Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Psicologia e Educação na Primeira República
Psicologia e Educação na Primeira República
Psicologia e Educação na Primeira República
E-book394 páginas5 horas

Psicologia e Educação na Primeira República

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O livro Psicologia e educação na Primeira República convida o leitor a observar o modo como uma ciência ainda jovem pôde ser utilizada em uma nação em construção: o Brasil das primeiras décadas do século XX. Cientes dos desafios postos pelas dimensões continentais do território brasileiro e pela diversidade étnico-cultural do nosso povo, muitos intelectuais convergiam em um ponto: a necessidade de escolarizar a população.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de set. de 2020
ISBN9786558202370
Psicologia e Educação na Primeira República

Relacionado a Psicologia e Educação na Primeira República

Ebooks relacionados

Métodos e Materiais de Ensino para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Psicologia e Educação na Primeira República

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Psicologia e Educação na Primeira República - Lilian Rose Margotto

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE

    Para Mara Núbia de Sousa, por ser a minha felicidade do princípio ao fim, alimentando meus sonhos e fornecendo sentido ao cotidiano.

    Porventura é assunto vão ou tempo mal gasto, o que se gasta

    em vagar pelo mundo, não para buscar-lhe os regalos, mas

    as asperezas, por onde os bons sobem ao assento da imortalidade?

    (Miguel Cervantes, 1954).

    AGRADECIMENTOS

    A finalização de um trabalho que consumiu horas, dias, meses e meses de dedicação, traz, mais do que a sensação de ter cumprido o dever, uma enorme gratidão pelas pessoas que, direta ou indiretamente, auxiliaram-me nessa jornada. Não tenho a esperança de com esses agradecimentos pagar o que recebi. Apenas gostaria de registrar minha enorme gratidão.

    À Maria Cecília Cortez Christiano de Souza, pela presença fundamental e constante na minha trajetória acadêmica: mestra, amiga e colega de discussões sempre profícuas, sua contribuição foi essencial para a elaboração deste trabalho.

    À minha mãe, Selma Margotto, pelo incentivo constante, apoio e conselhos em muitos momentos cruciais da minha vida.

    À minha irmã, Samira Margotto, pela amizade e companhia antes, durante e após a elaboração deste trabalho.

    À Adonay Ariza Díaz, por sua companhia e companheirismo durante a elaboração deste livro e ao longo da minha vida, compartilhando momentos de lazer e discussões acadêmicas.

    À Elizabete Bassani, pela sua amizade: sua presença foi e é fundamental na minha trajetória pessoal e profissional.

    Ao Paulo Castelar Perim, pela sua generosidade e imensa amizade ao longo desses anos, que tornaram menos árida minha vida profissional.

    APRESENTAÇÃO

    Este livro situa-se no entrecruzamento de duas áreas: a História da Psicologia e a História da Educação. A gradual ascensão da Psicologia como um conhecimento fundamental para a formação dos professores e o interesse suscitado pelo uso das suas descobertas no ensino são faces da crença irrestrita no poder do conhecimento científico para sanar todos os males que afligiam o Brasil nas primeiras décadas do século XX. Foi nesse contexto que ocorreram reformas educacionais empreendidas pelos governantes após o advento da República – como a expansão da rede pública de escolas, a adoção do método intuitivo e o aparecimento dos grupos escolares. Assim, a importância crescente da Psicologia, o modo como essa ciência foi utilizada, os autores mais citados, os assuntos abordados e o modo como os conhecimentos oriundos dessa ciência foram utilizados para explicar os impasses que a escola enfrentava naquele momento são os principais temas desta obra.

    PREFÁCIO

    Os professores das primeiras séries do fundamental guardam, ainda hoje, uma herança que é sua marca distintiva: o dever de conhecer e respeitar na escola o desenvolvimento psicológico infantil. Trata-se de um preceito pedagógico formulado por Jean-Jacques Rousseau no século dezoito que foi transformado em pressuposto da Psicologia científica no século dezenove. Poucos sabem que esse princípio já era conhecido no Brasil do final do Império e que foi posto em prática durante a República. Essa tradição é um dos legados do período crítico para a educação paulista contido nos anos de 1890 a 1930. Em São Paulo daquela época, polemizava-se sobre qual método de ensino seria apropriado ao conhecimento científico da infância. Principalmente, desejava-se substituir o professor disciplinador por um profissional mais eficaz e humanizado; para isso, o conhecimento da Psicologia era indispensável.

