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Todo Teu: Versão Integral (Inclui Episódio 8: Kheiron)
Todo Teu: Versão Integral (Inclui Episódio 8: Kheiron)
Todo Teu: Versão Integral (Inclui Episódio 8: Kheiron)
E-book1.186 páginas17 horas

Todo Teu: Versão Integral (Inclui Episódio 8: Kheiron)

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Sobre este e-book

Nos feriados de junho, no Meco, uma pacata aldeia balnear da costa portuguesa, surge inesperadamente Duarte, um advogado lisboeta elegante, que rapidamente se deixa cativar pelo jovem Nuno, um rapaz modesto e inocente, que nasceu e viveu sempre na região, um verdadeiro "cavalo selvagem" que Duarte quer domar e submeter, abrindo-lhe caminhos para novos mundos e novos horizontes de amor e prazer.
No Kheiron, um clube exclusivo situado num palacete dos arredores de Lisboa, Duarte parece conhecer todos, tanto dominadores como escravos. Nuno, que acompanha Duarte pela primeira vez ao clube, está nervosíssimo, porque sabe que está a ser avaliado, tanto pelo Duarte, o seu mestre, como pelos outros frequentadores...
Versão integral da série best-seller Todo Teu, de Nuno Oskar, incluindo o inédito episódio 8, Kheiron, não aconselhável a corações fracos nem a garotos rebeldes que precisam de castigos!

IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de ago. de 2020
ISBN9781005964542
Todo Teu: Versão Integral (Inclui Episódio 8: Kheiron)
Autor

Nuno Oskar

Nuno Oskar é um jovem autor português, amante da escrita, do cinema, da música, do sol, da praia e do amor, que gosta de fugir à ortodoxia monótona da existência real mantendo uma vida dupla de paixões e aventuras no mundo virtual.​Tem vindo a publicar com êxito a série Todo Teu.

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    5/5
    Merecia virar filme!!!!!!
    Maravilha de se ler até cair a vista!!!!

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Todo Teu - Nuno Oskar

TODO TEU

Versão integral

Incluindo o episódio 8 (inédito)

Kheiron

Nuno Oskar

INDEX ebooks

2020

Ficha técnica

Título: Todo Teu: versão integral (incluindo o episódio 8, inédito: Kheiron)

Autor: Nuno Oskar

Capa: adaptação da foto Novak2 de Milos Milosevic, aqui (CC BY 2.0: Attribution 2.0 Generic).

Revisão e notas: João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas

Data de publicação: 17 de agosto de 2020

Edição 1.00 de 17 de agosto de 2020

Copyright © João Máximo e Luís Chainho, 2020

Todos os direitos reservados.

Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, eletrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio dos editores, exceto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos.

INDEX ebooks

www.indexebooks.com

indexebooks.com@gmail.com

www.facebook.com/indexebooks

Lisboa, Portugal

ISBN: 978-1005964542 (ebook)

ASIN: B08CNJYRNX (kindle)

GGKEY: 7WN94RTNN16 (google)

Sábado

Episódio 1 da série Todo Teu

1

Acordei assustado, a transpirar. Não conseguia dormir e não conseguia deixar de pensar no meu primo. Tudo tinha começado numa manhã de junho, fazia agora quatro anos. Eu era apenas um miúdo e estava a descobrir a vida. O Fábio, na escola, já me tinha dito que era normal, que significava que já éramos homens e os homens faziam-no. Eu não percebia muito bem, mas experimentei. Era bom tocar-me, eram umas cócegas boas, que arrepiavam. O Fábio também dizia que era normal ficarmos a tremer, cansados. Agora já compreendia o que ele queria dizer, aquele formigueiro enquanto me roçava nos lençóis, abraçado à almofada, e os espasmos que depois me percorriam o corpo.

Nessa manhã, há quatro anos, quando acabou, fiquei quieto, a respirar depressa, como se estivesse a recuperar de uma corrida de vinte minutos. Fechei os olhos e sorri, eu adorava aquilo, agora fazia-o quase todos os dias. Foi então que tudo se precipitou.

– Tu estiveste a fazer o que eu acho que estiveste?

Senti-me a estremecer com o susto e abri os olhos, em pânico. O meu primo estava de pé, à porta do quarto, a olhar para mim com um sorriso de gozo. Senti um enorme calor na cara. O que é que ele estava a fazer ali? Vi-o curvar-se sobre a cama e agarrar os lençóis.

– Não! Pedro! – exclamei em pânico.

Tentei segurar a roupa, mas não fui a tempo, ele puxou-a para trás, destapando-me. Instintivamente, encolhi-me sobre mim próprio, tentando tapar-me, mas não consegui, estava sem as cuecas e ele viu tudo, percebeu bem o que tinha acontecido.

– Vieste-te! – aquilo era uma afirmação, não uma pergunta.

Pensei levar as mãos à cara, para me esconder, não sabia porque estava a sentir tanta vergonha, mas não podia fazê-lo, para não me expor, e enterrei a cabeça na almofada para não o ver e para ele não me ver a mim. Preferia asfixiar a encará-lo.

– Vieste-te, sim! – percebi que se ria e adivinhei que estava a olhar para a mancha molhada nos lençóis.

– Vai-te embora, Pedro! – gritei, com a voz abafada pela almofada, morrendo de vergonha, pressionando o corpo com toda a força contra a cama, o que me valeu uma valente palmada no traseiro, que estalou pelo quarto e me fez dar um pulo na cama.

– Não sejas parvo, deixa-me ver! – a sua voz endureceu.

Tentou tirar-me as mãos da frente do sexo, mas eu continuei a resistir. Ele ria-se, mas não desistiu.

– Chega, Nuno. Para já com essa merda! Deixa-me ver!

Eu ainda era um rapaz de treze anos, ele já era um homem de vinte e dois. Não consegui resistir. Agarrou-me as mãos, abriu-me as pernas, virou-me e ficou a olhar, parado. Não queria que aquilo estivesse a acontecer, não queria ter sido apanhado. Fechei os olhos com força. Mas os segundos passaram e o seu silêncio avivou-me a curiosidade, que se sobrepôs à vergonha. Espreitei para ver o que fazia, e esse movimento como que o despertou.

– Já fazes isto há muito tempo?

– Não – murmurei, sentindo a cara a ferver.

– Agora já és um homem, primito! – a sua expressão era um misto de divertimento e admiração.

Adorei ouvir aquilo, a vergonha e o medo atenuaram-se, ele parecia orgulhoso de mim. O meu corpo descontraiu-se, foi um alívio enorme, tinha pensado que fosse gozar-me. Geralmente, ele acabava sempre por troçar de mim.

– Estou orgulhoso de ti – confirmou.

Esbocei um sorriso tímido, que se desvaneceu instantaneamente quando ele passou o dedo pela minha barriga molhada e depois o levou à boca.

– O que é que estás a fazer? – perguntei-lhe, escancarando os olhos de espanto.

Ele sorriu ainda mais.

– Tens de limpar isto – disse, pegando nas minhas cuecas e passando-as na parte húmida dos lençóis. – Ninguém pode saber, ouviste? Muito menos a avó!

2

Saltei da cama e corri para a janela, desesperado por ar fresco.

O que é que eu vou fazer agora, sozinho?

Era sempre a mesma pergunta. E as emoções… a forma como ele começou a interessar-se mais por mim depois de me apanhar, dando-me uma atenção e tratando-me como nunca me tratara até então; como passou a querer estar mais comigo, quando até aí não tivera paciência e se aborrecia quando eu o procurava; como começou a levar-me com ele para jogar à bola, para a praia, para andar de mota às escondidas da minha avó.

Gostei muito da primeira vez em que ele me tocou a sério… foi o meu presente dos catorze anos. A partir de então foi um evoluir natural, lento, mas constante. E eu gostava de lhe dar prazer e esforçava-me para que ele o tivesse, para o ouvir dizer que eu aprendia facilmente, para receber uma palmada amigável, para o deixar bem-disposto e conseguir que me levasse ao bar, à noite, para dançar. Odiava quando ele me deixava em casa, sozinho com os meus avós, como castigo por não o ter satisfeito, mas era raro.

