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Três meses na América
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E-book719 páginas11 horas

Três meses na América

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Sobre este e-book

Uma das preciosidades mais aguardadas pelos admiradores de Balduíno Rambo estava à espera de publicação há mais de cinquenta anos. O diário dos Três Meses na América constitui-se de um magnífico relato de viagem, capaz de satisfazer os mais variados gostos e expectativas dos leitores para os quais foi destinado. Pode ser considerado como um guia que permite, ao leitor, participar, sem sair de casa, de uma viagem emocionante pelas paisagens geográficas dos Estados Unidos, pela história que nelas foi construída.. Tudo isso recheado e enriquecido por reflexões de natureza histórica, antropológica, etnográfica, etnológica, sociológica, política, filosófica, religiosa e até teológica, e brindado ao público leitor em estilo narrativo, que se vale de todos os recursos literários capazes de prender e empolgar a atenção.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de mar. de 2020
ISBN9788573912524
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    Três meses na América - Balduino Rambo

    (ABR).

    I

    Como cheguei à viagem

    Este capítulo pode ser resolvido rapidamente porque nem eu próprio o sei bem. Alguém escreveu na Sagrada Escritura − se bem me lembro foi o paciente Jó, sentado no seu monturo − Se aceitamos de Deus as coisas desagradáveis, por que não as agradáveis? Não deixa de ser tão cristão quando invertemos a frase: Se aceitamos de Deus o desagradável, porque não o agradável? As coisas ruins que nos acontecem na vida chamamos de Permissão de Deus e as boas de Providência de Deus. No final das contas, Permissão e Providência vêm a ser a mesma coisa e a gente chega bem mais longe quando se diz sim e amém para ambas e, sobre elas, se faz o sinal da cruz.

    A disposição da Providência começou a concretizar-se no dia 22 de dezembro de 1955, às seis horas da tarde. Do meu sótão de ervas¹³ fui chamado para o pátio, para encontrar-me com um senhor que queria falar comigo. Era o Vice-Cônsul americano em Porto Alegre, Mister Edward Purcell. Comunicou-me que era costume, entre eles, convidar a cada ano dois brasileiros para passarem três meses como hóspedes nos Estados Unidos. Essas pessoas recebem a denominação de Leader e todo o programa chamava-se Intercâmbio Cultural, o que vem a ser um programa de conhecimento mútuo e que faz com que se pense e se fale bem um do outro. Para o ano de 1956, um dos escolhidos fora o prefeito de Porto Alegre, Major Euclides Triches¹⁴. O outro poderia ser eu, se o quisesse. Foi tudo que Mister Purcell tinha a comunicar.

    Perguntar a um jesuíta se está disposto a fazer uma viagem pelo mundo cria sempre uma situação que provoca cócegas. Pode até desejá-la de todo o coração, mas querê-la, somente quando os seus superiores estiverem de acordo. Tive sorte com eles. O Pe. Reitor disse sim, com a condição de que as aulas não sofressem dano. O Pe. Provincial disse sim, contanto que não custasse nada para a Província.

    Com isto, o perguntar estava longe de terminar. Numa ocasião dessas toma-se, estupefato, consciência de quão pouco sobrou do que se costuma chamar de liberdade humana. Perguntei ao Diretor da Divisão da Cultura, e ele disse sim. Perguntei ao Secretário de Educação, e ele disse sim, também. Perguntei ao Governador do Estado, e ele me concedeu o seu sim, até por escrito¹⁵.

    Começou, então, a mesma peregrinação pela Universidade. Perguntei ao meu Diretor. Esse, por sua vez, perguntou a seu conselheiro, e os dois disseram sim. Perguntei ao Reitor. Esse reuniu o Conselho e, todos juntos, decidiram pelo sim. E, finalmente, três meses antes da viagem, tive que perguntar ao Presidente da República. Até hoje ele não respondeu nem sim nem não. Portanto, se todos os sábios declararam sim, quando se pergunta a tempo, sem receber uma resposta, nem sim, nem não, isto significa sim. Apesar dos 50 anos ainda se aprende alguma coisa com os advogados¹⁶.

    Não quero contar aqui o que me custou em dinheiro, tempo, paciência, palavras amigáveis e solas de sapato, até que obtive o meu passaporte. Seja apenas dito que fui obrigado a pagar por um papel para provar que não tinha dívidas, e por um segundo que eu tinha ficha limpa na polícia. Este é o mundo arrevesado de hoje. Se eu fosse um ladrão ou um assassino, o Estado pagaria pela prova. Quase é de se dar razão ao velho Pe. Pio Buck, SJ¹⁷, quando diz: o justo tem que sofrer muito por causa da burrice.

    O Pe. Reitor tinha dado o seu de acordo para a viagem, contanto que as aulas não sofressem dano. O Pe. Provincial, se a Província não tivesse que bancar nada. A preocupação deste último, o Ministério do Exterior americano se encarregou de eliminar. Seria um hóspede de honra do povo americano, como se lia na fina carta do Cônsul. A preocupação, pela primeira questão, pesou um ano inteiro sobre os meus ombros, pois fui obrigado a antecipar as aulas na Universidade e repor as do Colégio, depois. Também isso se resolveu, e nenhuma hora de aula foi perdida.

    Se alguém se propõe a fazer uma viagem e quiser ver alguma coisa, para contá-la mais tarde, ele precisa saber exatamente o que há para ver e o que pretende observar, em primeiro lugar. Por isso passei todas as horas livres debruçado sobre livros e mapas que se ocupam com a América. Meu amigo, Mister Purcell, muniu-me de uma infinidade deles e, da América, mandaram-me pilhas inteiras. Entre eles, havia um com o título: Vida na América. Explicava, até às minúcias, como entrar e sair dos Estados Unidos; como proceder no hotel, no avião e no trem; onde mandar lavar e passar a roupa, e como proceder com as compras e milhares de outras coisas, mesmo de coisas que pessoalmente não preocupavam, por exemplo, como encaminhar, judicialmente, um divórcio, e como ser sepultado com todas as honras.

    Li com entusiasmo crescente o capítulo sobre o inglês, a língua do país. Tudo que estava escrito passou de tal maneira além de todos os meus conceitos e experiências que, logo de saída, achei que não tinha entendido. Vali-me, então, do mais volumoso dicionário da língua inglesa que me foi possível encontrar na casa (Muret-Sanders, Enzyklopädisches Englisch-Deutsches und Deutsch-Englisches Wörterbuch) e traduzi, cuidadosamente, palavra por palavra. O parágrafo soa assim em alemão:

    O aprender inglês não significa perder a própria cultura e prejudicar a sua identidade étnica. É preciso chamar a atenção de que o americano forma uma comunidade, composta por muitas nacionalidades, e o inglês não significa nada mais do que a língua de intercomunicação do quadro pluriétnico dos Estados Unidos. Aprender inglês é, tão simplesmente, apropriar-se de um instrumento para enfrentar as exigências práticas do dia a dia.

    Não tenho culpa, mas foi neste momento que, pela primeira vez na minha vida, acreditei que a Democracia poderia ser algo maravilhoso, e que os americanos consideram como seu maior orgulho essa liberdade do homem cristão em questões de língua, de identidade étnica e de ensino. O que conseguem com isto é que alemães, suecos, noruegueses, russos, italianos, espanhóis e portugueses na terceira geração − muitas vezes já na segunda − só falam inglês¹⁸.

    Cada qual acrescente o que lhe aprouver. Em todo meu relato faço, apenas, constatações. De mais a mais, está na hora de passar para a viagem propriamente dita. Quem, de qualquer forma, deseja tirar algum proveito, tome nota: no divertido mundo há, com toda a certeza, diferentes formas de democracia. O conceito quer significar a liberdade como cada povo a entende.