    Não havia cursos de Psicologia no Brasil, que era conhecida por meio de livros (poucos tinham acesso aos originais em língua estrangeira). A Psicologia passou a ser ensinada e divulgada principalmente nas revistas dedicadas ao ensino, assim, procurá-la nos periódicos de Educação, como faz o presente livro, é a base indispensável para conhecer as origens da Psicologia praticada no Brasil, bem como a realidade que ela transformou. Além do mais, por conta da relação entre esse conhecimento e as iniciativas do Estado de reorganização e expansão da rede de ensino, o livro desvenda o alcance e os limites da concepção de democratização da escola então vigentes.

    A obra de Lilian Rose Margotto dirige às suas fontes primárias e secundárias questões nevrálgicas. A autora não se limita a examinar o modo pelo qual a Psicologia foi compreendida ou, como se dizia na época, aplicada nas escolas paulistas do final do XIX e o início do XX; ela analisa as circunstâncias envolvidas, a aceitação ou resistência dos educadores à entrada na escola desse novo saber, indica quais Psicologias foram divulgadas, qual a legislação em vigor no período e discute a relação dessa ciência com as políticas educacionais adotadas. Há uma diferença entre tratar a História da Psicologia em São Paulo como um item secundário da história geral da ciência, e compreender, como faz Lilian, que aqui houve uma apropriação, no sentido dado por Michel De Certeau. Isto é, os editores de periódicos educacionais selecionaram autores e excertos de livros que publicavam nas revistas, articulistas faziam sua própria leitura dessas obras, comentavam, citavam, omitiam e interpretavam segundo seus interesses e modo de entender. Procurava-se na nascente Psicologia uma nova fonte de autoridade.

    Como se verá, o debate político e educacional do período encontrava ressonância nessas revistas especializadas – inclusive na escolha de autores de referência. Alguns autores abraçavam concepções díspares, outros tinham posições diametralmente opostas. William James, por exemplo, propunha a Psicologia como ciência, mas achava que era pouco útil à educação; afirmava que a educação genuína era uma arte. Viajando pelo Brasil quando jovem, James havia feito amigos entre os ribeirinhos do Amazonas, cuja cultura admirava. Tinha aversão a propósitos colonialistas; considerava-os brutais, sobretudo quando acobertados por missões científicas. Numa posição oposta à de James, Gustave Le Bon qualificava os brasileiros como feios, doentes e inertes em consequência da mistura de raças. Defendia a existência de hierarquia entre as raças, avisava que dificilmente a educação poderia tornar negros e mestiços iguais a brancos. A partir de posições como as dele, iniciou-se nos periódicos uma discussão sobre caracteres hereditários e adquiridos de inteligência, habilidades, disposições, competências etc. Difundiu-se a hipótese de que o conhecimento escolar devia ser desigualmente distribuído, tanto em quantidade quanto em qualidade, uma vez que as disposições e capacidades dos grupos sociais e dos indivíduos eram diferentes. Essa perspectiva encontrava-se subentendida, algumas vezes, na defesa da Psicologia das diferenças individuais, cabendo aos testes psicológicos identificar indivíduos incapazes, economizando, assim, esforços educativos. Forjava-se a ilusão de que os testes psicológicos eram instrumentos eficientes e incontestáveis de avaliação e previsão. O impacto desse discurso em São Paulo daquele tempo foi considerável. Conforme Lilian demonstra, suas repercussões foram decisivas nas direções assumidas pela educação em São Paulo.

    Embora o tom prescritivo fosse algo comum aos primeiros psicólogos, a recepção de suas obras dependeu do contexto. Os educadores paulistas testemunhavam transformações radicais na sociedade da época. Concomitante ao desmantelamento do escravismo, depois das secas que marcaram o final do Império, um dos traços marcantes que caracterizou a República foi o deslocamento da população rural; imigrantes estrangeiros, retirantes, antigos escravos, tangidos pelas crises e premidos pela fome, graças ao desenvolvimento da malha ferroviária, foram chegando às cidades de São Paulo. Muitos imigrantes estrangeiros procuravam se estabelecer diretamente nas cidades, compondo o nascente operariado. Era essa a população, diversa e desigual ao extremo, que os republicanos paulistas propunham escolarizar.

