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Ninauá
Ninauá
Ninauá
E-book156 páginas1 hora

Ninauá

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Sobre este e-book

A história do pequeno índio Ninauá conta sua jornada em uma estrutura de narrativa universal, cuja essência está contida nos mitos, contos de fadas e lendas brasileiras, que buscam revelar como alguém se lança no caminho em busca de um bem e realiza a sua obra. Segundo o autor, na verdade, é a história por trás de todas as histórias contadas infinitamente, de geração a geração, desde tempos imemoriais, com diferentes nomes e personagens, para expressar um conhecimento profundo, que toda alma traz consigo.
IdiomaPortuguês
EditoraGulliver
Data de lançamento9 de abr. de 2020
ISBN9786586421088
Ninauá

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    Ninauá - Juarez Nogueira

    guarani

    1

    Ninauá vive no coração da floresta.

    A floresta Mãe, terra de encantos mil.

    Lá, pedra vira água, peixe vira sapo.

    Gente vira bicho, borboleta vira vento, bicho é gente encantada.

    Ali, de tudo existe do manso e do bravo.

    Para o perigo e o descanso.

    Para sempre ou até já.

    Para depois ou nunca mais.

    A vida e a morte.

    A floresta é o mundo.

    É haida – bonita toda vida.

    Vista do alto, bem alto, parece uma imensa tatuagem em relevo, toda feita de verde, água e luz na pele do planeta azul. Tanta é a beleza que o uirapuru canta de amor pelo amor das matas. Tudo faz silêncio para ouvir seu canto-passarinho. Canto de passarinho-talismã.

    Na floresta Ninauá vive com seu povo.

    Gente verdadeira, huni kuin.

    Moram na shubuã.

    A kupixaua.

    Uma casa grande, sem paredes, com o teto alto, todo coberto com a palha de oricuri entrelaçada. A kupixaua abriga muitas famílias. Cada uma tem seu lugar, para armar as redes, fazer fogo, cozinhar, guardar seus pertences.

    Vivem todos juntos, com muito respeito uns pelos outros, como eram os antepassados no tempo das malocas.

    Shenipawo.

    Tempo dos antigos.

    Esse tempo, contam as histórias dos antigos, vem desde o começo do mundo. E um tempo que vem desde o começo do mundo, pensa Ninauá, é tempo a vida toda. Tempo sempre.

    Um dia, Ninauá fica olhando bem dentro da mata. Pensa: a floresta é grande, tão grande que não se acaba mais. Ele olha e olha.

    Parece que há algo diferente no ar.

    Ninauá, pequeno ainda, pensa com o corpo todo. A terra acaricia seus pés, o vento bate no seu rosto, faz tremer as árvores, o sol morno como um abraço. Ninauá quer saber. Saber onde começa a floresta, quando é o começo do mundo. A floresta é o começo da vida. O começo de tudo.

    Ninauá olha e olha, como se despedisse com o coração.

    Quer saber como tudo começou.

    Saber como nasceram todas as coisas que ali vivem, os pássaros, as árvores, os bichos, o povo da floresta. Ninauá pensa longe, pensa alto. Para muito além do que a vista alcança. Pensa como se a alegria pudesse tomar conta de tudo.

    Ninauá pensa com o sentimento de que um dia vai conhecer o mundo. Conhecer e compreender.

    Ele pergunta a sua mãe, Nadi. Ela diz:

    – Quem vai saber é seu pai, Ninauá, fala com ele.

    Mas o pai de Ninauá tinha saído para caçar e ele tem que esperar o pai voltar.

    Tem ainda outra coisa que Ninauá quer saber, pois ouviu dizer entre os mais velhos, os sheneya: se é verdade que o joão-de-barro prende os vagalumes, os isondu, na casinha dele para de noite ficar toda iluminada. Ninauá pensa: se isso for verdade, não pode existir bichinho mais esperto.

    É ainda de manhã.

    Pawa, o sol, mal enxugou o sereno da madrugada.

    Cedo, a vida acorda o dia, com barulho e música na floresta.

    Tudo se move.

    Quando o sol começa a esquentar, Ninauá fica brincando com os curumins.

    Fazem uma fila. Quem fica por último tem de engatinhar debaixo das pernas dos que estão na frente. O desafio é chegar ao primeiro lugar. Enquanto um engatinha, os outros vão apertando as pernas para dificultar a passagem. É preciso fazer força para chegar lá adiante. Nisso, os pequenos se divertem a valer.

    Quando cansam da brincadeira, vão tomar um banho no igarapé preto. Olhando por alto a água é escura, mas corre limpinha, transparente na concha das mãos. E na boca é doce, doce e refrescante como nenhuma outra bebida neste mundo.

    Ninauá tem o mesmo nome do pai.

    Seu nome quer dizer: grande homem da floresta.

    Os nomes se repetem de geração a geração para não se perderem.

    Quem ensina é o pajé. Ele também escolheu o nome para Ninauá, porque sabe: os nomes vêm do alto do céu, soprados na voz de um sonho. Quando bem escolhidos, ajudam a viver mais, a não ter doença, a ser um bravo guerreiro.

    Ninauá é um nome para quem tem coragem.

    E coragem o pequeno Ninauá tem bastante como seu pai, com quem se parece tanto. Já sabe nadar, sabe usar kano e txaha, arco e flecha.

    Logo chegará à idade de se deixar ferroar pela tucandira.

