Insólito Benjamin
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Sobre este e-book
Mas, contra qualquer tendência que possa levar ao fatalismo e à resignação, percebemos que a história não é uma linha ascendente dos vencedores que avança inexoravelmente. "Escovada a contrapelo", revela o quanto é tecida de imprevisibilidade e fecundada pelas lutas incansáveis dos oprimidos, que a tornam campo aberto de energias libertárias, de inovação teórica e organizações políticas que recusam acomodação e continuísmo.
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Insólito Benjamin - Eduardo Rebuá
INSÓLITO BENJAMIN
EDUARDO REBUÁ
Rio de Janeiro
2019
SUMÁRIO
PREFÁCIO
O Insólito Benjamin diante do monte de ruínas que cresce à nossa frente
Martha D’Angelo
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
Lembrar Benjamin
MIRANTES DIALÉTICOS:
ESTADO DE EXCEÇÃO, FANTASMAGORIA E CULTURA CAPITALISTA
ENSAIO BENJAMINIANO:
A EXPERIÊNCIA COMO CONSTRUÇÃO
DE SENTIDOS
EXCEÇÕES E VEREDAS:
AS OCUPAÇÕES COMO ACONTECIMENTO E EXPERIÊNCIA NO BRASIL DO NOSSO TEMPO
A FASCISTIZAÇÃO À BRASILEIRA ENTRE CONFORMISMOS E EXPERIÊNCIAS:
GRAMSCI E BENJAMIN COMO PRISMAS
SUSTO NA CONTRARRUA
POSFÁCIO
Ronaldo Rosas Reis
BIBLIOGRAFIA
SOBRE O AUTOR
Para Leandro Konder,
primeira passagem até Benjamin.
PREFÁCIO
O Insólito Benjamin diante do monte de ruínas que cresce à nossa frente
Martha D’Angelo
A sensibilidade e atualidade dos textos de Eduardo Rebuá neste livro me trouxeram à lembrança uma das treze técnicas sugeridas aos escritores por Walter Benjamin¹: Não deixe nenhum pensamento passar incógnito e mantenha seu caderno de notas tão rigorosamente quanto a autoridade constituída mantém o registro de estrangeiros.
Em tempos de redobrada fiscalização aos imigrantes, essa recomendação adquire um tom mais grave e contundente.
Em Mirantes dialéticos: estado de exceção, fantasmagoria e cultura capitalista
, o leitor é surpreendido com uma articulação de conceitos, operada com a finalidade de dar nome à forma de democracia que se instalou entre nós. Nesse trabalho conceitual, o entendimento de estado de exceção como medida ilegal, mas perfeitamente jurídica e constitucional, se conjuga como o nosso ethos capitalista impactando toda a cultura. Emerge daí a expressão democracia fantasmagórica, construída através de uma aproximação entre o conceito marxista de fetichismo da mercadoria e o conceito de reificação de Lukács, que fundamentam a noção benjaminiana de fantasmagoria.
Em seguida, no Ensaio benjaminiano: a experiência como construção de sentidos
, o autor analisa o conceito de experiência (Erfahrung), considerando sua potência significativa e construtiva, a partir dos textos Experiência e pobreza
e O Narrador
, escritos por Benjamin em 1933 e 1936, respectivamente. Nesse texto, Rebuá também considera o trabalho e a função da memória, observando suas implicações filosóficas e históricas. Atento aos movimentos sociais ocorridos na sociedade brasileira desde as Jornadas de Junho de 2013, o autor discute, em "Exceções e veredas: as ocupações como acontecimento e experiência no Brasil de nosso tempo", o significado político das ocupações nas escolas e universidades, vendo-as como tentativas de dissolução da democracia fantasmagórica que ganhou forma e se desenvolveu na dita Nova República.