    Além de autores de Psicologia, são muitas as vozes ouvidas e analisadas por Lilian nesse trabalho. Diretores e inspetores testemunham os efeitos de uma nova organização do ensino, os grupos escolares, criados em São Paulo em 1893. Muitos comemoram o propalado pioneirismo do estado, considerando essa organização do ensino a única capaz de escolarizar e civilizar crianças de origens diversas. A Psicologia é chamada, então, para resolver os efeitos perversos dessa nova ordem: a reprovação, a evasão e o fracasso escolar.

    Ao se erigir nos centros urbanos, a criação dos grupos escolares silenciou outras vozes que deixaram traços nas revistas estudadas por Lilian. Trata-se das professoras e professores das escolas isoladas, a grande maioria das escolas do estado, nas quais crianças de idades e níveis diferentes aprendiam numa mesma sala. Algumas dessas professoras, de forma direta e indireta, reclamam do salário e das condições de trabalho e ironizam agudamente a retórica científica das autoridades.

    Lilian R. Margotto também examina artigos de diretores, inspetores e professores das escolas normais; muitos artigos foram transcrições de discursos proferidos em cerimônias de formatura. As escolas normais eram tidas como símbolos de espírito republicano, erguidas em edifícios suntuosos nas praças das principais cidades. Foi no período abrangido pela pesquisa que se chegou ao consenso de que o professor de primeiras letras deveria receber formação intelectual – isso foi decisivo na conquista feminina de uma profissão que requeria formação intelectual, ainda que parcamente remunerada.

    A Escola Normal da cidade de São Paulo converteu-se, graças à amplitude de seu currículo, num centro de formação cultural, não só de professores de primeiras letras, mas de moças e rapazes que buscavam o Normal para ocupar cargos de nível médio na administração pública e privada. Foram alunos dessa escola Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sergio Buarque de Holanda, Cecilia Meireles, Patrícia Galvão, entre outros. Seu currículo passou a contemplar, no decorrer desses anos, cada vez mais, disciplinas ligadas à Psicologia; nela foi criado o primeiro laboratório de Psicologia.

    Muitas coisas se passaram desde que a primeira versão deste texto foi escrita, no entanto, seu valor e originalidade permanecem. Para escrever este livro, cuja versão inicial foi sua tese de doutorado, Lilian abriu e examinou caixas e caixas de documentos do Arquivo do Estado de São Paulo, coletando documentos que faziam referência, mesmo indireta, à Psicologia e ao ensino de primeiras letras. Foi atrás da documentação guardada em arquivos mortos, revirou bibliotecas para reunir números faltantes das revistas, achou livros em sebos, rastreou as citações de autores que remetiam a outras obras, encontrou, examinou e analisou tanto tratados clássicos quanto obras de autores esquecidos.

    Lilian Rose Margotto é professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo e continua a fazer o que mais gosta, além de dar aulas: investigar a História da Psicologia e suas reverberações nas escolas brasileiras. Reler as páginas que se seguem, passados alguns anos, levou-me a perceber ainda mais a importância deste estudo. Psicólogos e educadores têm muito a aprender com ele, não só porque abre novas perspectivas para o estudo da história da Psicologia no Brasil, como também ilumina problemas educacionais na sua origem, dando esperanças de que assim como tiveram início, serão um dia solucionados.

    Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza

    Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)

    Dezembro de 2017

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    UMA QUESTÃO DE BERÇO: O CONTEXTO DA APROPRIAÇÃO DA PSICOLOGIA NA TEORIA EDUCACIONAL

    O QUE UM PROFESSOR PODE FAZER COM A PSICOLOGIA?

    A PSICOLOGIA, AS INCLINAÇÕES MORAIS E AS APTIDÕES INTELECTUAIS

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    RELAÇÃO DOS DOCUMENTOS CONSULTADOS

    REFERÊNCIAS 

    INTRODUÇÃO

    Como as descobertas e teorias científicas, criadas em laboratórios, universos quase que à parte do mundo cotidiano, são disseminadas e se tornam parte da vida da população? É de conhecimento comum que muitas vezes essa passagem ocorre pelo emprego de um determinado conhecimento na confecção de objetos ou de substâncias úteis para a vida das pessoas. Entretanto nem todas as ciências podem ser transmutadas dessa maneira, o que faz com que sua difusão e uso percorram caminhos mais tortuosos até serem dotadas de uma aplicabilidade prática de forma mais ampla. A Psicologia, ciência cuja data de nascimento é situada em 1879 pelos historiadores, é um bom exemplo dessa proliferação insidiosa de um conhecimento técnico, que foi concebido como eminentemente teórico por alguns dos seus pensadores mais ilustres dos primórdios.¹ Este livro propõe-se a deslindar algumas incursões da Psicologia para fora das paredes dos laboratórios e das produções científicas, analisando o modo como essa ciência foi oferecida e disponibilizada para um público mais amplo, com vistas a se tornar útil. Especificamente, será demonstrado o modo como a Psicologia foi sendo considerada um conhecimento indispensável na formação dos professores, a partir da crença de que proveria a prática pedagógica de um substrato científico, o que redundaria em uma maior eficácia.

