Formação Omnilateral e a Dimensão Estética em Marx
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Formação Omnilateral e a Dimensão Estética em Marx - Sandra Soares Della Fonte
2019.
Sumário
INTRODUÇÃO 21
1
ESSÊNCIA OMNILATERAL E SER HUMANO TOTAL NOS MANUSCRITOS DE 1844 27
1.1 A RELAÇÃO ENTRE OMNILATERALIDADE E SER HUMANO TOTAL 29
1.2 OS DIÁLOGOS COM FEUERBACH E SCHILLER 36
2
A OMNILATERALIDADE EM ESCRITOS DE TRANSIÇÃO 45
2.1 A IDEOLOGIA ALEMÃ 46
2.2 A MISÉRIA DA FILOSOFIA 50
2.3 MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA 52
3
A OMNILATERALIDADE EM ESCRITOS DA MATURIDADE 57
3.1 GRUNDRISSE 58
3.2 O CAPITAL 67
3.3 OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES 77
4
A ARTE NOS ESCRITOS MARXIANOS 79
4.1 MARX E SEUS JUÍZOS ESTÉTICOS 80
4.2 MANIFESTAÇÕES ESTÉTICAS COMO OBJETO DE ESTUDO 82
4.3 MANIFESTAÇÕES ESTÉTICAS COMO INSPIRAÇÃO CONCEITUAL 90
5
RAZÃO E SENSIBILIDADE EM MARX 99
5.1 A SUPERAÇÃO DA HIERARQUIA ENTRE RAZÃO E SENSIBILIDADE COMO TAREFA POLÍTICA 101
CONSIDERAÇÕES FINAIS 113
REFERÊNCIAS 137
Índice Remissivo 153
INTRODUÇÃO
O grande tema que subjaz, muitas vezes de forma silenciosa, a toda pesquisa que investiga o fenômeno educativo em suas várias facetas e formas de concretização é o da formação humana.
Saviani e Duarte (2010) afirmam que se, por um lado, há um consenso de que a educação consiste na formação humana, por outro, torna-se relevante examinar em que consiste essa formação. Dentro desse horizonte, Severino (2006) indica que cabe ao campo de investigação da Filosofia da Educação a busca pelo sentido da formação humana.
O entrelaçamento entre o próprio sentido de educação (seja escolar ou não escolar) e a formação humana tem como marco a noção da Paideia grega. Sua elaboração coincide com o declínio de uma forma de organização na Grécia antiga, centrada na figura do monarca, e com o surgimento da polis: [...] no lugar do Rei cuja onipotência se exerce sem controle, sem limite, no recesso de seu palácio, a vida política grega pretende ser o objeto de um debate público, em plena luz do sol, na Ágora, da parte de cidadãos definidos como iguais e de quem o Estado é a questão comum [...]
(VERNANT, 2009, p. 11).
Nesse contexto, a areté aristocrática, ou seja, a virtude aristocrática como [...] uma qualidade natural ligada ao brilho do nascimento [...]
(VERNANT, 2009, p. 87-88), sofre uma mutação em seu sentido: a areté torna-se o resultado de uma conquista, e não um valor com o qual se nasce. Na Paideia, a formação do ser humano e a do cidadão convergem: formar o ser humano implica a sua inserção no mundo da cultura e, consequentemente, o cultivo da cidadania. A formação do homem livre dá-se no contexto e a partir do ideal de formação de uma comunidade educadora; a excelência humana está no reconhecimento da formação individual com a formação política; portanto, a Paideia "[...] incute em seus membros a areté de sua sociedade para que se reconheçam como parte dela, responsáveis por ela e realizadores dos valores dela" (CHAUI, 2002, p. 25).
De certo modo, o ideal da Paideia é incorporado no sentido de Bildung, uma das noções mais significativas do século XVIII: "A palavra alemã Bildung (formação, configuração) é a que designa de modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico" (JAEGER, 1994, p. 13). Para ilustrar tal situação, lembramos aqui de dois importantes filósofos: Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant.