    13 O meu sótão de ervas é uma referência ao local onde o Pe. Rambo passava todo tempo que lhe sobrava das aulas no Colégio Anchieta e na Universidade do Rio Grande do Sul. Resumia-se a um enorme sótão sob o telhado da capela dos alunos do Velho Anchieta, na Rua Duque de Caxias, vizinho ao Museu Júlio de Castilhos. Era o seu laboratório de pesquisa e onde guardava os 90.000 exemplares de seu herbário. Foi sentado à sua grande mesa de trabalho que sofreu o acidente vascular cerebral, no dia 11 de setembro de 1961, que o vitimaria na manhã seguinte, no Pavilhão de Neurologia da Santa Casa de Misericórdia (ABR).

    14 Pequeno equívoco do autor: como visto em nota anterior, Euclides Triches concorreu em 1955 à Prefeitura de Porto Alegre, mas perdeu a eleição para Leonel Brizola (JNCM).

    15 O motivo porque foi necessária a concordância das autoridades estaduais prende-se ao fato de que o Pe. Rambo exercia, na ocasião, a função de Diretor do Museu, subordinado à Divisão de Cultura, setor da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul (ABR).

    16 Como Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi preciso que as autoridades da Instituição concedessem uma autorização. Sendo professor de uma instituição federal, ele também necessitava da autorização das autoridades federais para afastar-se do país (ABR).

    17 O Pe. Pio Buck foi irmão de Ordem do Pe. Rambo e também professor do Colégio Anchieta. Dividia o mesmo sótão, onde tinha o seu laboratório de Entomologia, voltado para o estudo das borboletas. Durante mais de trinta anos, foi capelão do antigo Presídio, localizado na Ponta da Cadeia (ABR).

    18 Uma referência à inteligente e sensata política de inserção das diversas etnias na nacionalidade, sem forçá-las a abandonar a língua de origem. As leis americanas não obrigam o imigrante a falar a sua língua, mas exigem que os nascidos nos Estados Unidos da América aprendam o inglês, mesmo que continuem falando alemão ou francês, e que publiquem seus jornais e periódicos na língua de origem. Com isso, não criaram conflitos étnicos inúteis e prejudiciais e, de cobro, conseguiram que a grande maioria dos descendentes de imigrantes de terceira e, até, de segunda geração, só falem inglês. Para o Pe. Rambo, que vivenciou a irracionalidade da Campanha de Nacionalização no Brasil (entre 1938 e 1945) essa política, adotada para o melting pot dos Estados Unidos, significou uma das características mais simpáticas que encontrou em sua viagem (ABR).

    II

    Meu voo para a América

    A partida foi marcada para o dia vinte de junho, mas por um nada teria acontecido um adiamento, pois meu terno ficou pronto apenas à última hora¹⁹. Acontece que, na América, os clérigos não andam em público de talar preto, como é costume entre nós. Vestem um simples terno preto. Como sacerdotes, distinguem-se por meio de um clergyman preto, com colarinho branco. Esta singular peça de pano preto chama-se, lá, de clergyman, o que, traduzido, significa algo como religioso. Uma irmã franciscana, verdadeira artista, do Orfanato da Piedade, costurou para mim uma autêntica beleza de um clergyman.

    Já que estamos falando de roupas que dão visibilidade às pessoas, não posso deixar de mencionar o chapéu. Em duas viagens anteriores, tive pouca sorte com eles. Numa viagem à Argentina, em 1948²⁰, disse-me o Pe. Leopoldo Arntzen²¹, com sua voz paternal, mas decidida: Padre, por ocasião da sua viagem para a Argentina, compre, finalmente, um verdadeiro chapéu clerical! Seu chapéu de abas caídas é horrível! Em nome de Deus, por mais penoso que me fosse, obedeci à ordem do provincial. Quando me apresentei na Argentina, com o meu chapéu novo em folha, percebi que os padres de lá ou não usam nada na cabeça, ou um simples chapéu masculino, e que meu torrador de café²², duro, provocava olhares complacentes, em toda a parte.

    Numa viagem para a América, nada mais óbvio que o terno masculino, com o clergyman, recomendasse um chapéu comum. Alegrei-me, não pouco, com o fato. Acontece que, já no avião, reparei que alguma coisa não estava em ordem com o meu chapéu. No colégio de Washington, o padre ministro, Josef Mac Govern, observou: Padre, com o seu chapéu preto o senhor se parece com um pastor prebisteriano. Aqui os sacerdotes católicos usam um chapéu panamá branco.

    Já que, conforme as regras, o jesuíta deve trajar-se como os padres seculares do país em que se encontra, informei-me sobre o preço de um Panamá clerical. Custava 26 dólares (na época, exatamente dois contos). Era demais para mim. A conseqüência foi que, no decorrer da viagem, fui perguntado por católicos e por protestantes: "Are you a father or a minister?" (O senhor é um padre católico, ou um ministro protestante?) Portanto, não só o traje, como também o chapéu, faz a pessoa.

    A partida do voo estava marcada para as doze horas e dez minutos. Devia estar no aeroporto uma hora antes. Aconteceu o que costuma suceder quando se pretende manter alguma coisa em segredo: somente se conta, sob sigilo, para aqueles a quem se deve. Todo mundo estava informado sobre a minha viagem. Os que mais se alegraram foram meus alunos. Até num jornal apareceu uma conversa comovente com um repórter, que nunca aconteceu, e que não podia ter acontecido, porque odeio esse tipo de palavrório irresponsável.

    O portão abriu-se no minuto previsto e, em marcha de ganso, trotamos até o avião, sob os gritos e acenos de despedida dos amigos. Na minha frente caminhava a minha única conhecida, a reforçada sogra do senhor Cônsul. Antes de subirmos a escada do avião, o Cônsul recomendou-me, encarecidamente, a sua sogrinha, como a chamava, carinhosamente, em português. Ela observou-me com um olhar em extremo benevolente e maternal.

    Cada qual ocupou o lugar assinalado no cartão de embarque. O meu indicava o assento k4 e localizava-se numa janela, bem nos fundos. De lá, foi-me possível observar a paisagem por de baixo da asa direita. Os motores começaram a cantar. Em seguida arrancaram rugindo, um depois do outro, até que os quatro giraram e esquentaram lentamente.

    Hoje em dia, voar não é mais perigoso do que qualquer outra modalidade de viagem. Contudo, não é demais pôr em ordem todas as contas antes de embarcar. Para o caso dos casos, deixei em casa, na minha gaveta, uma espécie de testamento. Herança, o jesuíta não deixa. No testamento, indicava onde podiam ser encontrados os livros e aparelhos a mim confiados; se ainda estava em débito, com plantas secas²³; a quem mandar correspondência; e as providências a serem tomadas para que minha preciosa coleção de plantas não fosse devorada pelos carunchos. Tudo foi entregue à providência e misericórdia de Deus.

    Passei meia hora entregue a esses pensamentos, enquanto os motores roncavam e o voo não se decidia a começar. De repente, os motores pararam, e foi-nos comunicado que alguma coisa estava errada nos condutos da pressurização. Fomos convidados a desembarcar e retornar ao saguão do aeroporto.

    Tomados por uma mistura de sentimentos, trotamos de volta até os amigos, ainda presentes, e que esperavam em vão pela decolagem, e fizeram com que os funcionários da Varig²⁴ − proprietária da aeronave – nos esclarecessem a situação.

