contrato e das instituições.⁶ Rancière, assim, provê uma via de escape mais acessível ao indivíduo: seja lá o que digam as leis, contratos e instituições, é na mão de cada um, no fazer, que reside a possibilidade de escapar de um modelo pré-definido de divisão do sensível: ser um nômade que corta caminho pela grama, ignorando o caminho de pedras paisagisticamente bem instalado. A obra de arte pode ser uma máquina de guerra que incita a autoria de seus próprios caminhos, pois é preciso, primeiro, saber que existe a possibilidade de escapar da grade, rumo a um espaço liso.
Felipe Cama
After Cézanne – Mont Sainte-Victoire, 2011, impressão em metacrilato, 63 x 120 cm
Na série Paisagens Street View, Felipe Cama investiga o estriamento do espaço virtual ao usar duas ferramentas de mapeamento do planeta, o Google Maps e o Google Street View. O artista busca nesses mapas virtuais os pontos mencionados por pintores de paisagens ao longo da história da arte. Assim, vai encontrando o monte Sainte-Victoire de Cézanne, a vista de Delft de Vermeer, a vista da cidade de Toledo de El Greco, o Rio São Francisco de Frans Post. Mostra-nos, então, usando imagens do Google Street View, uma imagem recente desses lugares, desses pontos cartografados pela história da arte, mesclando o registro do passado com o registro do presente. A imagem resultante é cortada por uma grade de linhas finas, que formam pequenos quadrados, como pixels, por cima da fotografia