O tema da formação humana é crucial em Rousseau. Ao considerar (em contraste com o ideário feudal) que todos nascemos iguais, o filósofo suíço caracteriza a desigualdade como produto humano. Daí emerge a questão: qual tipo de formação pode assegurar a condição de igualdade que a natureza nos garante?
Rousseau (2004, p. 11) lamenta a precarização da educação de seu tempo que impõe a escolha ou de se formar um ser humano ou um cidadão: Apesar de tantos escritos que, segundo dizem só têm por fim a utilidade pública, a primeira de todas as utilidades, que é a de formar os homens, ainda está esquecida
(ROUSSEAU, 2004, p. 4).
Ao arrogar para si a árdua tarefa de ir a contrapelo desse esquecimento, Rousseau elabora seu livro Emílio ou da educação. Sobre a bondade absoluta do projeto e da facilidade de execução, Rousseau conclama [...] que a educação proposta seja conveniente ao homem e bem adaptada ao coração humano
(ROUSSEAU, 2004, p. 5). Não descarta, contudo, que esse projeto possa precisar de adaptações e elementos vinculados às aplicações particulares, a depender, por exemplo, de contextos e situações variáveis. Essa observação não desacredita a sua motivação universal.
Emílio representa um ensaio pedagógico que traz elementos fundantes daquilo que Rousseau defende: o conhecimento do sujeito a ser educado, a relevância da experiência, a ênfase no trabalho manual e nas exercitações corporais, o valor dos sentidos para a constituição da moral e da razão, a crítica a uma educação tagarela
(ROUSSEAU, 2004, p. 236), assim como a possibilidade de aperfeiçoar a razão pelo sentimento
(ROUSSEAU, 2004, p. 274). Há, também, nessa obra, a saga de uma condição de heteronomia para a autonomia. O assumir progressivo da educação como autorresponsabilização constitui o coração do seu argumento.
Em grande proximidade com o projeto rousseauniano encontra-se a argumentação de Kant. Em Kant (1986), a formação assume a paradoxal função de desenvolver as faculdades das quais o ser humano foi dotado pela natureza. Mas essas faculdades não se encontram nele prontas: elas são apenas disposições. Ao contrário de todos os outros seres existentes, a sua formação é necessariamente autoformação. Isso significa que o ser humano precisa se formar. Ainda observa Kant que atingir essa destinação é uma tarefa não alcançável pelo indivíduo singular, mas sim pela espécie.
Em seu sentido amplo, a educação, para Kant (2002), envolve os cuidados (precauções que impeçam às crianças o uso nocivo de suas forças) e a formação (a disciplina e a instrução). Na disciplina, o ser humano afasta-se da selvageria e aprende a submeter-se às leis que ele próprio se dá. Por sua vez, a instrução consiste em aprender algo de seus antecedentes: O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros
(KANT, 2002, p. 15). Para Kant, cada geração tem melhores condições de desenvolver as disposições naturais que a geração precedente. Todas essas facetas educativas visam à moralização: não mais tratar o ser humano como meio para qualquer fim, mas como fim em si mesmo. A pedagogia representa um esforço coerente de educar para o futuro a partir de um ideal cosmopolita.
Não por acaso a arte da educação é, com a arte de governar, uma das mais difíceis; afinal, segundo Kant, nela existe o problema central de como conciliar a submissão e o constrangimento das leis e o exercício da liberdade (KANT, 2002, p. 32). A heteronomia não é apenas a condição a ser superada pela conquista da emancipação; é também a condição sine qua non para que essa conquista possa ocorrer.
A partir desses dois exemplos, pode-se perceber que, apesar de seu sentido bastante amplo, a Bildung possui uma forte conotação pedagógica e sinaliza [...] o elemento definidor, o processo e o resultado da cultura
(SUAREZ, 2005, p. 193).
Contudo, o entrelaçamento da formação com uma concepção teleológica de história e a compreensão de educação como aperfeiçoamento da natureza humana pela posse da razão esclarecida tornou a própria noção de Bildung vulnerável às críticas. As discussões da filosofia contemporânea são ricas nesse sentido.