    Com a pressurização, as coisas são assim. As grandes aeronaves costumam voar de cinco a sete mil metros de altura. Lá o ar é muito mais rarefeito e muito mais frio do que ao nível do chão, e as pessoas são acometidas da doença das montanhas. Significa falta de ar, dor de cabeça e tontura. Por isso, o interior desses aviões é hermeticamente fechado. A pressão atmosférica e a temperatura são mantidas artificialmente, a um nível mais suportável pelo homem.

    Meia hora mais tarde fomos novamente chamados para o embarque. Os motores giravam de novo e, mal havíamos posto o cinto de segurança – o que acontece passando um cinto sobre a barriga, para que, no caso de um solavanco ou de uma queda, o passageiro não seja jogado para fora da poltrona –, o avião começou a taxiar sobre a pista de cimento, até a extremidade do aeroporto. Freou as rodas e acelerou os motores até a potência máxima. O gigantesco pássaro vibrava todo, tremia e trepidava. Depois, posicionou-se contra o vento e arrancamos, em meio ao bramido, aos uivos e estrondos, até que, após alguns segundos, as rodas deixaram o solo e pairamos sobre as casas. Era, exatamente, uma hora e 38 minutos.

    A aeronave subiu e, em linha direta, rumou para o Norte. A extensa planície em ambas as margens do Gravataí²⁵ assumiu a forma de um tapete estendido, abaixo de nós. Os morros de arenito da margem direita do Rio dos Sinos²⁶ se arrastavam para trás, como se fossem animais de espécies desconhecidas. Seguidas vezes experimenta-se a ilusão de se estar imóvel, suspenso no ar, enquanto a paisagem, lá em baixo, desliza para trás.

    Voamos por cima da estrada que leva a Taquara²⁷ e, à uma hora e quarenta e sete minutos, sobrevoamos a cidadezinha. Cinco minutos depois avistamos, à direita, São Francisco de Paula²⁸. Pairamos, então, a cinco mil metros de altura, por sobre o planalto, com o campo amarelo-palha, com seus matos escuros de pinheiros, seus arroios azuis e suas cascatas brancas. Em meio a esse cenário destacavam-se, solitárias, a cidadezinha de Cambará²⁹ e a indústria de celulose³⁰, nas margens do Rio Santana. Essas observações foram interrompidas pelo alto-falante, pedindo que ninguém se assustasse com a mudança do tom dos motores, porque a posição das pás das hélices seria alterada. Trata-se de procedimento rotineiro, quando o avião alcançou a altura prevista. O avião parafusa-se, literalmente, a si mesmo para o alto. Enquanto sobe, exige uma poderosa força, potência que recebe um adicional com uma inclinação maior das pás das hélices. Logo, porém, que alcançou a altura desejada, exige-se menos potência, justificando a regulagem das pás para uma inclinação menor. Não me perguntem como acontece essa alteração em pleno voo, pois não o sei³¹.

    Às duas horas e dez minutos, sobrevoamos o Rio Pelotas que, com seu vale estreito e fundo, marca a divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Depois, a nossa rota acompanhou a borda oriental do planalto, os assim denominados Aparados, que se precipitam perpendicularmente por muitas centenas de metros. Observo idílicas porções de campo, cortadas por galerias de mato ao longo dos arroios e manadas dispersas de gado pastando. Sucedem-se precipícios bravios, rodeados por imponentes castelos de rocha, mergulhados no troar de cascatas espumantes. Alcançamos o Campo dos Padres³². A montanha mais alta ergue-se a 1.821 metros. Dos pântanos que a rodeiam brotam as fontes do Rio Uruguai. Por sobre os ermos selvagens das montanhas e a neblina trepidante, à direita, avista-se a planície costeira de Santa Catarina, em cujas praias o Atlântico azul rola as suas ondas.

    O almoço é servido enquanto sobrevoamos a estrada que parte de Lages em direção a Bom Retiro³³ e se estende sobre montes e vales, imitando uma fita branca. O serviço de bordo fica sob a responsabilidade de duas moças e dois homens. Na frente de cada passageiro coloca-se uma mesinha munida de pés dobráveis. Nas refeições principais a comida é servida quente. Um aperitivo de boa cepa e um cálice de vinho para a saída também não foram esquecidos. A Varig aprendeu isso dos americanos, e eles, certamente, têm boas invenções a oferecer. Durante o almoço, descobri que um vizinho era engenheiro, antigo aluno do nosso colégio. Não demorou e se apresentaram mais dois anchietanos. Com algum esforço eu os reconheci, como ex-alunos de 1932. Seguiu uma conversa animada, com não pequeno estorvo para a minha contemplação da paisagem. Há um bom tempo que já sobrevoávamos as montanhas de granito³⁴, cobertas de mata³⁵, de Santa Catarina. Às duas horas e trinta minutos, avistei, lá longe, no leste, a cidade de Florianópolis. A ponte³⁶, suspensa sobre a água, parecia-se com uma fina teia de aranha.

    Um pouco mais tarde, mais ou menos na altura de Itajaí, deixamos o continente para trás e, até às três horas e quinze minutos, voamos sobre o oceano. Através dos claros, na capa de nuvens, enxergamos as montanhas costeiras de São Paulo, cobertas de mata. Dez minutos mais tarde, o avião começou a descer em círculos, sobre o mar de casas de São Paulo, imersas na bruma. Pousamos, às três horas e vinte minutos. O voo de Porto Alegre levara exatamente uma hora e cinquenta e sete minutos.

    A escala no aeroporto, bastante fresco e ventoso, durou uma hora exata, e o voo para o Rio de Janeiro, em seguida, outra hora. Subimos até uma altura de 5.700 metros e sobrevoamos a camada de nuvens que escondia toda a paisagem. Somente na segunda metade do trajeto foi possível olhar, através da neblina, e constatar que voávamos, de novo, sobre o oceano.

    Já aterrissei muitas vezes no Rio de Janeiro, sob cerração e com nuvens, e sempre sou acometido do mesmo sentimento desagradável de temor. Todo o mundo sabe que o Rio se localiza entre montanhas altas, e que não poucos aviões se espatifaram nelas. Uma sensação especialmente estranha toma conta da gente, quando a aeronave começa a descer, mais e mais, das alturas seguras e, finalmente, mergulha na neblina úmida que não permite enxergar nem sequer a ponta da asa. Há um alívio na respiração quando, depois de atravessar a camada de nuvens, as luzes da cidade emergem da bruma do anoitecer, e o gigantesco pássaro pousa seguro como a águia no ninho, e estaciona no aeroporto.

    A escala no Rio de Janeiro prolongou-se até as nove horas e quarenta minutos, um pouco mais de quatro horas, portanto. Havia tempo para jantar, havia tempo para rezar o breviário, havia tempo para por em dia o diário e havia tempo para apreciar a multicolorida movimentação.

    Emergindo da bruma da noite, precipitou-se sobre a pista do aeroporto um facho de luz que cegava. Tratava-se de uma aeronave de quatro motores, da companhia aérea americana Braniff³⁷, que partira de manhã do aeroporto de Lima, no Peru, cruzara os Andes e atravessara pela diagonal toda a América do Sul. Chegou, também, um avião italiano, procedente da Itália, via Dacar, na África, e que cruzou todo o Atlântico. A eles, somaram-se aviões bimotores brasileiros vindos do Norte, do Sul e do Oeste, trazendo gente de todo o país. Com suas caixas, malas, bolsas e mantas, as pessoas acotovelavam-se junto ao posto de controle dos passaportes, na alfândega, nos postos de informação, à procura de informações sobre companhias aéreas e hotéis. Misturavam-se todas as línguas da Europa e da América, e um ir e vir constante prolongou-se até as primeiras horas da manhã.

