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Sacrifício e outros contos
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Sacrifício e outros contos
E-book135 páginas1 hora

Sacrifício e outros contos

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Sobre este e-book

Um homem capaz de encontrar dinheiro no chão, a atriz que encanta o público apenas com uma leitura silenciosa, o poeta que desperta a paixão na mulher amada com as palavras. Talentos que poderiam ser verdadeiras dádivas tornam-se um peso para os personagens de 'Sacrifício e outros contos', do contista brasileiro premiado Francisco de Morais Mendes. Seus personagens, sempre presos em conflitos, dúvidas e contradições, vivem encontros inesperados. Em dez histórias, com um toque fantástico e desfechos imprevisíveis, Francisco de Morais Mendes traz ao leitor surpresa e arrebatamento com um estilo único de narrar.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2019
ISBN9789898938282
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    Sacrifício e outros contos - Francisco de Morais Mendes

    fim

    Sacrifício

    1

    Já não se abaixa como antes, o tempo recolheu a destreza. Os joelhos estão sacrificados, os tornozelos, desgastados. Dores no quadril tornam seus movimentos limitados. Mas ainda assim, ainda hoje, este homem de sobrenome Marcial, com 78 anos, barba e cabelos brancos e fartos, mantém um hábito. Hábito? Sempre se embaraçou ao tentar nomear tal gesto: achar dinheiro na rua.

    Não se lembra de quando a criança, sorrindo, mostrou para a mãe uma moeda encontrada entre as pedras do calçamento. Nunca esqueceu a resposta, nem o brilho dos olhos da mãe, embora lhe escape o tom da voz:

    – Sorte a sua, meu filho!

    Tem sido essa a sorte de Marcial – e o motivo de ele jamais ter tido ocupações ditas normais. Nunca foi bancário, feirante, escriturário, servidor público, balconista, mecânico, comerciário, professor ou técnico em qualquer coisa.

    E quando teve – e manteve, por grande parte da vida – um negócio, era apenas uma forma de dissimular a natureza de suas posses e de lidar com o Fisco e a Administração pública.

    2

    O destino daquelas primeiras moedas foi um cofre de brinquedo. Marcial lembra-se de um cofrinho verde, no formato do prédio de um banco, então um dos edifícios mais altos da cidade. Depois, vieram outros, no formato de foguete, porquinho, casinha, apenas sombras na memória, sem a solidez do cofrinho verde.

    De admiradora da sorte do filho, a mãe passou a repreendê-lo quando ele comemorava o encontro de uma moeda. Incutiu no menino a desconfiança sobre a facilidade de achar dinheiro. Se, até então, ele partilhava com os pais e os irmãos a alegria de achar moedas e notas, repartindo também chocolates e balas, logo descobriu sua habilidade como algo muito malvisto.

    Além de repreendê-lo, a mãe levantou uma suspeita: não estava subtraindo dinheiro de alguém? Ele começava a aprender as operações da aritmética na escola. A mãe, percebeu logo, tinha razão. O dinheiro não nasce como as plantas, ele já sabia. Se encontrava uma moeda, alguém a havia perdido. As notas e moedas do seu cofrinho eram dos outros, não dele.

    Com esta constatação, o pequeno Marcial deu por encerrada uma etapa de sua vida: comentar com os pais, os irmãos e conhecidos sobre o dinheiro encontrado. Nascia ali uma pessoa silenciosa, ensimesmada. Seu refúgio eram as revistas em quadrinhos. Boa parte do dinheiro era gasto com elas.

    3

    Os cofrinhos há muito transbordaram, como a infância transbordava. Aos dez anos, o menino improvisava esconderijos dentro de casa e no quintal.

    Certo dia alguém – o irmão, a irmã? – encontrou um maço de notas atrás do guarda-roupa. Tal encontro rendeu a Marcial uma surra tão memorável quanto injusta. Daí em diante adotou procedimentos adequados para o dinheiro desaparecer do alcance das pessoas.

    As notas eram acondicionadas em sacolas plásticas. As moedas, em velhas latas de cera. Enterrava tudo num lote vago próximo de sua casa, onde costumava brincar com os amigos. Abandonaram as brincadeiras quando o terreno foi transformado em depósito de lixo.

    Usava a área como esconderijo do dinheiro. Mas sabia que não devia deixar num só lugar sua pequena fortuna; tratou de distribuí-la em outros locais. Assinalava-os nas últimas páginas de um dos cadernos de escola, em códigos numéricos. Se vistos por outras pessoas, pareceriam inofensivas operações aritméticas. Também desenhava mapas, como inocentes exercícios de geografia.