    As tentativas de construir um discurso científico sobre a educação, que se iniciaram a partir do século XIX, trouxeram em seu bojo uma clivagem que, de certa forma, persiste até hoje: aquela existente entre a teoria e a prática. A construção dessa distinção entre teoria e prática é analisada por Michel de Certeau, ao demostrar o modo como ocorreu, a partir do século XVI a edificação da ideia de método, denominado por ele de [...] semente da cientificidade moderna que alterou as relações entre o conhecer e o fazer. Tratou-se de elaborar um discurso que organizaria as diferentes maneiras de fazer, a partir da maneira de pensar. As clivagens que se estabeleceram, a partir dessa sistematização progressiva, resultaram na oposição entre [...] as práticas articuladas pelo discurso às que (ainda) não o são.²

    A relação da Psicologia com a teoria educacional, nas primeiras décadas do século XX, pode ser pensada como parte de um conjunto de articulações que se referem a essas tentativas de erigir um discurso que permitisse a expressão dessas práticas de acordo com os parâmetros cientificistas, de organizar uma forma apropriada, um conjunto de procedimentos. As tentativas de adoção de um método experimental na teoria educacional, termos como pedagogia experimental, pedologia, e outros que caíram em desuso, sucedendo-se na literatura de educação durante as primeiras décadas do século XX, ilustram as tentativas de mapeamento desse saber-fazer que é a prática pedagógica e exemplificam alguns dos encaminhamentos que foram adotados. Tratava-se de tentar erigir uma teoria educacional que falasse dos impasses da prática de acordo com a linguagem da ciência, que desse conta de exprimir esse saber-fazer cientificamente.

    Mais do que isso, procurava-se construir uma maneira de lidar com fenômenos decorrentes da escolarização que pudesse ser descrita e explicada de acordo com as regras e a linguagem da ciência. A Psicologia científica, que nessa época ensaiava seus primeiros passos, foi vista como um dos conhecimentos que poderia ajudar a solucionar parte das incertezas decorrentes das tentativas de se aplicar os métodos tão estritos da ciência ao conjunto de conhecimentos que faziam parte da teoria educacional. Em comum, a teoria educacional e a Psicologia tinham o objeto de conhecimento da última e de intervenção da primeira, o ser humano.

    Entretanto ainda havia um longo caminho a ser percorrido para que a Psicologia pudesse ser aceita pelos educadores e forjasse princípios e conhecimentos que pudessem ser utilizados para a construção de uma teoria educacional. Distância maior ainda separava a possibilidade de se obter de uma ciência tão incipiente como a Psicologia, soluções para os problemas da prática pedagógica. É possível que a crença enorme no poder da ciência como fonte de soluções para os mais diversos problemas humanos e como produtora de verdade e de tecnologia, como apontam historiadores que se debruçaram sobre o período,³ tenha ajudado nessa empreitada.

    A História da Psicologia da educação, inscreve-se, então, nessas elaborações sucessivas que a teoria educacional sofreu no sentido de vesti-la com as roupagens da ciência, tão em voga na época.⁴ Existem várias abordagens distintas que permitem acompanhar o caminho percorrido pela Psicologia e pela teoria educacional nesse processo de elaboração de um conjunto de conhecimentos, mais tarde designado como uma, senão a principal, das ciências da educação. Aqui, optou-se por abordá-lo a partir de uma apropriação determinada, ocorrida em um contexto específico, o de São Paulo, entre as décadas de 1890 a 1930, tomando como indicador básico dessa apropriação as revistas educacionais. O propósito deste estudo é, portanto, analisar a apropriação dos conhecimentos oriundos da Psicologia pelos autores que escreviam nos periódicos paulistas de educação durante a Primeira República.