    Alegrava-me com o voo do Rio de Janeiro a Belém, no Pará, porque já conhecia o trajeto de duas viagens anteriores, e tinha vontade de percorrê-lo mais uma vez. Mas à noite, a neblina, a cobertura de nuvens e a grande altura do voo terminaram com o meu plano. Depois de alguns giros sobre a cidade iluminada pelo brilho das luzes, o nosso pássaro, feito de aço e alumínio, alinhou-se em linha reta, na rota para o norte, passando por cima das montanhas e adentrando para o interior. Uma cobertura de nuvens brancas estendia-se muito abaixo de nós e, sobre ela, a lua refletia sua luz suave e prateada.

    Numa situação dessas, não há ninguém que não pense em dormir. Também para essa eventualidade fora tudo providenciado. A poltrona cômoda e macia permite ser reclinada para trás, fazendo dela uma cama, tornando possível um magnífico sono, enquanto os motores ronronam a sua canção de ninar pela noite iluminada pela lua.

    Acordei exatamente às três horas, com o aviso do alto-falante: apertar os cintos, apagar os cigarros. Isso acontece sempre antes do pouso, a fim de diminuir o risco numa eventual colisão, acidente ou incêndio. Ainda não acordara bem, e o avião rolava pela pista do aeroporto de Belém.

    Desembarcamos e, andando para cá e para lá, pusemos as pernas em forma. A noite tropical, quente e úmida, pesava sobre a extensa planície. O aeroporto que, em 1940, só permitia o pouso de aviões monomotores, com as instalações da administração cobertas com folhas de palmeira, é hoje um dos mais importantes da América do Sul. Todo o trânsito aéreo para o Norte e para o Sul passa por aqui. Também os aviões que servem à região amazônica têm, em Belém, o seu ponto de partida.

    Eram quatro horas, quando decolamos, de novo. No Leste, apareciam os primeiros clarões do dia. Subimos até 7.000 metros, e voamos acima das nuvens. Da terra, não se enxergava nada. Apenas a partir das nove horas ergueu-se o sol por cima do mar fervente de nuvens e, em questão de pouco tempo, invadiu tudo com seu clarão, fazendo doer os olhos. Esse cenário de nuvens movimentava-se num constante ondular e ferver, esguichar e precipitar-se, amontoar-se e expelir. De quando em vez, um olhar furtivo descia ao abismo, levemente encrespado como uma chapa de aço.

    O Brasil fazia tempo que ficara para trás, e voávamos ao longo da costa da Guiana, por sobre o arco de ilhas das pequenas Antilhas, em direção ao mar do Caribe. Acompanhei tudo pelo mapa, porque não se enxergava nada, além de nuvens e água.

    O mar do Caribe tem o nome dos Caribes sul-americanos, índios navegadores que, ao tempo do descobrimento da América, praticavam a pirataria marítima em suas canoas escavadas em troncos de árvores. Eles mantinham, em sobressalto, todo aquele mundo de ilhas entre a América do Norte e a América do Sul. Hoje, esse mar é mal afamado por causa dos tubarões, também chamados de tigres-do-mar, pois costumam devorar os náufragos.

    Evidentemente, pode acontecer que um avião caia no mar ou que, por causa de uma pane nos motores, seja forçado a descer até a água. Cada passageiro tem, à mão, preso na poltrona, um colete salva-vidas. O uso desse equipamento costuma ser exibido aos passageiros pela tripulação, para ensinar-lhes como usá-lo. É afivelado como um arreio, nos ombros e no peito. Com a bolsa de borracha, vem um tubo de aço com um gás, sob alta pressão. Girando a torneira do tubo, a bolsa de borracha infla e impede que a pessoa afunde.

    Mas, de maneira alguma, uma aventura dessas é desejável. Embora não haja risco de afogar-se, há o perigo de morrer de fome ou de sede no mar, ou ser abocanhado por um tubarão. Por isso rezo, com especial devoção, em todas as minhas viagens aéreas, o antepenúltimo verso do Salmo 33, que costuma ser recitado na oração da noite do breviário da quarta-feira. O Senhor protege os ossos de todos os seus justos; nenhum deles se quebrará. Será que naquela época, mil anos antes de Cristo, o profeta tinha noção do medo furtivo pela vida, que acometeria o homem voador do futuro?

    Ocupado com essas reflexões, passei as horas solitárias do voo sobre o Mar dos Caribes. Eis, quando, de repente, era perto das onze horas, e por entre as nuvens, lá em baixo, à direita, avistei terra, bem ao longe. Pelo binóculo, distingui, nitidamente, a praia de areia banca, atrás dela palmeiras, planícies verdes e montanhas ao longe. Tratava-se da metade oriental da ilha do Haiti³⁸, que forma a república de Santo Domingos. A porção ocidental chama-se Haiti, e corresponde à república negra de fala francesa, do mesmo nome.

    Dez minutos mais tarde, pousamos no aeroporto de Ciudad Trujillo³⁹, capital de Santo Domingo. Os matos de coqueiros⁴⁰ verde-escuros cobriam a cidade e, entre eles, brilhavam, num vermelho de sangue, as acácias africanas⁴¹.

    Em Santo Domingo fala-se espanhol, mas ouve-se quase só inglês. Diverti-me todo o tempo com o filho pequeno de um engenheiro americano, que embarcara em São Paulo. O pestinha encontrava-se exatamente na idade em que os meninos querem ver tudo, destruir tudo e derrubar tudo. Para segurá-lo firme na mão, a mãe o prendera com uma espécie de arreio no peito e nos ombros, semelhante ao usado em cachorros, comum nas cidades. Uma tira de couro de três metros, presa nas costas, permitia à mulher segurá-lo firmemente. Ainda no avião, o menino corria por tudo. Mas cada vez que inventava alguma malandragem, a mãe puxava-o de volta, com cuidado, mas com firmeza. Em Ciudad Trujillo, o fedelho mostrou-se especialmente rebelde. A mãe seguiu-o com paciência por toda a parte, enquanto se mantinha nos limites do permitido. Quando, porém, resolvia extrapolar, puxava-o, apesar dos esperneios e dos protestos. Um jovem médico brasileiro e a mulher, que viajavam à América para um aperfeiçoamento, se torciam de tanto rir sobre essa mistura de rigor e delicadeza. Não achei nenhum motivo para rir. Admirei o tino prático da mãe americana, que apesar de todas as novas invenções, doma os filhos com velhíssimos métodos de educação, sem saber exatamente o que significam.

    Às doze horas e quarenta minutos deixamos Ciudad Trujillo. Minha vizinha, que aí embarcara, rezava fervorosamente o terço. Durante meia hora o avião passou por sobre planícies, muitos pântanos, matos de coqueiros, matinhos e casas dispersas. Seguiu-se uma paisagem com colinas cobertas de mato, que lembra, em muito, a nossa região colonial, pela depredação da mata e a forma irregular da agricultura. Mais adiante, ainda, avistei, cá e lá, alguma terra, depois somente água abaixo de nós. A uma altura de 4.200 metros, voamos por cima de um fino véu de nuvens brancas e, sobre ele, o céu de um azul-aguado. Bem lá em baixo jazia o Oceano Atlântico, num azul profundo.