Uma das inquietações que perpassa as ousadas reflexões do livro manifesta-se com grande intensidade no texto final. Trata-se da compreensão do caráter histórico do fascismo, sua temporalidade e seus dispositivos. Rebuá especula de forma corajosa sobre as razões da obliteração desse fenômeno na sociedade brasileira, e a necessidade de bases explicativas para os processos de fascistização que vêm se acentuando nos últimos anos em todo o mundo e, principalmente, no Brasil. Demonstrações de ódio aos imigrantes na Europa, de racismo nos Estados Unidos, como aconteceu em Charlottesville, e o louvor à tortura e à ditadura no Brasil, feito em rede nacional de televisão pelo atual presidente da República, em 2016, antes portanto de sua eleição, são sintomas de grave patologia social.
A reflexão sobre essa forma de adoecimento e sobre as condições históricas que permitiram a sobrevivência do fascismo após a Segunda Guerra Mundial, nos remetem às revelações de Noam Chomsky² sobre o recrutamento feito pelo Departamento de Estado Norte Americano de criminosos de guerra – como Walter Rauff, o criador das câmaras de gás, Reinhard Gehlen, o chefe do serviço de inteligência militar da Alemanha, e Klaus Barbie, o carniceiro de Lyon – colocados a seu serviço com o objetivo de destruir qualquer resistência antifascista no mundo e planejar golpes militares na América do Sul. O restabelecimento da ordem fascista na Itália pelos ingleses no pós-guerra, e a proteção dada aos criminosos fazem parte da geopolítica anglo-americana de restauração da ordem tradicional em todo o mundo³ neste período.
O alerta de Insólito Benjamin para o risco de supressão das liberdades políticas no atual momento é importante, pois ele se torna maior quando as instituições estão fragilizadas, como agora, e os parlamentos não são capazes de conciliar as contradições de classe. Exatamente nessa hora o fascismo cresce e assume sua função histórica, que é destruir, usando a violência física extrema se necessário, qualquer ameaça ao regime burguês. A luta contra o fascismo é uma luta política que pode chegar a uma luta física, confirmando a famosa afirmação de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Vivemos um momento de perigo com o crescimento da opressão e do ódio. Quando esse crescimento ultrapassa um certo limite, estamos próximos da situação descrita por Primo Levi⁴: a capacidade de odiar, que ficou insatisfeita em relação aos opressores, cairá, injustificadamente, sobre os oprimidos: e sentir-se-á satisfeita ao descarregar sobre os seus subalternos a ofensa que recebeu dos que estão acima dele
.
O diálogo de Rebuá com Benjamin e a tentativa de leitura do mundo apresentada no livro convidam a pensar e fazer justiça ao passado. Que sejamos estimulados por suas provocações nesta hora crucial em que a traição da memória pode levar, talvez, a uma exposição fatal ao perigo.
Niterói, outono de 2019.
Martha D’Angelo é Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora de Filosofia da Faculdade de Educação da UFF. Publicou Arte, política e educação em Walter Benjamin (Loyola, 2006), Walter Benjamin: arte e experiência (NAU Editora, 2009) e Educação estética e crítica de arte em Mário Pedrosa (NAU Editora, 2011). Organizou as coletâneas Filosofia da História (EdUFF, 2014), com o Prof. Giovanni Semeraro, e Interlocuções: estética, produção e crítica de arte (Apicuri, 2012), com o Prof. Luciano Vinhosa.
1 BENJAMIN, W. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995 (Obras escolhidas 2), p. 31.
2 Chomsky, N. Segredos, mentiras e democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
3 Chomsky discutiu profundamente essa questão no livro What Uncle Sam Really Wants.
4 LEVI, P. Se isto é um homem. Alfragide-Portugal : Editora Teorema, 10ª Edição, s.d., p. 97.
APRESENTAÇÃO
Não acredito em horóscopo, mas respeito o mistério. Dizem que os cancerianos gostam do drama – a sensibilidade extrema – e do romantismo, não necessariamente nesta ordem. Como filho deste signo, confesso tal miséria. Benjamin, canceriano de quinze de julho, encarnou como poucos o drama como algo sério. Não apenas sua obra mais elaborada, segundo Adorno, teria o drama no centro, mas a própria biografia, onde o adjetivo dramático era, concomitantemente, espírito e tempo de uma época.