Agora acabara tudo, o Pedro casara-se e não me queria mais, não daquela maneira. Agora tinha uma mulher, queria ser-lhe fiel, queria dedicar-se a ela, e eu estava a mais. Depois de quatro anos em que fez tudo o que quis e ficava furioso se eu lhe dissesse que não, em que não me deixava sair com ninguém e andava atrás de mim, a controlar-me, em que ameaçava nunca mais tocar-me se eu dissesse a alguém, em que me procurava para ter prazer… e para me dar… agora não me queria mais.

Ele sempre teve namoradas, podia fazer o que queria, eu é que não. A certa altura comecei a sentir ciúmes, mas ele não cedeu; ele era o mais velho, era quem mandava, eu era o puto mais novo, fazia o que ele queria e pronto… sem discussão. Eu ficava a ferver de fúria, ou ficava triste, mas acabava sempre por lhe perdoar, feliz por ele ter voltado, por me querer novamente.

As notícias na televisão falam muitas vezes de familiares ou amigos próximos que abusam de menores. A certa altura percebi que as pessoas poderiam considerar aqueles comportamentos incorretos, daí não se poder contar a ninguém, daí todo o stresse quando estávamos juntos e o ter de fazer tudo a correr e às escondidas. Para mim não era incorreto, eu não me importava, para mim não era abuso; abuso era ele ter namoradas, isso sim, deixando-me sozinho.

E ele era simpático, era protetor, preocupava-se comigo, mantinha-me debaixo de olho para que não me acontecesse nada. Dizia-me que eu era especial, que gostava muito de mim e que tinha muito orgulho em mim. Mas por outro lado, era bruto quando eu tentava relacionar-me com outras pessoas. Foi muito difícil quando entrei para a equipa de futebol e comecei a jogar a sério. Ele ficava furioso com os abraços que os meus colegas me davam quando eu fazia uma boa defesa ou quando ganhávamos um jogo; e cronometrava o tempo que eu demorava no duche, desconfiado; e se me convidavam para sair? Era um inferno, ele não gostava de me ver com ninguém, fossem rapazes ou raparigas.

E agora casara-se e deixara-me sozinho, quase sem amigos…

3

Fresco!

Sair do quarto foi um alívio, o meu amigo Pimentel precisava desesperadamente de investir num ar condicionado, casa alugada ou não. Toda a gente gosta de frequentar uma sauna, mas é impossível dormir numa. Não bastavam já as coisas que me preocupavam ao ponto de me dificultar o sono, a casa do meu amigo ser praticamente inabitável foi o golpe de misericórdia no meu humor.

– Bom dia, Duarte, dormiste bem?

– Não – respondi ao Ricardo, o namorado do Pimentel, concentrando-me na máquina do café sem sequer olhar para ele. – O calor é insuportável.

– Deixa-me fazer isso… – disse suavemente. – Eu sirvo-te…

Tirou-me a pastilha de café da mão ao ver que eu não conseguia descobrir a forma de a encaixar na máquina.

– Ótimo, obrigado.

Afastei-me rapidamente, para me instalar à mesa da cozinha, aguardando. Gosto de ser servido, estou habituado a sê-lo, mas não gostei da forma como ele me tocou ao pegar na pastilha do café, não gostei da forma como apoiou a mão nas minhas costas, num gesto de intimidade, e principalmente não gostei que me aparecesse à frente em cuecas justíssimas, ainda por cima, cor-de-rosa. O Ricardo é um rapaz interessante, tronco bem moldado, as pernas cobertas de pelos louros, exatamente como eu gosto, mas irrita-me profundamente que me tente seduzir quando está numa relação com um dos meus melhores amigos. Eu não toco na propriedade dos outros, em geral, e não toco na dos meus amigos, em particular. Devia ter escolhido uma das outras opções para o fim de semana, foi um erro, não devia ter vindo para o Meco.

– Queres que te faça uma torrada?

Caramba!

– Não é preciso, Ricardo, obrigado, vou dar uma corrida pelo pinhal – anunciei, aborrecido, a situação estava a tornar-se constrangedora, até para mim.

– Queres companhia?

O sorriso era sedutor, sim, ele sabe que é um rapaz atraente, mas sempre me irritaram as bichas oferecidas. Não há paciência, fugi de Lisboa para ter sossego e agora tinha o namorado do meu amigo a…

– Quero estar sozinho – anunciei de uma forma perfeitamente clara. – Se queres ser útil acorda o Pimentel… precisas que te sugira como?

O Ricardo estremeceu, apesar de eu ter sido gentil com ele; é certo que não fui simpático, mas também não fui muito desagradável… não pelos meus padrões, pelo menos. Amuou, respondeu-me com um seco não, fazendo o papel da vítima ofendida. Saí de casa com um sorriso nos lábios, imaginando a quantidade de nomes que ele me estaria a chamar, furioso, sentindo-se desprezado no seu brio de galã sedutor. Mas eu não tenho paciência para homens oferecidos, nem para sensualidade básica, nem para… no entanto ele era capaz de ficar bem, algemado, pendurado no teto da minha sala de jogos, balouçando enquanto eu lhe arrancava aqueles pelos louros um a um… só que não estou com pachorra para treinar esta criatura, principalmente quando ando preocupado com o processo do Quintilhas, principalmente quando a mulher dele contratou um bom advogado que, raios o partam, me está a dar luta. Gosto que me deem luta mas é na cama, não é no tribunal. E mesmo na cama…

4

Impaciente, desisti de encontrar os boxers e fui nu para a casa de banho, o calor no quarto era insuportável e, de qualquer forma, estava sozinho em casa. Naquele momento sentia-me na merda, nem sei explicar, sentia-me doente. O Pedro era tudo para mim, era o centro do meu mundo. E agora desaparecera, pouco se importando por deixar o meu mundo fora do eixo. Tão ciumento, tão possessivo, e depois acabava assim, ia casar e não me queria mais. Levou-me para casa a seguir à despedida de solteiro, usou-me uma vez mais, e foi então que me disse que seria a última, que estava tudo acabado entre nós. No sábado, no dia do casamento, quase me ignorou o tempo todo, mal me falou. Poderia ter-me convidado para ser padrinho… não que eu aprovasse o casamento dele com aquela mulher, mas seria pelo nosso passado, pela nossa relação. Era tudo tão confuso, eu tinha a cabeça a patinar, continuava sem conseguir compreender…

Olhei-me no espelho, tinha os olhos inchados. Fechei-os e vi o Pedro a abotoar-se para se ir embora. Era um pensamento recorrente, todos os dias, durante toda a primeira semana. Ele não me queria mais e eu estava entregue a mim próprio. A sua imagem a deixar-me naquela última noite assombrava-me.

– Tens dezassete anos, puto, já sabes bem o que tens a fazer. Vais ver que arranjas miúdas com facilidade, elas gostam de ti que eu sei. E muitos rapazes também, se preferires…

Fez um sorriso de gozo e eu percebi que ele já entendera que… Detestei ouvir aquilo, nesse momento odiei-o, mas não lho consegui dizer, apenas deixei escapar um lamento, entre as lágrimas que teimavam em irromper:

– Porque é que não me queres mais? O que foi que eu fiz?

Foi a primeira vez que o pensei e a única vez que o disse.

– Esquece, puto, já te ensinei tudo. Se gostas de homens, já sabes como lhes dar prazer, agora é contigo.