    No avião não é apenas possível ler, meditar e dormir. É possível, também, escrever tranquilamente. Preenchi, com isto, as longas horas da tarde, apesar de lutar constantemente contra o sono e sentir, intermitentemente, fisgadas dolorosas nos ouvidos. Isto vem da mudança de pressão da atmosfera, que não pode ser controlada de todo, apesar dos equipamentos de pressurização. É verdade que o ar usado é constantemente bombeado para fora e o ar renovado introduzido, mas isto não substitui o ar da natureza livre. Pelo final da viagem, o calor aumentou cada vez mais e o ambiente naquela caixa fechada tornou-se ainda mais abafado e sufocante. A maioria dos passageiros mostrava uma fisionomia apática, sem expressão. Mesmo os aperitivos selecionados, oferecidos em quantidade pelo serviço de bordo, em nada adiantaram contra o desejo crescente: oxalá que termine.

    Pouco antes das seis horas, o avião saiu da sua posição fixa e começou a descer e a descrever grandes círculos. Eu ouvira maravilhas a respeito da empolgante visão que se tem da cidade de New York, do alto. Mas o que enxergava, lá em baixo, não passava de um imenso mar de bruma marrom-cinza. Não demorou e mergulhamos nela e não se viu mais nada. Experimentei a sensação desagradável que, de um momento para o outro, nos defrontássemos com um dos gigantescos arranha-céus, os quais não saem do caminho nem para um avião, como se sabe.

    Finalmente atravessamos a camada inferior das nuvens e percebemos que voávamos a poucas centenas de metros do chão. Água, neblina em ebulição, pântanos, chaminés fumegando, casas baixas, estradas brilhando com a umidade e, sobre elas, uma procissão ininterrupta de carros; essa foi a minha primeira visão da América.

    Aterrissamos sem problemas no Aeroporto Internacional, distante 30 quilômetros do centro da cidade, distância correspondente, portanto, de São Leopoldo a Porto Alegre. Ao se abrirem as portas, fomos recebidos por um bafo morno, úmido e sufocante. Caía uma chuva fina, quase imperceptível.

    Um funcionário esperava por nós, ao pé da escada, e trotou à nossa frente, por entre duas cercas, em direção ao hall do aeroporto. Como em toda a parte, neste mundo desconfiado, duas coisas foram examinadas: os documentos de viagem e a bagagem. Comigo, a coisa se resolveu em três minutos, pois, mal pusera o pé no hall, aproximou-se de mim um senhor que falou meu nome. Identificou-se, com muita gentileza, como sendo Mister William Slator, do Ministério do Exterior da América, denominado State Department. Um outro funcionário carimbou meu passaporte e nem foi preciso abrir a mala.

    Slator conduziu-me por diversas galerias e corredores até a estrada; e, a esta altura, me encontrava, de verdade, na América. O meu plano fora voar, ainda no mesmo dia, para Washington, mas tivemos uma hora de atraso. Fui obrigado a ficar em New York. Acontece que, em New York, há uma dúzia de casas de jesuítas. Não contava com o pernoite aí, e não estava de posse do endereço de nenhuma delas. O previdente Slator já havia reservado um quarto de hotel. Fez-me embarcar num carro de luxo, com o emblema do governo americano, junto com o oficial brasileiro e sua esposa e os quatro filhos louros. No trajeto que seguiu, viajei na frente, ao lado do motorista. Informei-me, o máximo possível, com o homem, a fim de ampliar meus conhecimentos a respeito da América, terra das maravilhas. Fiz o mesmo em centenas de ocasiões durante toda a minha viagem, e sempre fui correspondido com amabilidade. O carro deslizava suavemente, quase sem percebê-lo, dezenas de carros na retaguarda, centenas na frente e centenas no sentido contrário, no lado esquerdo da estrada. Tudo acontecia na mais perfeita ordem, sem buzina, sem barulho, sem ultrapassagens impacientes, como se fizesse parte óbvia da vida americana. Ao se observar tudo isso, fica difícil acreditar que, diariamente, trezentos americanos perdem a vida em acidentes com automóveis. O fluxo dos carros é tão denso que, para os pedestres, foram construídas passarelas por sobre as estradas. Mais tarde terei, ainda, ocasião para falar das estradas e dos carros americanos.

    Sem conseguir enxergar grande coisa no anoitecer cor de chumbo, alcançamos, após uma hora de viagem, o quarteirão dos arranha-céus de Manhattan, e desembarcamos em frente ao hotel, com o nome de Wellington⁴², o vencedor de Waterloo⁴³. O preocupado senhor Slator confiou-me a um enxame de espíritos prestimosos, que me convidaram para entrar no elevador e levaram ao quarto, lá no alto, no 33º andar. Água corrente, fria e quente, assoalho forrado com carpete, rádio embutido e, sobre a escrivaninha, uma Bíblia. Resumindo: encontrei o mesmo cenário dúzias de vezes nos hotéis da América.

    Também os corredores são forrados com grossos carpetes, que absorvem qualquer tipo de ruído. Os quadros das portas têm um revestimento de borracha, fazendo que fechem e abram sem qualquer ruído. E, num exagero, se encontram nos corredores, às vezes em cada porta, uma placa com a inscrição: keep silence − mantenha silêncio. E, de fato, os americanos mantêm o sossego em suas casas. O barulho vindo da cidade subia até o meu quarto como o rumorejar longínquo da arrebentação do mar.

    Foi essa a minha primeira noite na América, e dela guardo uma agradável lembrança.


    19 Essa observação tem a sua razão de ser, pelo fato de, no Brasil da época, os religiosos e clérigos, no quotidiano, vestirem batinas. Nos Estados Unidos, o costume mandava que se apresentassem de terno, com o clergyman, uma espécie de colete, munido de colarinho branco. O Pe. Rambo não fez por menos. Mandou confeccionar seu terno de casimira preta na Renner, a mais conceituada alfaiataria de Porto Alegre (ABR).

    20 Foi um Congresso Internacional de Botânica, realizado na cidade de San Miguel de Tucumán, no Noroeste da Argentina (ABR).

    21 O Pe. Leopoldo Arntzen foi o Superior Provincial, e o Pe. Rambo costumava chamá-lo de Pai Arntzen, pela maneira sensata, amável, mas firme com que conduzia os negócios sob sua responsabilidade (ABR).

    22 Torrador de café era o nome jocoso que se dava a uma espécie de cartola preta, que era o chapéu clerical obrigatório no Brasil, na época (ABR).

    23 Se haviam exsicatas, em outras palavras, a serem devolvidas aos respectivos herbários que as haviam emprestado ao Pe. Rambo (JNCM).

    24 Primeira companhia aérea fundada no Brasil (1927), por iniciativa de Otto Ernst Meyer; a sigla significa Viação Aérea Riograndense (JNCM).

    25 Rio de 34 km de extensão, que nasce no Banhado Grande e, com direção leste-oeste, se lança no Lago Guaíba, separando as cidades de Porto Alegre e Canoas, no Rio Grande do Sul (JNCM).

    26 Rio de 190 km de extensão, que nasce no alto da Serra Geral e tem sua foz no Delta do Guaíba, banhando cidades importantes do Rio Grande do Sul, como São Leopoldo e Canoas (JNCM).

    27 Cidade (29º39’03S – 50º46’51W) atualmente pertencente à região metropolitana de Porto Alegre, situada ao pé da Serra Geral, em altitude de apenas 28 m sobre o nível do mar (JNCM).

    28 Cidade (29º26’52S – 50º35’02W) e município da região dos Campos de Cima da Serra, Rio Grande do Sul, situada a 891 m de altitude (JNCM).

    29 Atual Cambará do Sul (29º02’52S – 50º08’42W), nos Campos de Cima da Serra, situada a 1.028 m de altitude, e distante 185 km de Porto Alegre (JNCM).

    30 Indústria de celulose e papel (Cambará S.A.), fundada em 1942, por Osvaldo Kroeff, no então município de São Francisco de Paula, posto que Cambará do Sul somente se emancipou em 1963 (JNCM).

