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OS MELHORES CONTOS ALEMÃES
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OS MELHORES CONTOS ALEMÃES
E-book368 páginas6 horas

OS MELHORES CONTOS ALEMÃES

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Sobre este e-book

Seja bem-vindo a mais um volume da Coleção Melhores Contos, uma seleção de contos escritos em épocas distintas por autores de diversas nacionalidades e com temáticas das mais variadas, mas que tem em comum uma enorme e talvez a mais importante qualidade literária: a de dar prazer ao leitor. Neste ebook, apresentamos Os Melhores Contos Alemães, uma seleção de contos memoráveis escritos por grandes contistas alemães de várias épocas. Uma  oportunidade imperdível de conhecer o talento de escritores como: Hoffman, Kleist, Otto Melander, Thomas Mann, entre outros.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de out. de 2020
ISBN9786586079838
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    OS MELHORES CONTOS ALEMÃES - Diversos

    cover.jpg

    Edições LeBooks

    OS MELHORES

    CONTOS ALEMÃES

    1a edição

    img1.jpg

    Isbn: 9786586079838

    LeBooks.com.br

    A LeBooks Editora publica obras clássicas que datam de, no mínimo, setenta anos de sua criação. Não obstante, todos os esforços são feitos para creditar devidamente detentores de créditos dessas obras.  Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas, bastando que seus proprietários contatem a editora.

    Prefácio

    Prezado leitor

    Seja bem-vindo a mais um volume da Coleção Melhores Contos, uma seleção de contos escritos em épocas distintas por autores de diversas nacionalidades e com temáticas das mais variadas, mas que tem em comum uma enorme e talvez a mais importante qualidade literária: a de dar prazer ao leitor.

    Neste ebook, apresentamos os Melhores Contos Alemães, uma seleção de contos memoráveis escritos por grandes contistas alemães de várias épocas.

    Uma excelente leitura

    LeBooks Editora

    Sumário

    O VIOLINO DE CREMONA

    Hoffmann

    O TERREMOTO NO CHILE

    Kleist

    A MULHER E O CACHORRO

    Otto Melander

    DEUSES NO EXÍLIO

    Heinrich Heine

    O PALHAÇO

    Thomas Mann

    IMMENSEE: O VELHO

    Storm

    A CONFISSÃO DA VÉSPERA DE ANO NOVO

    Hermann Sudermann

    THIEL, O SINALEIRO

    Gerhardt Hauptmann

    O AMULETO

    Jacob Wassermann

    O PEQUENO SENHOR FRIEDMANN

    Thomaz Mann

    O BESOURO DOURADO

    Bruno Frank

    CARA DE FOME

    Vick Baum

    O SONHO É LIVRE

    Hans Fallada

    A VOLTA

    Remarque

    A CURVA GLORIOSA

    Ana Seghers

    Apresentação dos Autores

    O VIOLINO DE CREMONA

    Hoffmann

    I

    O CONSELHEIRO Crespel é um dos homens mais estranhos que tenho encontrado. Quando cheguei a H... para aí passar algum tempo, em toda a cidade se falava quase unicamente a seu respeito. Crespel, que adquirira grande reputação como jurista e diplomata, acabara de praticar mais uma das suas excentricidades. Um príncipe soberano da Alemanha, bastante poderoso, pedira-lhe para redigir um memorial que desejava encaminhar à corte imperial, a respeito de um território, sobre o qual julgava ter pretensões legítimas. Esse memorial alcançou êxito absoluto e, como Crespel se lamentasse um dia de não poder encontrar uma residência a seu gosto, o príncipe, para recompensá-lo de seu trabalho, comprometeu-se a arcar com as despesas da construção de uma casa, que o conselheiro mandaria construir como entendesse. Crespel pediu que a casa fosse construída num jardim muito pitoresco que possuía à entrada da cidade. A partir desse momento, viram-no comprar e transportar os mais variados materiais de construção. Vestido como um operário, ele passava o dia todo esmagando a cal, preparando o concreto, ajudando a erguer as paredes. Não se dirigira a nenhum arquiteto e não possuía planta alguma do edifício. Certa manhã, no entanto, procurou um competente mestre de obras de H... e pediu-lhe que fosse, no dia seguinte, ao seu jardim, com grande número de auxiliares, para edificar a casa. Como era natural, o pedreiro perguntou pelo plano que devia ter sido traçado; não foi pequena a sua surpresa quando Crespel respondeu-lhe que nada disso era preciso para construir sua casa. No dia seguinte, o mestre, chegando com seus homens ao lugar indicado, encontra um fosso que formava um quadrado regular.