Abri a torneira e lavei a cara com água fria, tinha de recuperar, não queria que me vissem de olhos vermelhos. O Pedro tinha abusado de mim, mas eu gostava dele e, pronto, eu gosto de sexo. Ele devia estar certo, estava na altura de seguir em frente, eu sabia-o, mas custava tanto… A verdade é que eu não conseguia deixar de pensar nele. Sentia a sua falta, sentia falta de sexo, sentia-me a enlouquecer. Enojava-me imaginá-lo com ela, a ter prazer com ela… mas ela é que era bonita, inteligente, carinhosa e divertida, enquanto eu… e ele gostava era de mulheres, por isso eu… eu era descartável! Ele nem hesitou. Odiava-o por isso, odiava-o por me ter usado quando não tinha mais ninguém, por ter abusado de mim para ter prazer… e odiava-o ainda mais por saber que se ele entrasse agora por aquela porta, eu abraçá-lo-ia, feliz, grato por ele ter voltado e por me querer novamente.

Os meus avós já tinham saído para tratar das terras. Pensei visitar a minha tia, mas não voltara a fazê-lo desde o casamento, não queria vê-la, não queria ouvi-la a falar do seu filho querido: porque ele tinha ido em lua-de-mel para o Brasil, porque a mulher era um anjo, porque não sei quê… Senti as lágrimas nos olhos outra vez, mas cerrei os dentes e consegui reprimi-las. Já estava a ficar melhor, já me conseguia controlar, já não me desmanchava a chorar de cada vez que pensava nele, mas, mesmo assim, a noite tinha sido muito agitada… o casalinho estava quase a chegar, deviam estar a apanhar o avião agora…

Já chega, porra!

O que é que eu podia fazer para me manter ocupado?

Estudar? – Revirei os olhos, enjoado. – Pois, o que mais me apetece agora é estudar.

Podia fazer o almoço para os meus avós, o meu avô delirava quando via o neto aplicar o que aprendera na escola, comia sempre com gosto e fazia imensos elogios. Estava satisfeito por me ver a estudar outra vez, apesar de ser só um centro de formação profissional e de eu estar apenas a tirar um curso de cozinha e pastelaria. Mas claro que não me apetecia nada disso…

Apeteceu-me dar um chuto na sanita.

Será que o Chico já está levantado? – Perguntei-me.

Ao regressar ao quarto, olhei para o despertador.

7h23.

Era muito pouco provável que ele já estivesse levantado ou que se levantasse entretanto, tinha um namorado novo e, pelo que me contara, costumavam deitar-se cedo, mas adormeciam tarde…

Vou correr!

A ideia ocorreu-me de repente. Era chique correr, agora era moda em todo o lado, até no Meco. Era bem melhor do que dar pontapés nas sanitas ou murros nas paredes. Poderia ir a correr até à praia, só esperava aguentar. Iria transpirar e estafar-me, o que só me faria bem. Já há algum tempo que não fazia exercício a sério, há quase um ano, era só bicicleta para me deslocar na aldeia e, ultimamente, nem sequer sexo… Andava irritadiço, impaciente, mal-humorado, já dera comigo a cerrar os dentes para não responder mal aos meus avós… e eles não mereciam, tinha de conseguir controlar-me.

5

Vesti uns calções e uma t-shirt, calcei uns ténis e arranquei a correr.

Nem era só pelo exercício, para me cansar, era também para aliviar a mente e para me distrair com outras coisas. Tinha de parar de pensar no Pedro, tinha de parar de pensar na treta da minha vida e, decididamente, tinha de parar de chorar por tudo e por nada, de me esconder dos meus avós. Quem puxa pelo corpo não tem tempo nem energia para puxar pela cabeça.

Assim que saltei o muro para a estrada, acelerei o passo e concentrei-me na respiração.

Sabia bem sentir o fresco da manhã no corpo. Em junho, as ervas secas cobriam os campos de um castanho claro, mas ainda havia ilhas de verde, protegidas do calor do sol pelas copas dos pinheiros isolados. Fui seguindo pelas rodeiras dos carros que passavam por ali no verão, para se acercarem o mais possível das praias mais isoladas. Como sempre, quando entrei no pinhal o odor da resina envolveu-me e ouvia-se o vento agitando as ramadas altas dos pinheiros, parecendo murmurar um cumprimento de boas vindas. Era o meu pinhal, um sítio misterioso, com as alamedas estreitas, cruzadas pelas raízes que rompiam da terra e forradas por um tapete de caruma que abafava o ruído dos meus passos.

Apesar da beleza da paisagem, os meus pensamentos retornavam ao Pedro e, para não continuar obcecado com ele, tentei concentrar-me no único amigo que tinha, o único amigo que ele me deixara ter.

O Chico é meu amigo desde criança. É de Alfarim, eu sou do Meco, mas é um puto da aldeia, como eu. Nunca andámos na mesma escola, mas o pai dele ajudava os meus avós nas terras e nós brincávamos enquanto eles trabalhavam. Sempre fomos amigos, desde pequeninos, e quando entrou para a equipa de futebol, eu quis ir com ele. É mais velho que eu um ano e tal, já vai fazer vinte, enquanto eu ainda vou fazer dezoito, mas é um bocadinho lerdo e eu sempre o adorei, também por isso. Além do mais, o que lhe falta em inteligência tem de sobra em bom feitio, é mesmo boa pessoa e sempre o defendi quando gozavam com ele. É um bom tipo e eu gosto dele, gosto mesmo.

É gay como eu, descobrimos isso há algum tempo, e a primeira vez que esteve com um gajo foi comigo, há dois anos, tinha eu quinze. Na praia por vezes acontecem coisas… com o calor, os corpos expostos… primeiro veio a curiosidade, a inevitável comparação, mas não ficámos por aí e, se já éramos amigos antes, melhor ficámos depois de perceber que tínhamos mais uma coisa em comum.

O meu primo ficou furioso quando descobriu, furioso mesmo. Acusou-me de o trair, de revelar o nosso segredo, de… mas estava errado. Primeiro, porque eu nunca disse a ninguém que ele e eu… na verdade, o Chico ficou a saber justamente por causa do escândalo que o meu primo fez. E depois, não tinha razão para se queixar, porque nessa altura ele andava com uma namorada e não me ligava nada, não me dava atenção. Que culpa tinha eu? Eu estava a precisar de sexo e as coisas com o Chico proporcionaram-se, não me arrependi nem um minuto. Foi a única circunstância em que enfrentei o Pedro: ele proibiu-me de voltar a ver o meu amigo mas eu não aceitei, não aceitei mesmo! Foi a única vez em que lhe desobedeci frontalmente, apesar da reprimenda. Não voltámos a fazer nada, o meu primo não queria e eu acatei, mas continuámos amigos e nunca abdicarei dele. O Chico é o Chico, sempre foi meu amigo e está acima de ciúmes, mesmo dos do Pedro.

Agora o Chico parecia apaixonado, tinha um namorado a sério, o Álvaro, um tipo de Santana. Antes disso tinha tido casos com vários homens, geralmente betinhos de Lisboa que arrendavam casa de fim de semana aqui no Meco. A maioria dos seus casos foi com gays, mas sei que até teve algumas experiências com homens casados. Isso não é para mim, eu gosto de coisas sérias e duradouras, gosto de segurança. Claro que gosto de sexo, muito, mas não a esse ponto. Preciso de saber que posso contar com as pessoas e acho que não aguentava imaginar que o gajo, com quem eu tinha acabado de estar, ia para casa, para a cama, encostar-se hipocritamente à mulher…

Certo! Eu a pensar estas coisas e o meu homem a regressar da lua-de-mel com a mulher!

6

A certa altura comecei a ouvir o som cavo da rebentação das ondas na praia e a sentir o cheiro salgado da maresia. O caminho, que até ali era de terra batida, por vezes coberta por um manto de caruma, era agora de areia solta, o que me dificultava um pouco a corrida. Voltei a lembrar-me do Pedro, nós por ali a apanhar pinhas para a lareira, ou então a conversar, a fazer amor… bom, eu a fazer amor, ele a usar-me, são coisas diferentes…

Wow! Quem é este?