    31 Na época, 1956, ainda não se conheciam os aviões com turbinas; todos eram equipados de motores com hélices. O Pe. Rambo viajou num Constellation, da Varig, o mais moderno em termos de transporte de longo curso de passageiros (ABR).

    32 Tradicional ponto de coletas botânicas, no alto da Serra (JNCM).

    33 Município da região serrana de Santa Catarina, emancipado em 1922, com população formada, basicamente, por descendentes de alemães e italianos. A cidade, chamada Bom Jardim da Serra, situa-se a 1.245 m de altitude (JNCM).

    34 Rambo quer dizer, em outras palavras, que estavam sobrevoando a Serra do Mar, e não mais a Serra Geral, posto ser esta capeada pelo derrame basáltico, origem dos famosos Aparados (JNCM).

    35 Trata-se da Floresta Atlântica, uma Floresta Ombrófila Densa (JNCM).

    36 Ponte Hercílio Luz, a mais antiga das duas que ligam a ilha de Santa Catarina ao continente (JNCM).

    37 Braniff International Airways, empresa norte-americana de aviação, que operou de 1930 a 1982 (JNCM).

    38 Também dita Hispaniola ou Ilha de São Domingos; situa-se entre as ilhas de Cuba e Porto Rico, no Mar do Caribe (JNCM).

    39 A cidade de Santo Domingo, capital da República Dominicana, foi chamada de Ciudad Trujillo entre 1936 e 1961, como homenagem ao ditador Rafael Trujillo (JNCM).

    40 Cocos nucifera L. (Arecaceae), chamado, entre nós, de coqueiro-da-Bahia (JNCM).

    41 Provável referência ao flamboyant (Delonix regia (Bojer) Raf.), árvore muito ornamental, da família Fabaceae, bastante cultivada em países de clima quente, embora nativa de Madagascar e África tropical (JNCM).

    42 Tradicional hotel do centro de Nova Iorque, em plena Sétima Avenida e perto do Central Park (JNCM).

    43 Última batalha de Napoleão Bonaparte, ocorrida em 18 de junho de 1815, na qual os franceses foram batidos pelos ingleses, sob o comando do Duque de Wellington, nos arredores dessa localidade, situada, atualmente, em território belga (JNCM).

    III

    Como conheci Washington

    Ao meio-dia do dia seguinte − 22 de junho –, pedi que me levassem pelo mesmo caminho da véspera até o aeroporto. O percurso custou, exatamente, nove dólares, pelo que se pode concluir que, tomando por base o nosso dinheiro, a vida na América não é nada barata, pois nove dólares valiam, na época, 700 cruzeiros. Para o café da manhã paguei 70 cents, ou seja, 55 cruzeiros. E, para adiantar, um bom hotel médio cobra, na América, de cinco a seis dólares por dia.

    Dessa vez, virei-me sozinho no aeroporto. De qualquer forma, é espantosa a rapidez com que se aprende o que fazer, num país onde o trânsito obedece a uma rigorosa disciplina. Em toda a minha viagem não perdi uma conexão sequer ou tomei uma direção errada. Bem no final aconteceu-me um equívoco. Trata-se de uma boa piada, que quero contar a seu tempo.

    Washington localiza-se a 50 minutos de voo, para o oeste de New York. A viagem atravessa três estados: New York, Delaware e Maryland. Enquanto na primeira metade da viagem as nuvens impediam a vista do chão, na segunda reinou sol claro. Uma terra densamente povoada, cortada por muitas estradas, estendia-se até o oceano. Ao lado de inúmeras cidades menores, distinguiam-se grandes áreas com propriedades rurais, alternando com matas de folhosas⁴⁴ de tamanho considerável. Mais adiante, à direita, encontra-se a Filadélfia, com mais de três milhões de habitantes, a terceira maior cidade do país⁴⁵. A costa do oceano, sempre visível, apresenta uma configuração variada e, na desembocadura do Delaware⁴⁶, mostra uma profunda reentrância. A baía de muitas ramificações (Chesapeake Bay) avança fundo no continente. Baltimore⁴⁷, a oitava cidade dos Estados Unidos, somando um milhão e trezentos mil habitantes, situa-se próxima à sua extremidade norte.

    O Rio Potomac⁴⁸ desemboca no braço sul da Baía de Chesapeake⁴⁹. À sua margem encontra-se Washington, capital do país. Enquanto nosso avião voava em círculos sobre a cidade, procurei, em vão, arranha céus e chaminés fumegantes. Em toda a cidade, que abriga cerca de um milhão de habitantes, não se encontra um edifício alto ou uma fábrica maior. Washington é, essencialmente, o centro administrativo do país e praticamente todos os grandes prédios estão a seu serviço. Observada do alto tem uma coisa em comum com todas as cidades americanas: milhares e milhares de carros estacionados em lugares livres. Suas capotas brancas, verdes, amarelas e azuis, sugerem gigantescos enxames de besouros ou baratas.

    Depois de voar baixo sobre o Rio Potomac em direção ao aeroporto, aterrissamos às duas horas e vinte minutos. A cada dois ou três minutos chega ou parte uma aeronave. Novamente se fazia presente, no hall, um funcionário do Ministério do Exterior, de nome John Barfield. Convidou-me para embarcar no seu carro e levou-me até a cidade. No caminho, contou-me que durante a guerra demorara-se um bom tempo no Brasil e que, há pouco, acompanhara um grupo de oficiais pelo país. Mostrou-me os monumentos históricos da cidade pelos quais passávamos, explicou-me o significado do Rio Potomac, dado em homenagem a um belicoso cacique indígena.

    Barfield conduziu-me, inicialmente, a seu lugar de trabalho, no Ministério do Exterior. Espantei-me com a simplicidade e o aspecto vetusto de tudo. Os elevadores não diferiam muito daqueles dos prédios mais antigos de Porto Alegre, os degraus das escadas desgastados, as mesas de trabalho tão despojadas quanto possível. Barfield parecia adivinhar meus pensamentos, e disse: onde, antes da guerra, trabalhavam 2.000 funcionários, havia, no momento, quase dez vezes mais. O estado, simplesmente não conseguia dar conta das novas exigências. Semelhante simplicidade, eu observei em todos os prédios administrativos dos Estados Unidos.

    A mesma situação se repetiu no prédio em que Barfield me levou depois, o American Council of Education. A melhor tradução seria Gabinete Americano para o Intercâmbio Cultural. Lá fui apresentado a um senhor de nome Lewis Carnahan, encarregado de garantir o êxito dos três meses. Fê-lo com insuspeitável exatidão e simpatia. Auxiliava-o uma única secretária, de nome Joan Hatch. Devo a esses dois que a minha viagem transcorreu sem tropeços, e obteve os melhores resultados.

    Carnahan propôs passar dez dias em Washington, para conhecer a vida na América e as coisas dignas de serem vistas na cidade. Nesse meio tempo, elaboramos, juntos, o restante do plano de viagem. A decisão foi sensata e necessária. Domei a minha impaciência para me inteirar, o mais depressa possível, do motivo exato da minha vinda: visitar as instituições de pesquisa, os museus e os grandes parques nacionais do Oeste.