Como aluno de História na primeira década dos anos 2000 tive muito pouco contato com a obra benjaminiana, enquadrada por alguns cânones do marxismo como pós-moderna: sintoma de nossos limites e de nossas conversas adiadas ou mal resolvidas. Foi nas veredas mais solitárias do doutorado que pude conhecer o filósofo da melancolia, quando da necessidade de encontrar categorias de análise que de alguma maneira matizassem dialeticamente o movimento de elaboração da novidade e o de fenecimento da velharia, no esforço de interpretação das ações populares protagonizadas por universidades de movimentos sociais.
A experiência em Benjamin significou para mim algo como a alegria de uma criança em encontrar moedas no bolso do casaco velho. Houve a sensação da descoberta misturada com um sabor de coisa já conhecida. Como não se apaixonar pela potência crítica de um catador de restos que se fez pesquisador, sendo preterido pelo Taj Mahal da pesquisa, a academia? De que maneira tentar compreender através de outros olhos-mágicos, ou seja, sem nosso narrador berlinense, o nexo narrativa-memória-experiência no trato das questões contemporâneas? É possível antever a perda sem Benjamin após o encontro com ele?
Com a trinca elencada acima, coadunada à leitura da hegemonia em Antonio Gramsci, tentei reconstruir para mim o diapasão do materialismo histórico como o compreendia e penso que depois de Benjamin algumas constelações dialéticas passaram a me visitar com alguma regularidade, não como iluminação, mas como deslocamento. Os seis textos de Insólito Benjamin, contando a Introdução, são imagens de um kaiserpanorama particular que serviu de bússola – sobretudo para compreender o Brasil nestes últimos seis anos, de 2013 a 2019. Nunca antes como nesta duração fez tanto sentido o resgate do pessimismo atento, a espessura das derrotas e a fisionomia dos vencidos para mim nos processos pessoais e para o país onde nasci em seus dramas sócio-históricos.
O amor como afeto central caminhou comigo nessas trilhas imprevistas. Amigas e amigos, família, alunas e alunos, colegas de universidades, mestras e mestres chegam comigo até esta passagem, coleção de memórias. Clairí, companheira de vida, ideias e amor tornado concretude, é a principal suspeita no movimento de captura, não do copo mais cheio ou mais vazio, mas do copo.
Como um traço distintivo político, tenho predileção pelos intelectuais que enfrentaram o fascismo, este tempo que é também conformismo e experiência, capaz de educar para a catástrofe enquanto a engendra. Hoje, cabe urgentemente aos materialistas históricos revolucionários entenderem e impedirem a fascistização, permanência do fascismo na cultura, nas formas de sentir, no sofrimento, no humor, na ideia de governo.
É com o impedimento da experiência histórica e com as fantasmagorias da dominação burguesa que tenho me preocupado ultimamente. E Walter Benjamin, como nenhum outro autor do século XX, é estrela eleita para a diagnose do tempo-corrosão.
João Pessoa, outono de 2019.
INTRODUÇÃO
Lembrar Benjamin
Eu vim do avesso,
Reverso do que é aceito.
(Sinto Encanto, Paulinho Moska)
Originalmente publicado no Blog da Boitempo em julho de 2017, sob mesmo título. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/27/lembrar-benjamin/.
Walter Benjamin foi o marxista que da maneira mais sensível buscou auscultar o mundo da experiência sob o capitalismo, imergindo nele – em nossa perspectiva – sob três morfologias: a do flâneur, a do narrador e a do colecionador, que traduzimos como três prismas singulares de diagnose das catástrofes modernas, quais sejam a experiência, a rememoração e a permanência, esta última no sentido da preocupação com a coisa que se guarda para que não se perca.
Nenhum outro intelectual da dialética materialista impregnou na temporalidade um baixo-alto relevo capaz de indicar, num Jetztzeit ainda mais fragmentado que aquele dos anos 1920 e 1930, o que vai mal na cultura, o que estamos perdendo a conta-gotas e o que existe apenas sob fenótipos fantasmagóricos.
À tríade arquetípica apontada acima ousamos acoplar as esferas mais nítidas do pensar benjaminiano, discutidas por seus inúmeros intérpretes: o marxismo