    — É aqui — disse-lhe Crespel — que desejo colocar os alicerces da casa; ergam as paredes até eu dizer: Basta!

    — Como! sem janelas nem portas? Sem paredes de sustentação! — exclamou o mestre, assustado com a extravagância de Crespel.

    — É como estou dizendo, meu bom homem — respondeu o conselheiro tranquilamente. — O resto se arranjará aos poucos.

    Somente a promessa de um excelente salário pôde convencer o pedreiro a empreender tão estranha construção. Jamais se construiu um edifício tão alegremente. As paredes ergueram-se em meio às gargalhadas dos operários, que trabalhavam com vontade, pois Crespel dava-lhes, em abundância, o que beber e o que comer. Um belo dia, o conselheiro gritou: Alto! Chega! Imediatamente as pás de pedreiro e os martelos cessaram de ressoar; os operários desceram do andaime e, rodeando Crespel, pareciam perguntar-lhe: E agora, que vamos

    fazer?

    — Deixem-me pensar! — exclamou Crespel.

    Correu para uma das extremidades do jardim, voltou lentamente para o seu quadrado de paredes, sacudiu a cabeça, dirigiu-se à outra extremidade, tornou a voltar, repetindo muitas vezes o mesmo gesto até que, finalmente, encostou-se num lance de parede, exclamando: Venham, venham cá; abram-me uma porta aqui. Deu a largura e a altura que desejava e suas ordens foram imediatamente executadas. Feita a porta, entrou na casa e sorriu com ar satisfeito, quando o mestre lhe observou que as paredes tinham a altura de uma casa de dois andares. Crespel passeava de um lado para o outro, seguido pelos pedreiros, carregando seus alviões e seus martelos e, assim que ele gritava: Aqui uma janela de seis pés de altura e quatro de largura, acolá uma janelinha de três pés de altura e dois de largura, elas eram imediatamente abertas.

    Cheguei a H... precisamente durante essa operação e era coisa divertida ver centenas de pessoas reunidas em torno daquele jardim, soltando gritos de alegria quando viam cair as pedras e uma janela surgir subitamente no lugar que parecia o menos indicado para isso. O restante da construção da casa e os outros trabalhos necessários foram feitos da mesma forma, seguindo as decisões repentinas de Crespel. A singularidade dessa obra, a surpresa que as pessoas sentiram ao ver que ao fim de contas a casa ficava melhor do que se podia esperar, a liberalidade de Crespel, tudo contribuiu para manter a jovialidade e a assiduidade dos operários. Os obstáculos que esse modo estranho de construir apresentava foram vencidos e, em pouco tempo, podia-se ver uma casa que apresentava externamente um aspecto algo absurdo, pois nenhuma janela se parecia com a outra. O seu interior, no entanto, oferecia todas as comodidades — suas peças eram bem distribuídas. Todos que a visitaram foram unânimes a esse respeito e fiz coro com eles quando Crespel me mostrou a casa.

    II

    Eu ainda não pudera falar com o extravagante conselheiro; sua casa preocupava-o tanto que recusava todos os convites para jantar fora. Na terça-feira não tinha ido, como era seu costume, jantar em casa do professor M... Mandara-lhe mesmo dizer que não se afastaria da construção, antes de terminá-la. Todos os seus amigos e conhecidos esperavam que ele desse, nesse dia, uma grande festa, mas ele convidou apenas os pedreiros e operários que haviam trabalhado na casa, mandando-lhes servir as iguarias mais delicadas. Os pedreiros atacavam inteiramente à vontade, os pastéis de perdiz; os marceneiros saboreavam com alegria os faisões assados e os operários famintos fartavam-se com as aves recheadas. À noite, chegaram suas mulheres e filhos e houve um grande baile. Crespel dançou um pouco com a mulher do mestre, pois, tomando parte na orquestra, pegou o seu violino e dirigiu a dança até ao amanhecer.