Vinha um tipo a correr na minha direção. Um tipo mais velho, devia ter a idade do Pedro, vinte e muitos, a caminho dos trinta. Podia ser já um bocado cota, mas era giro, muito giro mesmo. E eu até gosto de cotas, o Pedro tinha quase trinta anos. Não consegui evitar que os meus olhos percorressem o seu corpo de alto a baixo…

Dasss, que ele é mesmo giro!

E tinha pernas fortes… e musculadas…

Vinha de calções curtos, cinzentos, que lhe ficavam a matar; a t-shirt justa, cinza, de um daqueles centros de ginástica finos de Lisboa; ténis de marca, se eu tivesse dinheiro comprava uns assim; fones nos ouvidos… devia ter um ipod ou ipad ou iphone, ou uma treta dessas; o sacana era podre de bom! Senti uma fraqueza nas pernas, mas cerrei os dentes com força, não queria dar parte de fraco…

Quis desviar os olhos, mas não consegui. Ele foi-se aproximando e quanto mais se aproximava, mais deslumbrante me parecia… geralmente acontece o contrário, não é? Muito giros ao longe e depois, quando se aproximam e os conseguimos ver bem, metem medo ao susto.

É tão lindo que até dá nojo.

O rosto fino, as sobrancelhas negras, espessas mas bem cuidadas, o nariz perfeito, a boca deliciosa, uma covinha no queixo. Qualquer gay ficaria enervado ao ver um homem assim a correr na sua direção, o meu coração disparou a toda a velocidade e o meu corpo estremeceu… o mais certo era ser de excitação…

O tipo olhou-me e percebi que me analisava. Adorei a sua expressão, seria interesse? E sorriu-me quando passou por mim, acenando-me com a cabeça num cumprimento que mal se notou. Eu teria visto bem? Que sorriso… e não só me sorriu, como me piscou o olho. Seria só um cumprimento? O meu coração acelerou ainda mais. Olhei para trás e tive esperança… mas ele não fez o mesmo, continuou a correr calmamente, com grande estilo, confiante, como se fosse o dono do mundo. Parecia flutuar de um pé para o outro, a um ritmo constante, leve, cheio de pinta. Tornei a olhar para a frente mas… foi tarde demais, tropecei numa trampa qualquer que estava no caminho e espalhei-me ao comprido…

Porra!

A minha primeira preocupação não foi levantar-me, foi olhar para saber se o gajo me tinha visto cair. Não viu, claro, ele nem se tinha voltado para trás. Levantei-me desconsolado e fiz um balanço dos estragos: joelhos vermelhos, sujos, mas sem estarem esfolados, mãos arranhadas, mas sem sangue, poderia ter sido pior. Sacudi o pó e recomecei a correr, ainda a coxear um pouco, mas logo depois retomei o ritmo constante. Estava vivo e de boa saúde. O cromo não me viu cair, nem me ouviu porque estava com a música nos ouvidos, fui poupado a essa humilhação. Se ele tivesse olhado, eu teria morrido de vergonha; como não olhou, senti… nem sei, despeito por nem sequer ter merecido um pouco de atenção.

7

O pinhal era agradável, fresco, e isso era muito bom para quem passou a noite a transpirar dentro de um forno. A casa do Pimentel era o reflexo da ganância de quem transforma qualquer barracão, cabana, casota, curral de porcos ou sei lá mais o quê, numa pseudomoradia que se aluga para fazer dinheiro à custa de quem anseia por um sítio para passar uns dias na praia.

É tramado! – pensei, lembrando-me que o Pimentel até tem um bom ordenado, porque trabalha que nem um cão numa dessas clínicas de luxo privadas, onde as tias da Linha se vão encher de botox, e ainda faz horas extra num hospital. Simplesmente tem um fetiche por garotos e não descansa enquanto não gasta o que tem e o que não tem para lhes fazer as vontades todas, acabando por de se privar de algumas coisas fundamentais… como arrendar uma casa de praia decente para receber os amigos, em vez destas quatro paredes virtualmente inabitáveis.

Devia ter trazido o jipe, teria sido bem melhor. Mas por outro lado, o meu velhinho Land Rover já tinha sido avaliado e não queria correr o risco de ter de fazer reparações antes de o entregar, quando chegasse o Evoque. É verdade que o Pimentel me tinha avisado que o Meco era diferente, mas nunca acreditei que fosse tão… primário. Estava à espera que fosse mais uma povoação costeira turística, com prédios de vários andares, avenidas marginais, onde fica bem desfilar num descapotável em frente das esplanadas. Em vez disso deparo com uma aldeiazinha de casas baixas, terrenos descampados, explorações agrícolas, pinhais e… foi uma surpresa, sim!

Estas reflexões rurais foram interrompidas subitamente pelo FitRunner, a aplicação com GPS do meu iPhone que uso para controlar a corrida, anunciando que chegara a meio do percurso planeado, era altura de regressar.

A minha mente regressou ao Tribunal e ao processo judicial que tanto me preocupava. Tinha de inventar formas de dissipar o património do meu cliente, para que, quando o divórcio saísse, o Quintilhas tivesse pouco mais do que dívidas para pagar. O meu rival podia ser bom, mas iria encontrar o cofre vazio, e a mulher do Quintilhas, que seguramente casara por dinheiro, ficaria com pouco mais do que tinha quando pronunciou o sim. Aliás, iria sair a perder, porque já se habituara à boa vida e agora teria de trabalhar como as pessoas normais. Estes pensamentos, e a adrenalina da corrida, o fresco do pinhal e a boa música nos phones, descontraíram-me e devolveram-me a boa disposição.

Este pinhal deve fazer parte do circuito de jogging da Aldeia do Meco… – pensei, divertido com a ideia, ao avistar um vulto a correr na minha direção.

Fiquei um pouco desapontado ao verificar que era apenas um garoto.

É gay! – constatei assim que nos aproximámos o suficiente para vê-lo corado e notar os olhos arregalados, a percorrerem-me o corpo de alto a baixo…

Devia ser um miúdo local porque a t-shirt de alças era pirosa, nenhum gay com o mínimo de bom gosto usa t-shirts de alças. Tinha um tronco fino, mas parecia forte; notei igualmente os bíceps adequadamente moldados, umas pernas decentemente fortes e grossas e cobertas por uma deliciosa camada de pelos de aspeto sedoso… fisicamente o rapaz era perfeitamente aceitável. E era bonitinho, sim: cabelo curto, meio despenteado, parecendo ter acabado de se levantar para correr; umas sobrancelhas espessas, como eu gosto, e uns olhos ligeiramente rasgados, agradáveis, apesar de vermelhos… devia ter saído à noite e dormido pouco… e uma boca deliciosa, com uns lábios perfeitos para morder. A barbicha por rapar, que já devia ter pelo menos dois dias, dava-lhe um ar de rufia que me agradou bastante. Eu gosto de rufias, são os que se contorcem mais quando estão algemados, que resistem, furiosos, quando os amarro. A expressão do rapaz, quando nos cruzámos e lhe pisquei o olho, num cumprimento, deu-me a certeza de que iria olhar para trás, e parar se eu fizesse o mesmo.

Mas sendo certo que gostei de perceber que estaria disponível para mim, não olhei para trás, nem abrandei o passo, eu estava no Meco para descansar, para gozar a praia, o sol e o meu amigo, não estava para perder tempo em engates que não conduziriam a lado nenhum, e não tenho pachorra para desmamar crianças. Quando chegasse a Lisboa bastar-me-ia fazer uma chamada telefónica para ter um homem a sério na minha cama, pronto para se deixar… usar.

8

Sentei-me na minha rocha, mesmo à beira da falésia, com a praia a meus pés e a imensidão do oceano à minha frente. Tal como eu, o mar não estava muito bem-disposto, estava encrespado e rebentava violenta e estrondosamente na areia. Por vezes, sentia uns salpicos na cara, que voavam desde lá de baixo, arrastados pela brisa. Adorava estar ali, principalmente com o mar assim, aquele era um dos meus sítios favoritos.