Horkheimer e Adorno (1985, p. 11) se indagam [...] por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie?
. Sob o impacto não apenas do movimento nazista e da Segunda Guerra Mundial, mas também diante da lógica totalitária do mercado característica da sociedade estadunidense onde se exilaram, os autores denunciam a degeneração da formação em semiformação (Halbbildung), o império da racionalidade técnica em função do lucro, a perda da capacidade autorreflexiva. W. Benjamin (1994) também denuncia a hegemonia da vivência, da existência que se basta a si, dos episódios fragmentados; nesse contexto, ocorre, segundo ele, o declínio da experiência formativa. Críticas como essas denunciam como o capitalismo se produz e alimenta-se da [...] formação cultural objetivamente arruinada
(ADORNO, 1996, p. 40) e sinalizam a luta por uma sociedade na qual o horizonte de formação humana faça-se pela dialética entre tradição e liberdade, adaptação e emancipação, heteronomia e autonomia.
O projeto da Bildung nunca foi consensual, mas as últimas décadas do século XX e o início do século XXI assistiram a um ataque ao ideal de formação vindo de orientações pós-modernas que puseram em xeque a legitimidade dessa luta. Lyotard (2000, p. 4) prenunciou: "O antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação (Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso".
O acolhimento dessa provocação no campo educacional fomentou uma gama de críticas endereçadas às teorias educacionais críticas. Por sua vez, esses julgamentos suscitaram muitas posições. Em um artigo que aborda a formação humana, destaco que uma tendência optou pelo abandono de qualquer projeto formativo (DELLA FONTE, 2014). Essa é a posição de Silva (2000, p. 4) quando afirma: Renunciar às idéias de libertação, emancipação e autonomia. Não existe nenhuma pedagogia emancipatória
. Também observo que ganha força uma ampla e variada frente de estudos que aponta para a ressignificação da Bildung a partir de uma conceituação linguística. Segundo Koller (2003, p. 163), a redefinição linguística da Bildung transforma-a em [...] uma ocorrência linguística que pode acontecer em várias versões de acordo com as circunstâncias de cada caso singular e como um processo de risco, porque também pode falhar
. Por fim, ressalvo que,
Apesar dos méritos dessa tendência de pôr em xeque uma concepção clássica da Bildung, ela já possui, em sua estrutura argumentativa, um caráter estetizante inalienável em relação à realidade e ao conhecimento, inclusive entre autores que se distanciam em suas argumentações (DELLA FONTE, 2014, p. 383).
Embebida de um foco que abdica da objetividade ou a considera incognoscível, a ressignificação da Bildung pela via linguística expande uma lógica estetizante, de modo que a existência e todas as formas de conhecimento passam a funcionar a partir da dinâmica do conhecimento artístico; nesse caso, interessa abordar a realidade e os diversos conhecimentos tendo como centralidade a sua significação humana, sem nenhuma referência às propriedades objetivas do mundo.
Já em outro artigo, observo que essa tendência não é fortuita e adere, a partir de múltiplas determinações, à legitimação do próprio capitalismo. O que está em jogo é que negar o conhecimento como aproximação da realidade objetiva faz das ações revolucionárias um fetiche independente, sem relação com o conhecimento e com leis tendenciais. O arcabouço político e ideológico capitalista combate e desacredita esforços dessa natureza, ou seja, questiona a própria necessidade de uma teoria que busque desvendar os meandros e a dinâmica da realidade social (DELLA FONTE, 2007).
Diante dessa constatação, afastar-se do projeto de ressignificação linguística da Bildung torna-se um imperativo para teorias educacionais críticas. Contudo, ao fazer isso estaríamos aprisionados ao ideário clássico da Bildung e, desse modo, cativos das [...] fronteiras unilateralmente racionais da interpretação iluminista
(HERMANN, 2002, p. 14)?