    Em primeiro lugar, é necessário definir o que se entende por apropriação, conceito utilizado aqui, a partir da orientação teórica da história cultural. Partindo desse ponto de vista, a apropriação, para Roger Chartier, [...] tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem⁵. Roger Chartier aponta também as implicações decorrentes para a produção do conhecimento na história, quando se segue a abordagem proposta pela história cultural. Pois

    [...] é preciso pensá-la (a história cultural) como a análise do trabalho de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceptuais próprias de um tempo ou de um espaço.

    Seguindo essas orientações, pode-se ir além e entender a análise das apropriações de conhecimentos oriundos da Psicologia pelos autores dos periódicos de educação paulista como um segmento particular da história das leituras, a partir das elaborações e das formulações efetuadas por esses autores que escreviam nas revistas. Desse modo, deve-se considerar tal produção como tendo um sentido específico, uma elaboração própria, determinada pelo contexto das práticas sociais, culturais e institucionais dos autores desses artigos. Implicações essas que permitem olhar para esses textos analisados como uma contribuição original, produzida por sujeitos específicos, em um determinado momento histórico. Como se sabe, a leitura para a história cultural não é uma atividade de produção de sentidos unívocos, nem a apreensão de conteúdos semelhantes por todos os leitores. Pelo contrário, o ato de ler implica em uma elaboração que não é dada pelo texto em si, mas pelo leitor (ou leitores) que se debruça(m) sobre ele. As peculiaridades da produção de sentidos que o ato de ler implica são apontadas por Jean Marie Goulemont. De acordo com esse autor,

    [...] ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequências. Não é encontrar o sentido desejado pelo autor, o que implicaria que o prazer do texto se originasse na coincidência entre o sentido desejado e o sentido percebido, em algum tipo de acordo cultural, como algumas vezes se pretendeu, em uma ótica na qual, o positivismo e o elitismo não escaparão a ninguém. Ler é portanto, constituir e não reconstituir um sentido.

    Assim, interessa aqui situar as elaborações, os sentidos e os empregos que os autores dos artigos formularam a partir das obras de referência que eles utilizaram. O emprego e o uso das categorias explicativas da Psicologia para o entendimento dos problemas educacionais foram acompanhados nos artigos, bem como cotejados com as obras de referência, com o intuito de situar a elaboração que foi feita dos conhecimentos psicológicos. Tal procedimento, está-se consciente, não esgota todas as possibilidades, as implicações e dificuldades envolvidas na detecção do que seria, no caso, essa particular atividade de recepção, bem como o uso que esses articulistas fizeram da nascente Psicologia. Em outros termos, em que essas leituras podem ser vistas como diferentes de outras leituras. E, em termos mais amplos, as implicações múltiplas dos lugares de onde falavam, de sua posição de poder, das posições relativas ao campo educacional que se constituía, suas disputas, relações de força, práticas específicas e formas particulares de instrumentalizar essas ideias. No entanto o mapeamento que foi feito das fontes e de suas referências pode contribuir para que questões, como essas levantadas acima, sejam esclarecidas, podendo auxiliar pesquisas presentes e ser objeto de estudos futuros.

    As fontes utilizadas foram revistas de educação paulistas publicadas entre 1895 e 1930:⁸ A Eschola Publica ensaio de pedagogia pratica (1895);⁹ Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo (1902-1918);¹⁰ Revista da Escola Normal de São Carlos (1918 e 1920);¹¹ Revista da Sociedade de Educação (1923);¹² O Estímulo (1916, 1917, 1918, 1920);¹³ Educação (1928-1930).¹⁴

    Dado que o propósito do trabalho foi analisar o modo que os autores dos artigos se apropriaram do referencial da Psicologia, a seleção dos artigos foi feita obedecendo aos seguintes critérios: em primeiro lugar, os artigos que tratavam de educação de uma maneira mais geral (apontando seus problemas, propondo soluções para o ensino, analisando a situação do ensino em São Paulo); em segundo lugar, aqueles que tratavam de assuntos relacionados com o objeto da Psicologia (como, por exemplo, atenção, disciplina e órgãos dos sentidos); em terceiro, aqueles que apresentavam métodos de ensino de uma forma mais teórica (por exemplo, justificando a maior eficácia da aprendizagem em função de determinados procedimentos); por último, artigos que tratavam diretamente da Psicologia e das suas aplicações (como por exemplo, indicando isso no próprio título, ou que tinham referências explícitas a temas de Psicologia, como testes psicológicos).