Estávamos no início de junho e já havia algumas pessoas a chegar à praia, lá ao longe. Não havia nuvens, o sol estava descoberto, mas corria uma aragem constante. Lembrei-me do meu avô dizer que este estava a ser o ano mais frio dos últimos duzentos anos, o bom tempo estava atrasado. Tinham passado a notícia na televisão e ele estava preocupado com as terras e a produção. O clima estava descontrolado, parecia que as estações se atrasavam cada vez mais. Devia ser o aquecimento global… as temperaturas anormais e as estações irregulares, tínhamos falado disso na escola.

Enfim, pelo menos o Chico iria, certamente, ter mais trabalho; com o tempo mau, os jardins precisam de mais cuidados. Tinha tirado o curso de jardinagem no centro de formação onde eu estudava, aliás, fora ele quem me convencera a voltar a estudar. Agora cuidava dos jardins dos lisboetas, não chegava para enriquecer, mas dava para sobreviver. Era por isso que conhecia todos os gays que tinham casa de fim de semana no Meco, era quase o jardineiro oficial da comunidade gay da região.

Ainda sorria com a ideia quando senti alguém a passar atrás de mim e pelo canto do olho vi um vulto. Não era normal andar gente a passear por ali, no alto da falésia, àquela hora da manhã. Era um tipo bem mais velho, já devia ter mais de quarenta anos. Eu até gosto de gajos mais velhos, mas não tanto. E ainda por cima era gordo. Virei-lhe as costas e fixei o mar.

Se tens o azar de me dizer alguma coisa, meu! Ai se dizes alguma…

Felizmente não o fez.

Eu sabia bem que aquela era uma zona de engates de verão. Os arbustos baixos, de giestas e camarinhas, entre o pinhal e a falésia, permitiam avistar os tipos que andavam por ali a passear. Sabia bem que corria o risco de uma cena daquelas me acontecer… um gajo meter-se comigo. O Pedro passava por aqui de vez em quando. Eu tinha ciúmes, nunca aceitei bem esse comportamento: tinha-me a mim, tinha namoradas, qual a necessidade de ter encontros ocasionais com outros homens em sítios como este? Ele dizia que ia apenas ver, mas por favor… fazia-me cenas quando me via com alguém e depois vinha para aqui sozinho? Sempre me irritaram as pessoas que me quiseram fazer passar por estúpido!  

Sacudi a cabeça para afastar aqueles pensamentos. O homem já se tinha ido embora, tinha desaparecido. Menos mal. Devia estar mesmo desesperado para andar por ali tão cedo. Se calhar tinha estado com o bonzão. Seria possível? Vi-o reaparecer a alguma distância e, quando espreitei melhor, nem queria acreditar.

Ele está a bater uma!

Levantei-me imediatamente e arranquei a correr, de volta a casa. Era impossível descer mais baixo. Ter um gajo daqueles a olhar para mim e a masturbar-se? Ninguém merecia uma coisa assim. Primeiro, um gajo podre de bom que me ignora, depois, um trambolho daqueles a… mas estaria à espera que eu fosse ter com ele? Não percebia que não tinha qualquer hipótese comigo, tal como eu não tinha com o corredor bonzão? Por falar nele, seria gay? Com o aspeto que tinha, devia estar mais que casado. Estaria a passar o fim de semana? Se estivesse podia ser que o voltasse a encontrar, talvez à noite. Ele tinha olhado para mim e até acho que me piscou o olho…

9

– Caramba, Pimentel, veste qualquer coisa! – berrei assim que entrei em casa e vi o meu amigo a sair do quarto, nu.

Eu não sou homem que se atrapalhe com cenas de nudez, mas via-se perfeitamente que tinham acabado de fazer sexo e a ereção do Pimentel, mesmo que já em quarto minguante, intimida qualquer um… menos o Ricardo, aparentemente.

Desapareci no quarto para trocar de roupa, ao som da gargalhada do meu amigo, consciente de que a minha disposição sofrera um abalo do qual iria demorar a recuperar. Não sou tímido, nem preconceituoso, nem moralista, nem limitado sexualmente, muito pelo contrário, sou o perfeito oposto disso tudo, no entanto, detesto assistir a cenas destas quando não posso participar. Já me estava a convencer de que a ideia deles era justamente essa, motivar-me a participar. Sabia que o Pimentel até gostava e, pelo comportamento do Ricardo comigo… simplesmente não tinha interesse nenhum, detesto envolver-me com amigos porque as coisas acabam quase sempre numa colossal trapalhada.

Portanto não estava propriamente eufórico quando finalmente saímos para tomar café numa das esplanadas de Alfarim.

– Queres ir à frente? – perguntou-me o Ricardo, indicando-me a porta da frente do carro, no que foi um esforço simpático para me agradar. Felizmente, nem precisei de responder-lhe, bastou-me olhá-lo por cima dos óculos para ele perceber que não me passaria pela cabeça qualquer outra coisa que não fosse ir à frente, que ele poderia ser o namorado do meu amigo, mas que o seu lugar seria sempre no banco de trás. Ele sentou-se sem dizer mais nada, afinal o estereótipo sobre a burrice dos louros não era universal. Mas a minha boa disposição durou poucos minutos: o Pimentel insistia em arranjar-me um homem, há meses que andava a apresentar-me a toda a gente que conhecia.

– Eu não preciso que me ajudes a arranjar homens, Pimentel, preciso é que me ajudes a afastá-los! – rosnei, secamente.

– Mas não queres um namorado?

Virei-me para trás e a expressão que fiz foi suficiente para matar o sorriso estúpido que estava estampado na cara do Ricardo.

– Eu não tenho namorados, Ricardo, tenho bonecos que uso como me apetece.

O tipo era irritante e convenci-me de que teria de lhe explicar detalhadamente que, para mim, os apêndices devem ficar quietinhos e calados, respondendo apenas quando alguém lhes dirige uma pergunta. E mais, começava a suspeitar que o meu amigo sofria de apendicite porque o Ricardo parecia-me, cada vez mais, uma fonte de problemas.

– Sabes que há um miúdo aqui no Meco de quem és capaz de gostar… – o meu amigo Pimentel tem a característica da persistência, o que em algumas situações pode ser uma qualidade, mas que para mim é normalmente um defeito desesperante. Pior ainda, é um perfeito autista quando teima.

– És tu que gostas de crianças, amigo, não eu – lancei, contendo-me para não fazer referência ao meu absoluto desinteresse em esbanjar o meu dinheiro a sustentar miúdos… seria demasiado desagradável, mesmo vindo de mim. Mas não sei se ele terá compreendido a piada, convenci-me de que não porque continuou como se eu não tivesse dito nada.

– Eu não o conheço muito bem, é amigo do nosso jardineiro, o Chico, que me contou uma série de coisas sobre ele que te interessarão, de certeza.

Brilhante! O amigo do jardineiro…

Fiquei com vontade de tomar o pequeno-almoço e de me meter no carro logo a seguir, a caminho de Lisboa! Quem é que me mandava alinhar nestes números…

– Eu moro num apartamento, Pimentel, não preciso de jardineiros! – exclamei impaciente. – Em minha casa só sobrevivem os catos.

– Vamos tomar café à esplanada da associação desportiva, o Chico costuma aparecer por lá…

– É um sonho que realizo graças a ti, amigo, muito obrigado – lancei, agora irónico. – Sempre quis conhecer o teu jardineiro na esplanada do clube de futebol da aldeia…

E tudo foi pior do que as minhas piores expectativas: o autismo do meu amigo; a esplanada de cadeiras de plástico, queimadas pelo sol, numa varanda de cimento coberta por um toldo vermelho roto; os clientes, todos velhotes, que olhavam para nós como se fossemos intrusos alienígenas, invadindo o seu espaço; e o jardineiro, que apesar de não ser desagradável fisicamente, ficou especado de boca aberta assim que encarou comigo, como se se tivesse deparado com Cristo regressado à Terra. Eu estou habituado a que as pessoas fiquem impressionadas comigo, é verdade, tenho perfeita consciência de que sou uma figura agradável, até sou um bocado convencido, mas há momentos em que não tenho paciência. Além do mais, o jardineiro parecia ser um perfeito imbecil.