    Quero começar os meus registros sobre Washington, com a Universidade de Georgetown⁵⁰. Encontra-se, ela, sobre um terreno levemente ondulado, na margem esquerda do Potomac. Calculo que a área pertencente à Universidade some, aproximadamente, uns 15 hectares. Ao redor do envelhecido edifício-principal se estendem magníficos jardins e parques. Na margem do rio, ergue-se um ginásio de esportes. Mais atrás, há uma Faculdade de Odontologia e um Hospital ao lado. Um outro prédio, com a estrutura concluída, deveria servir ao conjunto da Medicina. O Ginásio − nós diríamos Colégio − pertencente à Universidade, situa-se fora da cidade, rodeado dos mais belos campos e matos. Meu lugar preferido foi o pequeno Observatório Astronômico, no topo da elevação mais alta, à margem do rio. Ali, o Pe. Josef Heyden⁵¹, de origem alemã, desempenha o seu papel como observador das estrelas. Ao bater na porta, apareceram primeiro três cachorros, entre eles uma cadela dogge⁵² incrivelmente grande, de orelhas caídas e olhar simpático. Estava com a pata inflamada, envolta num curativo impecavelmente limpo e branco. Para atender essas necessidades existem hospitais suficientes para cães nos Estados Unidos. Mostrava a pata para todos os visitantes e aceitava, agradecida, uma demonstração de pena ou, quando recebia, um carinho. Os cachorros são iguais no mundo inteiro, exatamente como os homens. Apesar disso, os cachorros do Brasil agradam-me muito mais do que os americanos. Estes são exageradamente civilizados; os nossos têm características mais de acordo com a natureza.

    No observatório encontrei um senhor de idade que, em tempos idos, fora oficial da marinha. Passava seus velhos dias tentando provar que a América já fora descoberta antes de Colombo. Até aí tinha certa dose de razão, ao menos enquanto está comprovado que, de fato, os Vikings, vindos da Noruega e da Islândia, já estiveram na América, pelo ano de 1000 depois de Cristo. Até um renano, que encontrara as uvas silvestres americanas, estivera na expedição e dera-lhe o nome de a boa terra da uva. Também foram encontradas armas e outros objetos do tempo dos Vikings e, na costa de Nantukett, no Estado de Rhode Island⁵³, ergue-se uma velha torre, considerada, por muitos, como uma construção normanda. Até uma inscrição no antigo rúnico nórdico está presente, e, contrariamente do que julgam alguns, não é falsificada. Tudo isso parece estar em ordem, mas o velho urso do mar comunicou-me, em segredo, que havia uma grande quantidade de inscrições datadas dos tempos pré-colombianos. Chegou a escrever um livro sobre o assunto, intitutado Lost America − A América Perdida. Colombo, por sua vez, não teria partido simplesmente para o escuro, quando foi descobrir a América. Conservara na sua esquadra uma velhíssima carta marítima de um marinheiro turco, de nome Piri Reis⁵⁴. Nessa carta, que remonta aos tempos dos Fenícios, dos Árabes e dos Turcos, não só a América do Norte e do Sul são reproduzidas com bastante fidelidade, como até a grande terra firme em torno do Polo Sul, região que apenas no século dezoito foi novamente descoberta. Meu amigo presenteou-me, inclusive, com uma cópia daquela carta, encontrada no arquivo do Ministério da Marinha americana. A carta encontra-se na minha frente sobre a mesa de trabalho e, no mínimo uma vez por dia, observo-a e sacudo a cabeça. Nunca se aprende tudo.

    Padre Heyden goza de um bom nome entre os astrônomos americanos. Seu objeto de estudo é o sol. Mais tarde constatei numa revista americana que ele realizou exaustivas observações de eclipses solares, uma vez no Brasil e a outra na China.

    Em Georgetown tive uma nova experiência com ajudantes de missa. Como há muitos padres na casa, todo o andar de uma lateral foi transformado em pequenas capelas, onde cada qual tem condições de rezar, com tranquilidade, a santa missa diária. A capelinha que me foi indicada tinha o bonito nome de Our Lady by the Wayside – Nossa Senhora da Beira da Estrada, nome de uma antiga igrejinha muito venerada por Santo Inácio, localizada nas proximidades de Roma. Na primeira manhã fui obrigado a esperar por uma hora, até que se apresentasse um escolástico⁵⁵ colombiano, que me ajudou na missa. No segundo dia fui um pouco mais tarde e topei com um padre velhíssimo que acabara de se paramentar para a missa e, aparentemente, também aguardava um ajudante. Como se parecia muitíssimo com o Pe. Amstad⁵⁶, senti pena dele e lhe ajudei na missa. Parecia que não esperara por isso, e nas orações ao pé do altar respondia a si mesmo. Depois, sentei-me e continuei a esperar, desesperadamente. Passada uma boa meia hora, aproximou-se um velho irmão leigo – irmãos leigos são muito raros na América – e perguntou-me por que estava esperando. Com todo o meu desamparo dei-me a conhecer. Sorrindo, cochichou-me ao ouvido: conosco, aqui na América, o sacerdote está autorizado a rezar a missa sem ajudante. Pois é, como são as coisas, e novamente: até na Igreja de Deus há sempre algo a aprender.

    Já que estamos falando de ajudantes de missa, quero encerrar este assunto. Obviamente, eu tive, não poucas vezes, ajudantes de missa. Acontece que esse grau mais ínfimo da hierarquia católica se comporta, aí, exatamente como entre nós. Não exatamente envolvendo-se numa autêntica guerra com o turíbulo com fogo, dentro da sacristia, antes da missa solene, como certa vez presenciei em Porto Alegre, de uma forma piedosa, bem ao estilo de guri. De mais a mais, encontrei na América os ajudantes de missa mais piedosos pelos quais já cruzei. Aconteceu em Homestad, lá no Sul, na Flórida, bem ao final da viagem. Serviam de exemplo até para o padre, da maneira como deve ser o comportamento no altar. Também na América encontram-se de todos os tipos.

    Enquanto, durante o dia, não se encontra ninguém em casa com quem conversar, após o jantar os jesuítas americanos ficam reunidos durante um longo tempo, até altas horas da noite, nas férias. Aproveitei a oportunidade para fazer-me uma ideia a respeito do catolicismo na América. Já na primeira noite encontrei um padre que não se cansou em me informar. Na América vivem cerca de 30 milhões de católicos, em uma população de 160 milhões de habitantes. Entre eles trabalham 40.000 sacerdotes. Setenta e cinco a oitenta por cento dos fiéis, às vezes ainda mais, cumprem os deveres básicos. A situação melhor encontra-se entre os irlandeses e seus descendentes, que são, conhecidamente, o povo mais católico do mundo, em parte por sua aversão aos ingleses, coisa que ninguém lhes pode levar a mal, conhecendo a sua história. A maioria dos jesuítas do Leste americano tem nomes irlandeses. Identifica-os o fato de começarem por Mac ou por O, ou terminarem por -han ou por -gan. Nomes, portanto, como MacGovern, O’Duffly, ou Sheehan, Hannigan. Na maioria dos casos são homens altos, com cabelo de um preto retinto, olhos escuros, e a cor da pele fortemente avermelhada. Mas há, também, de todos os outros tipos.

    Em segundo lugar, vêm os alemães. São encontráveis mais para o centro e o oeste do país.

    Em terceiro lugar aparecem os poloneses, que se concentram no meio-norte, em torno de Chicago e Detroit. Entre eles acontecem, de tempos em tempos, desentendimentos, que até já evoluíram para uma espécie de cisma, o que significa uma separação das autoridades eclesiásticas.