    Na terça-feira seguinte, encontrei, para grande alegria minha, o conselheiro em casa do professor M... Nada mais estranho do que suas maneiras. Ele mantinha-se tão ereto, seus movimentos eram tão súbitos que a todo instante receava-se (que ele se ferisse ou quebrasse algum móvel. Mas esse acidente não lhe aconteceu, embora a dona da casa, que o conhecia melhor do que eu, empalidecesse ao vê-lo girar a grandes passos em torno da mesa, onde estavam ricas porcelanas; ou encaminhar-se para um grande espelho que chegava até o solo; ou, ainda, quando apanhava um vaso delicadamente pintado para admirar-lhe as cores. Crespel fez as coisas mais absurdas

    antes do jantar. Examinou curiosamente tudo quanto se encontrava no quarto do professor; trepou numa poltrona para despregar um quadro e tornar a pô-lo no lugar.

    Falava muito e com vivacidade espantosa, pulando de um assunto para outro, ou insistindo numa ideia, à qual retornava constantemente com mil rodeios, através de mil atalhos singulares, perdendo-se ele próprio em suas digressões, até que, por fim, outro tema o dominasse. Sua voz, às vezes, era alta e áspera, outras vezes lamuriosa, apenas perceptível, e sempre em desacordo com suas palavras. Conversava-se sobre música e louvou-se calorosamente um novo compositor. Crespel começou a rir e disse com inflexão quase declamatória: Gostaria que Satã levasse em suas negras asas para o seu abismo a dez mil milhões de toesas esse maldito alinhador de notas. Depois acrescentou, com voz áspera e irritada: Ela é um anjo celestial! É um acorde puro, uma divina harmonia, a luz e a estreia do canto!" Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Precisamos fazer um esforço para nos lembrarmos que uma hora antes tinha-se falado de uma cantora célebre.

    Um assado de lebre foi servido; reparei que Crespel punha os ossos cuidadosamente limpos de lado, num prato, e ele pediu a patinha do animal, que uma netinha do professor lhe levou sorrindo. Durante o jantar, as crianças tinham olhado para o conselheiro com ar amistoso. Terminada a refeição, aproximaram-se dele respeitosamente e pararam a alguns passos. O conselheiro tirou do bolso um pequeno torno de aço que adaptou à mesa; pegando então os ossos que havia reunido, começou a fabricar, com surpreendente habilidade, caixinhas, bolas, pauzinhos e outros brinquedos que as crianças recebiam com arrebatamento. Depois do jantar, a sobrinha do professor perguntou:

    — Querido conselheiro, como está nossa Antônia?

    Crespel fez uma careta horrorosa e, com um sorriso de infernal ironia respondeu com voz lenta, arrastada, desagradável:

    — Nossa boa Antônia?

    O professor adiantou-se apressadamente e o olhar severo que dirigiu à sobrinha indicava ter acabado de tocar uma corda que soava desagradavelmente ao coração de Crespel.

    — Como vai o violino? — disse o professor com ar despreocupado, segurando as mãos do conselheiro.

    A fisionomia de Crespel iluminou-se imediatamente e foi com voz enérgica e forte que respondeu:

    — Maravilhosamente! Hoje mesmo comecei a despedaçar esse excelente violino de Amati¹, de que lhe falei e que um feliz acaso fez cair entre minhas mãos. Espero que Antônia acabe de desmontá-lo cuidadosamente.

    — Antônia é uma boa filha — disse o professor.

    — Sim, realmente! — exclamou o conselheiro. E voltando-se subitamente, precipitou-se para a porta com o chapéu e a bengala na mão. Yi, pelo espelho, que lágrimas cintilavam em seus olhos.