Enquanto conversavam os dois muito animados e trocavam SMS com o príncipe encantado que tinham escolhido para mim, descobri o Correio da Manhã – que outro jornal poderia estar num sítio daqueles? – mas ao menos teria com que me entreter enquanto aguardava estoicamente pela chegada do futuro amor da minha vida e ouvia o Chico dissertar sobre a pérola que era o seu melhor amigo, com quem, afinal, também já tinha ido para a cama.

– Mas foi só uma vez, porque o Pedro proibiu-o de voltar a estar comigo, e ele fazia sempre tudo o que ele lhe mandava…

– Ah sim? – foi mais forte que eu, finalmente a conversa começou a interessar-me, gosto de homens que estão dispostos a fazer tudo o que lhes mandam fazer.

– Era bruto, sabes? – o jardineiro vibrou, ao perceber que finalmente tinha conseguido cativar-me a atenção.

Ignorei o sorriso de eu tinha razão do Pimentel e concentrei-me no jardineiro, que explicava detalhadamente que o amigo era muito simpático e que era extremamente fiel e que eu não pensasse que ele era uma puta que ia com todos, porque não era, pelo contrário, aceitava que o ex tivesse namoradas quando mal lhe permitia falar com outras pessoas, e que, apesar dos ciúmes que sentia, estava sempre disponível, por ser um tanto carente. A descrição deste Nuno, era assim que se chamava, agradou-me. Parecia ser um submisso e pensei que, pelo menos, poderia divertir-me um pouco durante o fim de semana.

– Olha, aí está ele…

Como não podíamos continuar a conversar sobre o rapaz, peguei na revista do jornal, tentando ler a notícia sobre o novo romance de uma atriz qualquer, que desta vez estava realmente apaixonada… era maravilhoso as pessoas apaixonarem-se, ou pelo menos terem essa ilusão… eu, por mim, sou demasiado calculista para esse tipo de disparates.

– Nunooo! – berrou o Chico subitamente, assustando-me. – Bom dia, amigo!

Palavra de honra! Se as bichas começam aos gritos, perco a cabeça e cometo duplo homicídio! Fará a abertura dos noticiários em todos os canais de televisão!

Levantei a cabeça da minha leitura matutina, confesso que estava à espera de encontrar um carroceiro como o Chico, nunca imaginei reencontrar o rapaz do pinhal, que olhava para mim, de queixo caído e olhos prestes a saltarem-lhe da cara.

O rufia?!

Foi completamente inesperado! Tanto quanto percebi, ele também tinha tomado banho e também tinha mudado de roupa, e estava agora com uma t-shirt bastante decente, que lhe ficava muito bem. Tornei a concentrar-me na revista enquanto ele encostava a bicicleta, resistindo a observá-lo quando se aproximou de nós. Gostei particularmente do timbre nervoso da sua voz enquanto cumprimentava o Pimentel, os dois já se conheciam, o que queria dizer que era eu a causa de todo o seu nervosismo.

Nuno… gosto do nome…

Nuno, senta! Quieto, Nuno!...

Sim, gosto…

10

Cheguei a casa com a mesma telha com que tinha saído, cansado e ainda por cima esfolado. Não valia a pena, quando se está em má onda, não há nada a fazer.

Espreitei o telemóvel. Tinha uma mensagem do Chico.

– Já?! – Exclamei em voz alta. – Deves ter caído da cama!

«Estás melhor?»

«Sim. Mas não quero falar nisso.»

A minha resposta foi curta e grossa, não queria mesmo. Já tinham passado duas semanas desde o casamento e eu já estava a recuperar. No fim de semana anterior tinha conversado com o Chico, quando ainda estava completamente desorientado, ele tinha-me ouvido, tinha-me apoiado, tinha-me mimado e chegava. Não sou muito de falar dos meus problemas, sempre me habituei a resolvê-los sozinho porque não podia contar com a ajuda de quem quer que fosse. Mas não me conseguia habituar à ideia de não ter ninguém. Não achava justo, não merecia ser abandonado, trocado. Senti lágrimas nos olhos mais uma vez, mas consegui contê-las, e uma nova mensagem do Chico acabou por me distrair.

«A caminho do Vermelho. Queres vir tomar café?»

Dasss

Que pancada que o gajo tinha com aquele café. Era o café mais rasca da zona. Aliás, aquilo nem era um café, era uma taberna, cheia de velhotes e saloios a falar de bola… de bola não, do Benfica… aliás, o nome diz tudo, não é? Eu não tenho nada contra o Benfica, nem pensar nisso, é o clube do meu avozinho, que é doente por futebol, mas haja pachorra. Tomar café a ouvir falar das novas contratações e do árbitro que tinha roubado um penalti, não é bem a minha onda. Eu só costumava lá ir depois dos treinos de futebol, porque ficava ao pé da associação, era onde acabava por ir a equipa toda, era onde encontrávamos os poucos adeptos do nosso clube e era das poucas vezes em que falavam de nós em vez de falarem do Benfica.

Seja como for, já tinha deixado de jogar há um ano e nunca mais lá tinha ido. Agora ainda eram mais chatos: que eu tinha sido um bom guarda-redes, que a equipa era melhor quando eu lá estava, que não sei que mais… tudo saudosismo imbecil, porque quando eu jogava e a equipa perdia, diziam que eu era um frangueiro, que tinha manteiga nas mãos, que deixava entrar tudo. Enfim, os comentários dos adeptos são iguais em todos os níveis de competição.

Mas resolvi aceitar porque, se ficasse em casa, iria acabar por recomeçar a matutar na treta que era a minha vida, precisava mesmo de me distrair. O Chico costumava ser um tipo alegre e eu gostava de estar com ele e com o Álvaro, de observar a cumplicidade entre os dois e a maneira como se picavam mutuamente… tinha até alguma inveja deles, mas isso logo passaria. Com alguma sorte, estariam acompanhados por alguém interessante e… livre. Com um pouco mais de sorte, seria alguém que me daria atenção e me faria sentir bem, pelo menos por algum tempo.

«Temos aqui um amigo que gostávamos que conhecesses.»

Aquilo fez-me decidir de uma vez por todas. Eu confiava no bom gosto do meu Chico. Depois de horas e horas na praia a comentar cada tipo que passava, sabia que tínhamos preferências semelhantes e se ele achava que o tipo servia para mim, provavelmente servia. Peguei na bicicleta e arranquei para o Vermelho. Mesmo que não acontecesse nada e que passasse uma hora a ouvir falar do Benfica, naquele momento qualquer coisa seria melhor do que continuar obcecado com o Pedro. Até as novas contratações seriam um assunto mais interessante. Demorei um bocadinho a chegar, mas não muito. Eu bem gostaria de ter uma mota, mas não sou propriamente rico. Além disso, os meus avós nunca me permitiriam tal coisa.

11

O Chico viu-me logo ao fundo da rua e acenou-me. Estava na esplanada do Vermelho acompanhado por mais umas pessoas. Reconheci o Pimentel, ao lado do Chico. O Paulo Pimentel é um enfermeiro de Lisboa, muito simpático, que arrenda casa no Meco para passar os fins de semana e as férias de verão. Já o conhecia de vista há bastante tempo, da aldeia e da praia, mas nunca lhe falara até o Chico nos apresentar. O Pimentel tinha-o contratado para lhe tratar do jardim e tinham acabado… enfim… enrolados. Vira-o na praia, sabia que tinha um bom físico e também sabia que era bem dotado, o Chico tinha-me feito o relatório completo, era um desbocado perigoso e contava tudo a toda a gente. Eu achava o Pimentel atraente e gostava dele por ser bem-disposto e provocador, mas o homem precisava de ser o centro das atenções e nisso exagerava um bocadinho.

