Ser Semente: Mulheres A'uwe, Corpos Políticos e Solidariedade Ecológica em Marãiwatsédé
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Sobre este e-book
A discussão sobre a retomada de Marãiwatsédé, considerada a área mais desmatada da Amazônia Legal, evidencia feixes de afetos, de disputas e de solidariedades que modificam o modo com que as mulheres A'uw?-Xavante lidam com o outro, com a natureza e consigo mesmas. Modificam, também, as políticas, os espaços, as subjetividades e espiritualidades de todas as formas de vida.
Mais do que necessário, Ser semente é uma carta em aberto para que se indigne, revolte-se e contagie-se com uma novidade há muito anunciada pelos povos ameríndios. A reboque da sabedoria indígena, o livro apresenta um retrato honesto do que é estar diante da criatividade e da força política dos povos ameríndios brasileiros, e constata: é preciso Ser semente.
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Ser Semente - Sckarleth Martins
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
AGRADECIMENTOS
Aos povos da floresta, que cultivam a nobreza de se doar no cuidado com o outro e nos ensinam tanto sobre a arte de ser gente.
A’UWẼ, SEMENTE DO ALÉM DO HOMEM
Eduardo Sugizaki¹
Meu primeiro contato com os autores deste livro, Sckarleth Martins, Suely Henrique de Aquino Gomes e Deyvisson Pereira Costa, no tempo em que ele estava sendo gestado e eis que venho anunciar o seu nascimento e ele será chamado Ser semente: a solidariedade ecológica e as mulheres A’uwẽ. Aquele primeiro contato com os três autores ocorreu porque eles estavam, no espaço acadêmico de sua atuação conjunta, o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFG, procurando aprofundar seu exercício de uma maneira genealógica de proceder a pesquisa sobre a comunicação. Eles organizaram uma Mesa Redonda muito interessante intitulada Genealogia Hoje, que ocorreu no final de 2015, e a mim incumbiram do tema Foucault e a genealogia.
À época, estava justamente orientando duas pesquisas de mestrado que faziam esforços muito parecidos aos que mobilizavam os três autores deste livro, pensar genealogicamente processos históricos bem determinados. Uma fazia uma pesquisa sobre como o sistema jurídico brasileiro elege adolescentes para serem educados no interior de diferentes regimes de sequestro, o do cárcere em sentido estrito e o da escola formal.² A outra pesquisa tratava de um novo recrudescimento da forma disciplinar do regime educacional formal.³ Também estava me ocupando com os Xavante, ao orientar uma pesquisa sobre o trabalho de Bartolomeo Giaccaria e Adalberto Heide, embora a aproximação do mestrando, nesse caso, não fosse genealógica.⁴
Aponto os dois primeiros trabalhos acima apenas para sinalizar que o esforço para pensar genealogicamente processos históricos bastante diversos entre si está ocorrendo em muitas direções. Para exemplificar, Alfredo Veiga-Neto, em seu livro Foucault & a educação,⁵ faz uma recolha de teses e dissertações por assim dizer genealogistas, da qual reproduzirei aqui apenas a tipologia. Fazem-se estudos em que se examina genealogicamente o nível microscópico das relações de poder, como a sala de aula, os documentos e registros escolares, as práticas de avaliação etc. Noutro grupo, estão os estudos em que práticas e discursos pedagógicos são colocados em relação com o fortalecimento da sociedade disciplinar ou com a biopolítica. Outros, ainda, procuram analisar relações de poder que apontam para uma passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Para finalizar, uma extensa lista de estudos com interface entre a genealogia e os estudos culturais.
Além dessas direções do estudo genealógico em certa área do conhecimento, a história das sociedades indígenas é um desafio enorme, considerando o quanto ainda falta nesse campo. O presente livro, Ser semente, pertence ao começo do trabalho nesta nova direção. Nele também opera uma genealogia enquanto conjunto de procedimentos úteis não só para conhecer o passado, como também, e muitas vezes principalmente, para nos rebelarmos contra o presente
.⁶
A rebelião deste trabalho é contra a opressão e o genocídio sistemático que o Estado ocidental colonizador e neocolonial vem impondo aos povos originários desta terra e, especialmente aqui, ao povo Xavante. Mas essa rebelião não se faz apenas a três vozes. Sckarleth, Suely e Deyvisson ecoam as das mulheres A’uwẽ, as meninas, mães e avós Xavante e sua recolha das sementes ao modo ancestral com que seu povo cuidava da mata. Os autores mostram como, numa forma de resistência, essa recolha feminina das sementes busca sobreviver mesmo cooptada no novo modo como o extrativismo primitivo foi colonizado e tragado pelo sistema de relações de produção capitalista.