    Uma vez selecionados os artigos, foi feita uma classificação dos autores de referência mais citados nesses artigos, contando em cada um dos artigos o número de vezes que seus nomes apareciam. A partir do mapeamento desses autores mais citados, foram buscadas suas obras. É preciso mencionar uma das dificuldades que se interpôs nesse trabalho de localizar as obras de referência. Pois era um costume da época, aliás em si mesmo significativo, que persistiu até a segunda década do século XX, escrever sem menção às fontes da forma como atualmente é usual. Assim, muitas vezes os autores dos artigos mencionavam um determinado autor estrangeiro sem colocarem a obra da qual haviam retirado tal citação, em outras, mencionavam algumas proposições e as atribuíam a um grande pedagogo francês, por exemplo, sem fazer referência sequer ao nome. Outros, ainda, citavam ideias e princípios claramente oriundos da obra de algum desses autores estrangeiros utilizados como referência, sem fazer qualquer menção à origem. Entretanto, não sendo o universo dos autores de referência muito grande, observou-se uma circularidade na apresentação de determinadas ideias em momentos específicos, sendo possível o cotejamento com as obras estrangeiras até mesmo quando seus autores ou as suas obras não haviam sido explicitamente mencionados.

    A importância das revistas educacionais como fonte para a pesquisa em história da educação tem sido apontada por historiadores da área. Nesse sentido, Pierre Caspard sublinha que a contribuição de tais fontes advém da possibilidade de conhecer as informações que eram dirigidas aos professores [...] sobre o conteúdo e o espírito dos programas oficiais, a conduta da classe e a didática das disciplinas.¹⁵ Mais do que isso, o fato da imprensa de educação muitas vezes ter sido dirigida por associações da categoria docente e publicar artigos escritos por professores, ela possibilitaria o acompanhamento da recepção por parte dos educadores de determinadas medidas oficiais. Pierre Caspard considera, então, que a imprensa educativa, [...] representa o espaço onde se desdobram e o ponto onde se focalizam todo o conjunto de teorias e práticas educativas de origem tanto oficial quanto privada.¹⁶

    Há ainda um outro aspecto que serve para justificar a importância da imprensa de educação como fonte: trata-se da simultaneidade existente entre os assuntos apresentados nos artigos e os acontecimentos. António Nóvoa é quem aponta essa contribuição dos periódicos de educação, por considerar que uma das suas contribuições mais significativas advém da proximidade entre a análise de determinados fatos, que é feita nos artigos, e o evento real. De acordo com ele, é

    [...] a natureza da informação fornecida pela imprensa, que lhe concede um caráter único e insubstituível. Estamos, na maior parte das vezes, perante reflexões muito próximas do acontecimento, o que permite construir uma ligação entre as orientações emanadas do Estado e as práticas efetivas da sala de aula.¹⁷

    Assim, além dessa proximidade entre os acontecimentos e sua discussão nos artigos dos periódicos de educação, que possibilita um acompanhamento das questões que eram consideradas mais importantes pelos autores dos artigos, deve-se levar em conta um outro aspecto relativo ao conteúdo dos textos analisados. Denice Bárbara Catani e Cynthia Pereira de Sousa apontam outras questões a respeito do conteúdo dos artigos das revistas de educação, que se referem à possibilidade de se analisar determinados periódicos como

    [...] núcleos informativos, enquanto suas características explicitam modos de construir e divulgar o discurso legítimo sobre as questões de ensino e o conjunto de prescrições ou recomendações sobre formas ideais de realizar o trabalho docente.¹⁸

    Nesse sentido, vale lembrar a análise de Michel de Certeau sobre o estabelecimento de relações privilegiadas na leitura que, de certo modo, reitera um dos pressupostos desse trabalho: os autores que escreviam nos periódicos atuavam como leitores privilegiados da teoria educacional, apresentando e criando relações entre um corpo teórico estrangeiro das obras de referência e os impasses da escola, perante os leitores dos artigos. De acordo com Michel de Certeau,

    [...] a utilização do livro por pessoas privilegiadas o estabelece como um segredo do qual somente elas são os verdadeiros intérpretes. Levanta entre o texto e seus leitores, uma fronteira que para ultrapassar somente eles entregam os passaportes, transformando sua leitura (legítima, ela também) em uma literalidade ortodoxa que reduz as outras leituras (também legítimas) a ser apenas heréticas (não conformes o sentido do texto) ou destituídas de sentido (entregues ao ouvido).¹⁹

    Assim considera-se a existência de um duplo nó:

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1