À frente deles estavam dois tipos que não reconheci. Um deveria ser o novo namorado do Pimentel, já o tinha visto uma vez e não gostava muito dele, era pouco mais velho que eu e muito bonito, mas também muito convencido. O outro estava de costas e de cabeça baixa, concentrado numa revista. Percebi que não era o Álvaro, devia ser o tal amigo que o Chico queria apresentar-me. Poderia ser alguém interessante, visto daquele ângulo parecia ter muito bom aspeto.

– Nunooo! – exclamou logo o Chico, acenando outra vez. – Bom dia, amigo!

Respondi timidamente, em vez de gritar também por ele, como era habitual: estava em choque, bloqueado, tinha finalmente percebido quem era o desconhecido que estava com o meu amigo… era o tipo do pinhal, o corredor podre de bom.

Oh, meu, mas ele está aqui?

Levantou os olhos da revista para saber quem tinha chegado e percebi que me reconheceu. Ao menos isso, reconheceu-me! A bicicleta ia-me escapando das mãos. Fui encostá-la à parede, lentamente, para ter uns segundos para recuperar a compostura. Não valia a pena pôr o cadeado porque ali ninguém se atreveria a roubar-ma. Além disso, nem me conseguia lembrar do código. O outro do pinhal ali? Parecera surpreendido por me ver, mas mais surpreendido do que eu não estava, com certeza!

– Olá Nuno! – o Pimentel cumprimentou-me a sorrir, como sempre, apertando-me a mão quando lha estendi. – Estás bom?

– Sim – respondi vagamente, sentindo-me um bocado constrangido.

Era para aí a quarta ou quinta vez que ele me via, mas usava sempre aquele tom efusivo para me cumprimentar. Parecia felicíssimo por me ver e cheio de saudades minhas. Era atraente, tinha boa pinta, mas quer dizer… há limites! Eu sabia que ele gostava de putos e devia estar de olho em mim, era sempre muito simpático comigo, mas se eu já ficava atrapalhado quando ele estava sem namorado, muito mais ficava agora que tinha um. E ainda por cima à frente de desconhecidos. Concentrei-me para tentar decidir se estendia a mão ao bonzão ou se apenas lhe acenava. Tinha de lhe apertar a mão… até porque queria mesmo tocar-lhe.

Controla-te, meu!… gritou-me o cérebro lá do fundo… é só um gajo!

– Já conheces o Ricardo? – o Pimentel apontou para o namorado, à sua frente.

Apertei também a mão ao Ricardo, que me fez um sorriso amarelo, como se estivesse aborrecido por ter de falar com um dos saloios da aldeia. Parecia incomodado, a fazer um frete, e irritou-me logo. O seu ar convencido, a expressão com que me olhou…

Arrogante de merda!

Ele achava-se o máximo e comportava-se como se me estivesse a fazer um favor. Aliás, ele não me cumprimentou, deu-me a mão para apertar, só isso, uma coisa flácida, mole… detestava gente assim, que não apertava a mão. Eu já estava em stresse por estar ali o bonzão, que ainda por cima me estava a ignorar e continuava a ler a sua revistinha como se eu não existisse, e ainda tinha de levar com isto?

– Não me lembro – respondi ao Pimentel, encolhendo os ombros, com se estivesse a desculpar-me, e depois virei-me para o Ricardo. – Mas acho que sim, já nos encontrámos, não?

Os seus olhos traíram-no, não gostou da minha indiferença, devia achar que eu tinha obrigação de me lembrar dele. Bem feito! É claro que me lembrava dele, mas não estava com paciência para aquelas merdas.

Vai buscar, abelha!

Agora sim, agora era a vez do corredor. Percebi que ele me estava a espreitar por cima da revista. Pareceu surpreendido com a minha resposta ao Ricardo, também não devia gostar dele. Notei-lhe uma expressão de curiosidade que me confundiu.

– O Duarte não conheces de certeza, é o seu primeiro fim de semana no Meco – continuou o Pimentel.

Senti que a sua voz endurecera um pouco, não devia ter gostado da forma como eu falara com o seu mais que tudo.

– Mas estás enganado, Pimentel – lançou o Duarte, sorrindo levemente. – Já nos vimos no pinhal, não foi? Então, olá outra vez, Nuno.

Nem sei como descrever. Adorei tudo! Adorei o sorriso, a voz, a forma como disse o meu nome…

– Sim, foi – balbuciei, enquanto lhe apertava a mão… e apertou-ma com bastante força, este sim era homem.

Fogo, Nuno!… Controla-te!

Mas não havia nada a fazer, não conseguia controlar-me. O tipo tinha um sorriso espantoso… era lindo, lindo… os seus olhos negros brilhavam, cravados em mim, e eu comecei a ficar cheio de calor. Estremeci com o seu toque e o seu olhar faiscou de satisfação.

– Tenho muito gosto, Nuno – a sua voz era doce…

– Também eu! – respondi com a maior das sinceridades.

Claro que ele percebeu logo que me tinha deixado a cabeça a andar à roda, claro que ele estava habituado a provocar esse efeito, devia ser normal para ele, devia ter o mundo aos seus pés. Eu engoli em seco, sentia o coração entalado na garganta, e ele a sorrir, parecendo achar piada à minha reação, à minha… basbaquice.

Mas que grande merda!

12

A relação do Nuno com o Ricardo era tumultuosa, percebi imediatamente, logo nos cumprimentos iniciais. O Ricardo não estava muito satisfeito e o Nuno parecia desinteressado, negligente, como se o namorado do meu amigo fosse irrelevante na sua vida. O outro ofendeu-se, estava absolutamente claro. No espaço de poucas horas foi atingido duas vezes no seu amor-próprio. Como encontrei um ponto comum entre nós, percebi imediatamente que tinha um aliado e decidi ser simpático com o miúdo. Tirei os óculos de sol para o olhar nos olhos, antes de o cumprimentar, para ver como ele reagia… balbuciou uma resposta que me pareceu absolutamente genuína, apesar de desajeitada… estava nervoso, isso era certo, a sua mão tremia quando lha apertei, o que me provou que não me tinha enganado quando me cruzei com ele no pinhal: eu não lhe era indiferente.

– Tenho muito gosto, Nuno… – insisti, cheio de vontade de lhe ordenar que me encarasse.

– Também eu! – respondeu baixinho, de olhos fixos na mesa.

Afinal tinha ar de rufia, mas não parecia sê-lo, gostei de o ter perturbado.

Ao meu lado, o Ricardo ficou de trombas. Tentara seduzir-me e agora via-me ser simpático para este. E o Pimentel estava claramente dececionado porque a sua fantástica revelação afinal não me tinha surpreendido como ele previra.

Pouco me importei com os dois, concentrei-me no puto, antecipando que me poderia divertir um pouco com ele. Não aguentava o meu olhar, o que é uma coisa que me dá sempre imenso prazer; parecia intimidado comigo, sem coragem para me falar, nervosíssimo… quase tive pena.

Mas fui abruptamente interrompido pelo Pimentel, que não estava a gostar de ver o seu namorado afrontado e resolveu picar o miúdo, e provavelmente picar-me a mim também, com um comentário sugestivo e absolutamente desapropriado, sobre termos estado sozinhos no pinhal… como se não me conhecesse muito bem e não soubesse que não havia a mínima hipótese de eu andar a engatar em lugares ermos. Irritou-me, obviamente.

– Cruzámo-nos a correr!