Quando o leitor percorrer as páginas deste livro, inclusive aquelas em que o trabalho genealógico levou a evidenciar até mesmo as relações contraditórias de poder que se introduzem inclusive nos novos tipos de organização de resistência (associação de coletores indígenas), talvez se decepcione ao ver que os autores já não têm como apresentar indígenas puros
. Visto como fatalidade, o poder avassalador com que o modo capitalista de produção abate-se sobre os povos originários americanos e seus modos tradicionais de existência: estaria morta a semente dessas culturas ancestrais. Ora, Ser semente é uma narrativa de que ali ainda há vida e reserva de algo que pode se projetar para além disto que nossa modernidade chamou de homem.
Assim como as escavações arqueológicas no Egito lograram encontrar sementes de trigo que preservaram seu poder germinal no interior das tumbas milenares, a genealogia praticada em Ser semente trabalha com a perspectiva de que O poder não é onipotente, onisciente, ao contrário
– dizia Foucault em 1978,⁷ e continuava – se assistimos ao desenvolvimento de tantas relações de poder, de tantos sistemas de controle, de tantas formas de vigilância, é precisamente porque o poder é sempre impotente.
⁸ O massacre e o genocídio não foi, desde então e para sempre, a derrota definitiva dos povos originários desta terra. Eles resistem em relações de poder como as que este livro estuda. Mesmo cooptada em formas avassaladoras de conquista, formas tradicionais de vida escondem-se em germe. Elas são sementes como as que germinam por debaixo da camada de asfalto, rompendo-o e afastando-o, vencendo sua onipotência. Pode ser que aí guardadas, nas mulheres A’uwẽ, esteja a semente de qualquer coisa além do homem, além da concreção histórica do presente.
Referências
FOUCAULT, M. Dits et écrits, III. Précisions sur le pouvoir. Réponses à certaines critiques, Gallimard, Paris, 1994.
GOMES, S. M. B. O regime punitivo do educar: um olhar sobre a Educação Pública no Estado de Goiás, PUC-Goiás, 2016 (Dissertação de mestrado em educação).
SILVA, L. S. L. P. da. Os Xavante e sua história pelo olhar dos salesianos Bartolomeo Giaccaria e Adalberto Heide, 2017 (Dissertação de mestrado em história).
SANTOS, R. J. da C. A militarização da escola pública em Goiás, (2016). PUC-Goiás, 2016 (Dissertação de mestrado em educação).
VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
APRESENTAÇÃO
Toda palavra é como uma mácula desnecessária no
silêncio e no nada.
(Samuel Becket)
Essa é uma maneira de iniciar um livro que podemos considerar, no mínimo, controversa. Mas se os acúmulos fazem o silêncio quase impossível a Becket, de nossa parte, optamos por romper as barreiras silenciosas e silenciadoras, ainda que sob as condições de imprevisibilidade e simultaneidade da vida, indissociável ao próprio percurso da escrita.
Enquanto nos encontramos, aqui, no esforço de significar os eventos do itinerário de violência em que o povo indígena A’uwẽ-Xavante⁹ de Marãiwatsédé¹⁰, do estado de Mato Grosso vive, parece que estamos todos, indígenas ou não, em meio a uma intempestiva e agravada situação de desamparo. Em tempos de suspensão de direitos e perdas de conquistas históricas, parece que incorremos, em doses homeopáticas, às práticas de romantização de um passado pretensamente glorioso por perdermos de vista um futuro que fosse coletivo. Parece, sobretudo, que a falta de imaginação nos delega a uma apatia a ponto de não sabermos como resistir.
Tendo isso em vista, nos dedicamos em compreender o que se delineia como um escape criativo, um signo da resistência dos povos indígenas da floresta, a partir da emergência de coletivos socioambientalistas e a visibilidade sobre o trabalho das mulheres indígenas. O povo indígena que nos afeta e nos mobiliza nessa tarefa, o povo A’uwẽ-Xavante de Marãiwatsédé, passa por um processo de ressocialização e reflorestamento de seu território tradicional, porque tiveram este direito usurpado ao serem compulsoriamente expulsos de seu território historicamente habitado, ainda na década de 1960.
A partir da luta pelo domínio do território, do saber e sobre a verdade
sobre os indígenas, há o entrelaçamento de disputas em vários planos nos quais a condição das mulheres A’uwẽ-Xavante é inerente à condição do grupo, por isso ao enunciarmos o grupo de Marãiwatsédé estamos falando delas também, ora. No entanto, o registro da versão das mulheres
sobre o histórico de disputa da Terra Indígena (TI) não é recorrente nos registros oficiais, documentos e relatos orais aos quais tivemos acesso.