    Em quarto lugar vêm os italianos, e esse é um fato surpreendente, pois aqui no Brasil não existe nada mais católico do que, exatamente, esse povo. A explicação para essa diferença deve ser procurada no fato de a imigração italiana para os Estados Unidos ter vindo, preponderantemente, do Sul da Itália, enquanto os nossos emigraram do Norte da Itália. Essas regiões são, também, muito diferentes na Itália. A segunda razão, talvez a mais importante, reside no fato de que os imigrantes da primeira e segunda geração não dispunham de curas de alma suficientes que falavam a sua língua. Em toda a América constatei este fato: quando os imigrantes contavam, desde o começo, com um acompanhamento regular na própria língua, e afinado com a sua índole, permaneceram católicos e até se tornaram melhores do que na pátria de origem. Consta que, dessa maneira, os croatas católicos, na Califórnia, distanciaram-se da religião. Mais tarde, voltarei, ainda, a falar sobre esse assunto. Em último lugar, aparecem os espanhóis, ou melhor, os mexicanos, no sudoeste, portanto nos estados de Novo México, Califórnia e Arizona. Entre eles predomina, ainda hoje, o catolicismo colonial, conhecido, por nós, à saciedade, na América do Sul.

    Normalmente, essas conversas não começavam com uma pergunta de minha parte, mas pela curiosidade dos americanos em saber como as coisas andavam no Brasil. Uma pergunta, que se repetia, sempre, era esta: Como se apresenta, entre vós, a questão das vocações sacerdotais e religiosas?

    Para mim, criava-se, sempre, uma situação embaraçosa, porque enfeitar a coisa não passa de mentira, e relatar algo de negativo da própria terra significa falta de educação. Antes de responder, propriamente, à pergunta, costumava fazer uma grande volta, e tentava mostrar as circunstâncias históricas e humanas, responsáveis pela situação pior entre nós do que na América. Torna-se imensamente difícil fazer entender, também ao americano culto, porque em outros países é diferente do que no deles. Ele tem consciência de ser cidadão do país mais rico e mais poderoso da Terra, e não sente nenhuma necessidade de se inteirar das coisas que acontecem em outra parte. Isso resulta em coisas que, para um brasileiro culto, soa como algo espantoso: um padre perguntou qual era, exatamente, a língua falada entre nós, se espanhol ou português. Um outro, congratulou-se, comigo, por termos, finalmente, enxotado Perón.

    Evidentemente, carreguei as cores ao pintar o Sul do Brasil, ao mostrar a abundância das vocações que vêm das colônias alemãs e italianas. Também isto era novo para eles, pois, na América, todo o interior é protestante, de forma que as vocações, com poucas exceções, procedem das cidades. Eu tinha um bom trunfo nas mãos, no momento em que se falava das vocações de irmãos leigos. Um padre contou-me, entristecido, que os irmãos formam uma classe em extinção, nas oito ou nove províncias dos jesuítas americanos. E onde não há irmãos falta alguma coisa na casa, não apenas mãos que prestam os seus serviços em honra de Cristo Rei, que dignificou o trabalho, mas de coirmãos que fazem parte essencial daquilo que Santo Inácio chamou de Companhia de Jesus. E quando me dava vontade de agastar os americanos, contava-lhes o que significavam os irmãos entre nós. Constroem colégios, trabalham na agricultura e criação de gado, garantem, em grande parte, o sustento, são até convocados para, em Roma, trabalharem no Observatório do Papa, em Castel Gandolfo, para o grande Seminário de formação de sacerdotes para a América, e cuidar do três vezes secreto Arquivo do nosso Padre Geral.

    Uma outra pergunta que voltava, regularmente, relacionava-se à expansão do protestantismo americano no Brasil. Na maioria dos casos, topei com rostos incrédulos, quando expressava a minha opinião sobre o assunto, e afirmava que o verdadeiro perigo religioso, no Brasil, vinha do lado do espiritismo, que representa o grau mais profundo de decadência do catolicismo de fachada. Encontra-se nisso, novamente, uma diferença das mais profundas entre os Estados Unidos e a América Latina. Mesmo que o espiritismo tenha criado raízes na América, nunca atinge as massas como um substitutivo da religião. Exatamente como na Europa, mantém-se ao nível de um diletantismo, que se dedica a uma atividade meio científica, meio ocultista. Só os que olham de fora lhe dão o nome de religião.

    Está na hora de deixarmos a Universidade de Georgetown e tomarmos contato com a cidade. Logo na primeira manhã, recebi o convite para uma ida a Mount Vernon. Situa-se a uma distância de hora e meia, rio acima. Lá se encontram a casa e o túmulo de George Washington, o herói americano da Independência e primeiro Presidente da República.

    Essa primeira saída deu-me, imediatamente, uma noção da heterogeneidade de pessoas que se misturam, trazidas pelos programas do intercâmbio cultural americano. Enquanto rezava o breviário, no lugar previamente combinado, quatro jovens atravessaram a rua e pararam a certa distância de mim. Pelo rabo do olho, percebi que a conversa era sobre a minha pessoa. Finalmente, aproximou-se uma delas e formulou a pergunta propriamente inútil, visto o meu breviário e, apesar do meu chapéu presbiteriano, se eu era um sacerdote católico. Pelo sotaque percebi, logo, que era uma brasileira. A alegria foi grande quando respondi em português. As pobres criaturas encontravam-se há apenas algumas semanas em Washington, onde deveriam absorver um curso na área das ciências pedagógicas e os conhecimentos da língua eram, de fato, pobres. Para o brasileiro, o inglês representa um desafio bem mais duro do que para o alemão. Moravam de duas em duas, num pequeno quarto e pagavam, por isto, nove dólares por semana. Para as refeições, eram obrigadas a procurar um lugar fora. Assistiam às preleções, com a ajuda de um intérprete. Ainda hoje não sou capaz de imaginar o que de bom possa resultar de uma situação dessas.

    A primeira vinha de Campinas, em São Paulo, a outra de Recife, a terceira de Minas Gerais, a quarta, se não me engano, do Rio. O resultado do encontro foi que as quatro não me largaram toda a manhã. Especialmente a de Campinas, reclamava que em toda Washington não se encontrava um único sacerdote em condições de ouvir uma confissão em português. A afirmação, porém, não combinava bem, porque mais tarde ouvi do escritor riograndense⁵⁷, que mora em Washington, que sua filha falava melhor o inglês do que o português e, em breve, se casaria com um americano⁵⁸, mas só se confessava em português, e com um franciscano alemão, que estivera muitos anos no Brasil. É muito salutar que essas pessoas percebam o quão intocável é o santuário da língua materna, especialmente na oração ao Deus três vezes Santo.

    E agora, os demais parceiros de viagem. Na minha frente, sentava-se um advogado das Filipinas, que conversava em espanhol com um casal da Guatemala. A senhora, distinta, exibia um autêntico rosto moreno, de índia, e quero chamar-me Moisés se não se tratava de sangue Asteca ou Maia, cem por cento. Mais tarde, o filipino veio ter comigo, desculpando-se, em primeiro lugar, de seu espanhol deficiente. Seus pais eram, ainda, remanescentes dos tempos dos espanhóis; ele, entretanto, crescera sob a ocupação americana. As palavras desse especialista denotavam um grande respeito pela cosmovisão católica da Espanha e de Portugal e, nesse particular, nos entendemos perfeitamente. Os brasileiros que elegeram os portugueses como alvos de piadas mais ou menos inteligentes não sabem o que o nosso país deve àquele paizinho.

    Havia, também, um indivíduo de grande estatura, cabelo negro e nariz aquilino, sugerindo audácia, imediatamente identificável como europeu. Apresentou-se como um médico sérvio. Tinha vontade de obter dele alguma novidade, mas seu inglês não dava para tanto e, provavelmente, recusava-se a falar alemão.

    Um outro era jornalista alemão. Queixava-se do tédio mortal que experimentava, pois viera para a América para conhecer o país todo. Já fazia um mês que o obrigavam a migrar de um monumento a outro, de um cemitério a outro e de um campo de batalha a outro.

    Encontrava-se, também, uma jovem

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