Fui propositadamente desagradável, mas fiquei preocupado porque poderia ter causado má impressão ao miúdo, num gesto amistoso, convidei-o a sentar-se. Respondeu-me delicadamente, obedecendo sem hesitar, outra coisa que me agrada imenso. Ficou intensamente corado, mais uma vez, o que se estava a tornar um pouco incomodativo. Mas não resistia a estar sempre a olhar-me, embora apenas por alguns segundos de cada vez… dá-me grande prazer forçar um homem a baixar os olhos, intimidado, quando confrontado com o meu olhar…

13

O Pimentel não conseguiu disfarçar a surpresa e o desapontamento quando descobriu que já nos tínhamos encontrado.

– E o que é que andaram a fazer os dois sozinhos no pinhal, logo de madrugada, pode saber-se?

Tornei a engolir em seco, sem ser capaz de articular palavra.

Nada! Ele mal olhou para mim!

– Cruzámo-nos a correr – esclareceu o Duarte, secamente, fechando o rosto.

Achei incrível como a sua expressão mudou num segundo, muito simpático e sorridente para mim e, no momento seguinte, aquele olhar matador para o Pimentel.

– Ah! Não sabia que gostavas de correr? – o Pimentel concentrou-se em mim, ignorando o amigo.

– Precisava de extravasar – respondi vagamente.

Duarte!… gostei do nome, soava bem… Duarte!

– Não te queres sentar, Nuno? – o Duarte convidou-me simpaticamente.

Voltei a estremecer ligeiramente, o tipo estava a mexer comigo e já o percebera bem… percebera ele, percebera eu e acho que tinha percebido toda a gente.

– Sim, obrigado.

Foi o Pimentel que puxou uma cadeira, fiquei sentado entre ele e o Ricardo, à cabeceira da mesa. Estava longe do Duarte, mas de frente para ele, o que era ao mesmo tempo delicioso e constrangedor.

– Queres café?

Ele parecia divertido com o efeito que provocava. Por mim, não estava a achar piada nenhuma, queria encará-lo, como fazia com toda a gente, mas não conseguia. Era horrível.

– Esqueci-me de trazer dinheiro – expliquei, tentando agir normalmente.

– Não foi isso que eu perguntei – a sua voz endureceu um pouco. – Perguntei se querias café.

Voltei-me para ele, espantado. Mas o que era aquilo?

– E eu respondi que não tinha dinheiro – encolhi os ombros em sinal de incompreensão.

Daaaa!!!

Ele semicerrou os olhos por um momento, como se estivesse a tentar compreender o que eu tinha dito, parecia surpreendido. Achei que não tinha gostado da resposta, embora não conseguisse perceber porquê. O que eu dissera era compreensível para qualquer um, ou não? Seria o meu tom? Ou então era de raciocínio lento, como o Chico.

– Isso quer dizer que, mesmo querendo café, não aceitas que um de nós te ofereça um? – perguntou calmamente.

Parecia perplexo e, portanto, estava como eu. Ele queria oferecer-me o café? Não estava habituado a ofertas, sobretudo vindas de desconhecidos, não é normal, pois não? A não ser que haja algum interesse escondido… ele estaria interessado em mim?

– Se me quiseres oferecer um café, não te vou dizer que não – respondi, ultrapassando a hesitação, se ele mo queria pagar, que pagasse.

– Ótimo! Essa é a resposta certa, Nuno, era isso que eu queria ouvir – assentiu. – É que eu não gosto de ouvir a palavra ‘não’.

Fez um segundo de pausa, enquanto observava a minha reação, mas depois virou-se para trás com uma chávena na mão, para indicar ao senhor Guilherme que queria outra bica.

Fitei o Chico por um momento. Esse percebera perfeitamente o que estava a acontecer, entendia a minha surpresa, o Duarte era tão parecido com o meu ex, também não gostava que lhe dissessem que não, e eu lia, também perfeitamente, as perguntas no rosto do Chico: Gostas? Não é giro?

– Eu depois dou-te o dinheiro – resisti, fazendo-me forte, sem saber muito bem porquê.

Ele encarou-me outra vez, inclinando um pouco a cabeça numa expressão de condenação, agora parecia desapontado comigo. Fiquei desarmado. Tão insinuante… e eu sem homem, e a precisar de… Cedi, claro, eu queria mesmo que ele gostasse de mim.

– Esquece! Aceito o teu café, sim, obrigado.

A tensão desapareceu da sua voz logo que concretizou o seu objetivo, agora soava alegre, satisfeito, novamente bem-disposto.

– Vês? Custou muito?

Aquelas palavras eram uma provocação, percebi-o bem, mas agradou-me ser envolvido pelo seu sorriso, como que compensando-me por ter cedido. Eu acabara por fazer o que ele queria e ele mostrava-me claramente a sua satisfação, reconfortava-me e fazia-me sentir bem. Não, não me tinha custado nada, e sim, valeu a pena fazer o que ele queria para ter direito àquela recompensa.

14

A chegada do Nuno à esplanada do Vermelho foi uma lufada de ar fresco. A manhã não estava a correr-me bem e eu estava seriamente a considerar se teria feito bem ao aceitar o convite para passar o fim de semana no Meco. Mas parecia que tinha arranjado um aliado, uma arma de defesa contra o atiradiço Ricardo, e lembrei-me de lhe oferecer um café. Respondeu-me que não tinha dinheiro e percebi logo que não devia estar habituado a que lhe pagassem coisas. Mais um ponto positivo, mas não gosto de perguntar uma coisa e que me respondam outra!

– Não foi isso que eu perguntei. Perguntei-te se querias café.

O que tens de responder é: quero sim, obrigado…

– E eu respondi que não tinha dinheiro! – exclamou, encolhendo os ombros surpreendido, e surpreendendo-me a mim também.

Por um lado arreliou-me tanta resistência, já não estou habituado a que não aceitem agradecidos tudo o que ofereço, já me faz confusão, mas por outro, o garoto atraiu-me de uma forma inesperada: fazia-se difícil, rebelde!

– Isso quer dizer que, mesmo querendo café, não aceitas que um de nós te ofereça um? – insisti, mantendo a serenidade, decidido a fazê-lo vergar.

Agitou-se na cadeira, desconfortável, como se estivesse sentado nos bancos de pele em brasa de um descapotável estacionado ao sol. Cheguei a pensar que não gostava de mim, o que, teoricamente, tem uma probabilidade ínfima de acontecer. Mas não, não me tinha enganado, o Nuno estava muito perturbado comigo, queria mostrar-se seguro, mas não conseguia. Cedeu, como esperado, mas verdadeiramente interessante foi a frase que usou para o fazer:

– Se me quiseres oferecer um café, não te vou dizer que não.

Tive a flagrante sensação de que ele não queria recusar, que sentia que não o podia fazer, e fiquei convencido que aceitou para me agradar, exatamente como gosto. É verdade que não era a resposta perfeita, mas era a resposta que eu queria ouvir e disse-lho francamente, para que percebesse que tinha feito o que devia:

– Ótimo! Essa é a resposta certa, Nuno, era isso que eu queria ouvir – elogiei. – É que eu não gosto muito de ouvir a palavra ‘não’ – acrescentei para que ficasse perfeitamente claro.

Já percebeste como tens de falar comigo?

Virei-me para trás para pedir um café ao empregado gordo e sebento que nos tinha servido, mas nem o cheguei a pedir, porque ouvi a voz meio embargada do Nuno.

– Eu depois dou-te o dinheiro… – disse, hesitante.

Abanei a cabeça, desapontado. Afinal não era capaz de perceber rapidamente o que se pretendia dele, como eu concluíra precipitadamente. Voltei-me para ele e ele deve ter lido os meus pensamentos, porque corrigiu logo, agora mais decidido.

– Esquece! Aceito o teu café, sim, obrigado.

Inesperado! Faltava-lhe treino, claro, não tinha experiência, mas eu não esperava uma cedência tão rápida, muito menos com uma resposta que até era satisfatória, apesar de rasar a insolência. O rufia dava muita luta, mas entendeu, nem tive

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