Nos estudos etnológicos e historiográficos sobre esse povo, identificamos um número expressivo de trabalhos que tratam da questão da luta pela terra em suas variantes da identidade étnica, da cosmologia, dos desafios ambientais, das forças políticas opostas etc., mas não encontramos, ainda, uma pesquisa que explorasse os episódios específicos enfrentados por essa comunidade sob o espectro da ética-estética ecológica, nem dos seus modos de enfrentamento autogestionários, os desafios e as possibilidades de conformação de corpos políticos resultantes desse processo.
De nossa parte, identificamos, a priori, alguns agenciamentos de enunciação de um feminino muito específico, travestido por uma certa produtividade capitalística de si e da neoliberalização do eu. É evidente que não temos condições de responder aos inúmeros questionamentos que são suscitados pelas práticas ambientalistas, de políticas de terras e agências das entidades do terceiro setor e governamentais junto às mulheres indígenas, mas, considerando a urgência do risco ambiental, de uma condição de finitude que permeia toda a existência humana, por que se aciona um feminino indígena sob a justificativa do cuidado? Por que a imbricação entre território-trabalho-mulher indígena assume tamanha relevância na atualidade?
A experiência ético-política desses indígenas é profundamente marcada pelo arranjo de violência a que foram, e ainda são, submetidos. O grupo A’uwẽ-Xavante de Marãiwatsédé é retirado de seu território de habitação histórica, ainda na década de 1960, com ação deliberada do Estado brasileiro, e transferido para outra área do mesmo povo, na Terra Indígena (TI) São Marcos, a 560 km de distância. Quando chegam, os indígenas são acometidos por um surto de sarampo que dizima cerca de um terço do grupo transferido. Ao se rearranjarem para voltar para sua área tradicionalmente habitada eles são surpreendidos com o arrendamento do território e a transferência da posse para grupos econômicos da agropecuária, o que impossibilita seu regresso imediato. Esse grupo indígena resiste, assim, aos inúmeros episódios de sofrimento, empreende resistências, enfrentamentos, e quarenta anos após sua retirada, consegue seu retorno à área, em 2003, e a Desintrusão¹¹ dos invasores, dez anos depois.
A Terra Indígena Marãiwatsédé é homologada somente em 1998 e possui uma área de pouco mais de 165 mil hectares − situada entre os municípios de São Félix do Araguaia, Bom Jesus do Araguaia e Alto Boa Vista, em Mato Grosso. Atualmente a área é considerada a mais desmatada da Amazônia Legal e possui condições ecológicas preocupantes.
Diante da urgência do reflorestamento da área de Marãiwatsédé, a prática ritual de coleta de sementes realizada geralmente pelas mulheres indígenas é acionada por agentes políticos indígenas e não indígenas como eficaz para a readequação ecológica da área, assim como modo de promoção da justiça social por garantir geração de renda a partir da atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs) ambientalistas junto à comunidade. Ainda assim, há inúmeras estratégias de resistência empreendidas pela comunidade, e pelas mulheres, especificamente, que reconfiguram o espaço de diferenciação e de produção de enunciados sobre a imbricação entre a agência indígena e a agenda do ambientalismo. A partir do referencial conceitual foucaultiano, Ser Semente busca descrever qual seria o dispositivo que induz solidariedades a partir da emergência ética ecológica e produz novas existências, quer sejam humanas ou não.
Cada grupo indígena constrói modos de enfrentar o contato com os colonizadores. Em Ser semente descrevemos o dispositivo do saber-poder nos processos de subjetivação da comunidade indígena, e nos concentramos nas lutas no plano dos pequenos desequilíbrios que movimentam o social e as racionalidades envolvidas, elencando assim, algumas posturas éticas específicas da atualidade, como a solidariedade ecológica.¹² Dessa forma, não nos atemos unicamente à experiência das mulheres, mas reconhecemos a agência dessas como um vetor de força que movimenta o pretenso equilíbrio do dispositivo.
Assim, Ser semente é constituído por uma série de procedimentos. A primeira linha de força diz respeito à tentativa de salvaguarda conceitual que se apoia, em grande medida, nas teorizações¹³ foucaultianas sobre os processos de subjetivação. Ou seja, para que a análise se concentre no objeto
em detrimento de categorizações pré-estabelecidas. Iniciamos O projeto de vida
, a partir da concepção de uma existência enquanto projeto em constante construção no qual o sujeito é provocado a conceber-se como