Motivados por tal polêmica, focalizamos, neste livro, o tema da formação humana e colocamo-nos no horizonte do esforço coletivo que tem sido feito nas últimas décadas para a elaboração de fundamentos propositivos para a pedagogia histórico-crítica (cf. DUARTE, 1993; DUARTE; DELLA FONTE, 2010; MARSIGLIA, 2011; MARTINS, 2004; entre outros). Reconhecendo que a inspiração da pedagogia histórico-crítica remete às reflexões de Marx e de parcela significativa da tradição marxista (SAVIANI, 2007a), prosseguimos os estudos desenvolvidos pelo italiano Mário A. Manacorda (2011, 1991) e indagamos qual a potencialidade que a compreensão da formação humana omnilateral e de ser humano total, proposta por Karl Marx, pode sugerir em termos de alternativa a projetos educacionais que associam a formação a uma visão iluminista, ou descartam a relação entre formação humana e educação ou, ainda, ressignificam essa noção a partir da virada linguística
.
A meu ver, Marx inspira, com sua noção de formação omnilateral e de ser humano total, formulações pedagógicas críticas no sentido de afirmarem seu compromisso com uma constituição humana ampla e complexa, na qual a dignidade do sensível seja considerada junto com a faculdade racional; e com uma compreensão abrangente de conhecimento que unifique (em sua tensão e complementaridade) o conhecimento conceitual e o estético-artístico. Ao fazer isso, contribui para a superação, de um lado, de tendências racionalistas ou cognitivistas e, de outro, de perspectivas estetizantes.
Nos três primeiros capítulos, mapeamos a presença dos temas da formação omnilateral e do ser humano total em alguns escritos de Marx, da sua juventude e da maturidade, e discutimos as problemáticas às quais eles se encontram vinculados. Dedicamos o primeiro capítulo, de modo exclusivo, aos Manuscritos econômico-filosóficos, pois neles as expressões aparecem na obra marxiana pela primeira vez. Esse tratamento exclusivo se tornou relevante para indicar as inquietações de Marx no momento e para mostrar como essas preocupações se modificaram e assumiram outros matizes na sua obra subsequente. No capítulo 2, tratamos alguns textos marxianos considerados de transição: eles situam-se após os Manuscritos até o final da década de 1840. Já no capítulo 3, abordamos duas obras representativas do chamado Marx da maturidade: os Grundrisse (1857-58) e o livro I d’O capital (1867).
A partir do quarto capítulo, a discussão toma um rumo distinto. Realçamos alguns desdobramentos da posição de Marx e vínculos com as preocupações mencionadas nesta introdução. Assim, no capítulo 4, chamamos a atenção para o tratamento que o elemento expressivo, característico das manifestações estéticas, ganha nos escritos marxianos: ele se apresenta não apenas como objeto de estudo, mas também como motor de análises conceituais desse autor. Isso sinaliza que a produção do conhecimento em Marx traz uma configuração provocativa entre o exercício conceitual e o expressivo. Já no capítulo 5, pusemos em relevo a relação entre a razão e sensibilidade e a dignidade conferida aos fenômenos estéticos presentes na compreensão da omnilateralidade, em especial pela crítica da dicotomia corpo e alma e por uma nova concepção de corpo que não se reduza a uma matéria inerte e passiva.
Em relação aos estudos clássicos sobre o assunto, em especial os desenvolvidos por Manacorda (2011, 1991), este livro detalha o lugar conferido à dimensão humana sensível na perspectiva marxiana de formação omnilateral. Desse modo, mostra como algumas reflexões marxianas sugerem uma perspectiva de educação e de produção do conhecimento que supera as hierarquias entre as dimensões humanas sensitivas e intelectuais e entre o conhecimento conceitual e o expressivo. Mas só é possível apreender esse posicionamento como uma tarefa política de crítica ao capitalismo e à sua formação unilateral e especializada, e luta por uma sociedade comunista, capaz de formar um ser humano enriquecido e inteiro em seu modo de existir.
O presente livro traz, assim, aprofundamentos e novos caminhos de abordagem do tema da formação humana, de modo a impulsionar o desenvolvimento criativo da tradição marxista em geral e também no campo educacional.