    4

    Numa tarde de calor intenso, Marcial andava pela cidade, recolhendo envergonhado uma moeda aqui, uma nota ali. A vergonha vinha das reprimendas da mãe, mas era inevitável: se a atividade não era bem vista, notas e moedas o eram; via-as de longe. Se invisíveis para os outros, também ele, quando se abaixava para apanhá-las, tornava-se invisível – essa a sua impressão. Nunca aconteceu de ser molestado por alguém, nunca foram lhe perguntar o que ele havia encontrado.

    Mas não era invisível para si mesmo e se viu refletido na vidraça da biblioteca pública. Por algum efeito da luz, sua imagem ali se tornava maior que a do garoto refletido no espelho. Tinha treze anos. Estava cansado, fazia um calor incômodo, e imaginou encontrar lá dentro um ar mais fresco. Pela segunda vez entrava naquele prédio; a primeira havia sido numa excursão da escola.

    Folheou ao acaso os livros sobre a mesa, leu alguns trechos e logo bocejou. Aproximou-se dele uma moça e perguntou se procurava algum livro em especial. Envergonhado, intimidado, ele resmungou um não, e emendou com não sei.

    Ela pediu para ele segui-la e, enquanto o conduzia pelo corredor, explicou-lhe, os livros dali podiam ser chatos para ele, pois estava na área para adultos. Levou-o às estantes de literatura para jovens.

    – Escolha um e comece a ler. Se não gostar, deixe-o sobre esta mesa e pegue outro. Fique à vontade.

    Esperou a moça afastar-se para se sentir mesmo à vontade e começar a folhear os livros. Tentou um, depois outro e mais outro. O terceiro começou a ler interessado – chamava-se A ilha do tesouro. O menino ensimesmado, silencioso, descobria um novo refúgio para a estranheza do mundo: o texto corrido, sem ilustrações.

    Começou a retirar livros por empréstimo na biblioteca. Sentia-se dono de tudo aquilo, como se o lugar fosse uma parte de sua casa.

    5

    Um dia foi ao lote para guardar mais uma sacola e tomou um susto. Tratores haviam aplainado o terreno. A terra e o lixo foram jogados em caminhões. Estavam cercando o lote.

    Conversou com um tratorista e com o motorista de um caminhão. Falaram de assuntos variados, mencionou dinheiro, tesouros enterrados, e nada. Nenhum deles dava o menor sinal de ter encontrado algo de valor naquele terreno. Perguntou para onde levavam a terra. O motorista falou do local, muito longe, uma área de brejo que estava sendo aterrada na periferia da cidade.

    Foi até lá com uma mochila, percorreu o local e logo – era mesmo seu destino – recuperou parte do seu tesouro. Nem procurou por todas as sacolas, pois rapidamente teria em mãos o dinheiro ali perdido.

    6

    Nas caminhadas pela cidade, Marcial conhecia algumas livrarias, mas a timidez o impedia de entrar. Sentia algo como vergonha, limitava-se a olhar as vitrines. Com os sebos era diferente, algo neles o atraía. Particularmente gostava de um situado na região do mercado central, onde, quando entrou pela primeira vez, foi acolhido pelo dono, o senhor José Rubem.

    Depois de tornar-se um frequentador do sebo, conseguia localizar os livros quase tão rapidamente quanto José Rubem. E passou a orientar os clientes. Tornaram-se amigos, ele e José Rubem.

    Logo que se conheceram melhor, José Rubem sentenciou:

    – Você é um homem de sorte.

    Assustou-se, sem entender como o outro sabia disso.

    – Homem de sorte é o homem que lê – completou o amigo.

    Um dia, José Rubem disse a Marcial:

    – Se tivesse como pagar a você, gostaria de contratá-lo.

    Marcial entrava nos dezassete anos. Breve terminaria o curso secundário e, como acontecera com os irmãos mais velhos, seria incentivado pelos pais a procurar um emprego.

    Àquela altura o rapaz já sabia: não precisaria de um emprego. Tornava-se um rapaz rico, e sua única obrigação ou tarefa era andar pelas ruas.

    7

    Num dado momento, o adolescente com o rosto cheio de espinhas e o cérebro cheio de dúvida rebelou-se contra a sorte, ou melhor, o destino. Resolveu

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