    É assim: cada curumim tem de enfiar a mão na sá-ari-pé, uma luva feita de palha, onde ficam presas as formigas de fogo e dão ferroadas dolorosas. Fazem isso os pequenos para provar sua valentia. Então ganham o respeito dos mais velhos e podem ir para a casa dos homens, aprender a ser guerreiros como eles.

    Ninauá, ansioso, custa a esperar o pai voltar da caçada junto com os outros homens da aldeia.

    Quando chegam, carregam os jamaxis cheios.

    Trazem aves, um queixada, um porco dos grandes, e alguns macacos pretos, os issu. Os curumins vão ao encontro dos homens, cheios de curiosidade e alegria.

    Ninauá vai na frente, apressado como nunca, com muita vontade de ver o pai. Vontade como nunca havia sentido antes. Mal se aguenta para poder falar com ele. Ninauá pai é marupiara, bom nas caçadas, não atira em caça miúda para não espantar os bichos maiores.

    Os homens voltam contando muitas histórias da caçada.

    Nesse dia não estão panema, sem sorte na caça.

    Voltam felizes com a embiara, o alimento que conseguiram. Terão boa carne para alguns dias, então podem descansar, dançar o mariri e beber a caiçuma preparada pelas mulheres. Trazem também dois filhotes de porquinhos para criarem na aldeia. Os curumins fazem festa, animados com os bichos.

    As mulheres, que ficam por conta da casa, vêm pegar os caititus para preparar. Elas vão arrumar tudo e dividir a carne com os parentes. Depois, quando tudo estiver pronto, o tuxaua, o chefe da aldeia, vai reunir todo mundo para comer junto, bai kai.

    – Poya we!, ele chama.

    É um momento de muita alegria para todos.

    O pequeno Ninauá corre até seu pai e atira-se nos braços dele.

    O pai, forte como ele só, apanha-o e o joga para cima, várias vezes. É um voo de alegria, Ninauá nos braços do pai, e os dois, rodopiando, no coração da floresta.

    Nisso, o gavião branco pia girando no céu.

    Pia alto, uma, duas, três vezes.

    Voa em círculo por cima da kupixaua.

    Ouve-se então um barulho como Ninauá nunca havia escutado antes.

    Os kamãs da aldeia começam a latir, bravos, para dentro da floresta. É o estrondo como o de um trovão, mas não há sinal de chuva no limpo azul do céu.

    Ouvem-se gritos:

    – Tũ ika nawá. Tũ ika daku nawá.

    Barulho de tiros.

    O pai de Ninauá puxa-o de repente, com força, e o empurra em direção ao igarapé:

    – Corre, corre Ninauá! Mergulha na água, esconde!

    Ninauá não entende o que está acontecendo.

    O susto é tanto que começa a chorar. Mesmo assim dispara a correr a caminho do igarapé. De relance, vê toda a gente da aldeia correndo assustada para todo o lado.

    Tudo, de repente, é uma correria só.

    As mulheres correm com os curumins menores abraçados de macaquinho na cintura e arrastam pelo braço as outras crianças. Os homens correm atrás de seus arcos e flechas para se defenderem. Pegam suas bordunas. Dão gritos e assobios estridentes em sinal de perigo.

    De dentro da floresta soam os estampidos.

    Cada vez mais altos, cada vez mais perto e mais ameaçadores.

    Ninauá vê quando um dos homens da aldeia cai bem ao seu lado. Está sangrando, a mão no peito, os olhos arregalados, um braço estendido na sua direção. Antes de tombar, mal tem tempo de dizer:

    – Corre, bakô! Corre, menino!

    Ninauá corre o mais depressa que pode na direção do igarapé.

    Corre e corre, sem nada entender. As lágrimas vertem de seus olhos, impedindo-o de ver. Antes de mergulhar, no meio das ramagens, ainda para um instante. Olha para trás e vê.

    São os daku nawá, os homens enrolados.

    São chamados assim por causa das roupas que vestem.

    O pajé, há muito tempo, falava deles: um dia chegariam à floresta, vindos de um outro mundo tão diferente do mundo dos huni kuin.

    Agora Ninauá sabe que é verdade.

    Os daku nawá invadem a aldeia, carregando armas que fazem um barulho ensurdecedor. Assustam. Derrubam os homens mais valentes. Pegos de emboscada, em vão lutam para impedir a invasão.

    Antes de mergulhar, Ninauá pensa: por que eles tinham raiva de sua gente? Seu povo fez alguma coisa para merecer tanta crueldade?

    Levanta os olhos.

    Aflito, tenta encontrar o pai e a mãe no meio do corre-corre, um desespero só.

    Em vão.

    Medo.

    O coração apertado.

    Batendo forte.

    Parece querer pular do peito.

    Ninauá olha para trás.

    Vê a aldeia pela última vez, antes de se jogar no igarapé e desaparecer no rebojo das águas.

    2

    Ninauá cai no igarapé.

    Sem fazer barulho, um baque seco.

    Seu corpo desce cada vez mais fundo.

    Está muito assustado e confuso.

    Não consegue pensar nada.

    Vê apenas a imagem do pai dizendo para correr e mergulhar.

    Ninauá sabe: está em grande perigo. O coração avisa, batendo forte.

    Ele e seu povo.

    Mergulha o mais fundo que pode, para e olha para cima. Já não vê os raios do sol refletidos n’água. Sob as águas, afasta-se do lugar

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