    Assim que ele saiu, pedi ao professor que me dissesse a relação que havia entre o conselheiro, o violino e Antônia.

    — Ah! — respondeu ele — o conselheiro é um homem prodigioso e faz violinos da maneira mais singular e divertida.

    — Faz violinos? — perguntei admirado.

    — Sim. E dizem os conhecedores que são os violinos mais perfeitos que atualmente se podem encontrar. Antigamente, quando ele conseguia fabricar um que o satisfizesse, às vezes permitia a seus amigos utilizarem-se dele; agora nem se pensa nisso. Assim que acaba de construir um violino, toca durante uma hora ou duas com grande força e paixão e, em seguida, o suspende ao lado dos outros e nunca mais o toca, nem permite que outros o façam. Quando há à venda algum violino de um mestre famoso. Crespel compra-o seja lá por que preço for, toca nele apenas uma vez e depois o desmonta para observar-lhe a estrutura interna. Se não encontra o que esperava, atira suas diversas partes numa grande caixa que já está cheia de destroços dessa espécie.

    — Mas Antônia?  — Exclamei com vivacidade.

    — Isso — disse o professor — faria que eu detestasse o conselheiro, se não estivesse convencido, pelo conhecimento que lenho de seu caráter bondoso, de que deve haver nessa relação alguma circunstância secreta e ignorada. Quando o conselheiro, há muitos anos, instalou-se nesta cidade, vivia sozinho com uma velha aia, numa obscura casa da Avenida de X... Suas singularidades despertaram a curiosidade dos vizinhos e, assim que ele notou isso, procurou tornar-se sociável. Em todas as famílias, como na minha, habituamo-nos tanto com ele que, dentro de algum tempo, tornou-se indispensável. As crianças gostavam dele, apesar de seu aspecto áspero, e apesar das infantis familiaridades, respeitavam-no. O senhor mesmo viu como ele sabe conquistar a afeição delas. Nós o julgávamos celibatário e ele nunca nos contradisse. Após ter residido algum tempo entre nós, partiu subitamente; ninguém soube aonde fora; voltou ao cabo de alguns meses, inesperadamente.

    — No dia seguinte à sua volta, à noite suas janelas apareceram iluminadas. Essa claridade extraordinária despertou a atenção da vizinhança. Logo se ouviu uma voz maravilhosa, uma voz de mulher, acompanhando o piano; depois os arpejos de um violino que lutava em energia e agilidade com a voz. Reconheceu-se imediatamente a execução do conselheiro. Misturei-me à turba de espectadores que esse estranho concerto reunira em frente de sua casa e confesso que, ao lado daquela voz desconhecida, ao lado daquelas inflexões que trespassavam tão vivamente minha alma, o canto das cantoras mais célebres que eu tinha ouvido me pareceu insípido e inexpressivo. Jamais tivera a ideia daquelas notas sustentadas tão prolongadamente, daqueles gorjeios de rouxinol, daquelas notas límpidas que às vezes se erguiam até os sons reboantes do órgão e desciam até o mais leve murmúrio. Todos os ouvintes estavam sob o encanto daquelas melodias e, quando a cantora se calou, ouviam-se suspiros. Seria meia-noite quando se ouviu o conselheiro falar em voz alta e exaltadamente. Outra voz de homem parecia censurá-lo; ouvia-se também a voz entrecortada de uma jovem que soluçava. O conselheiro gritava cada vez mais, até que, finalmente, retomou o tom grave que o senhor lhe conhece. Interrompeu-o um grito agudo de mulher e depois tudo recaiu num silêncio de morte. Viu-se então abrir a porta e um rapaz sair correndo, aos soluços, para fora de casa. Atirou-se numa carruagem de posta que o esperava, afastando-se rapidamente.

    No dia seguinte, o conselheiro parecia muito alegre e ninguém teve coragem de interrogá-lo sobre os acontecimentos da noite anterior. A aia contou que o conselheiro trouxera consigo uma jovem lindíssima. Chamava-se Antônia e fora ela que cantara tão maravilhosamente. Também os acompanhara um rapaz que parecia dedicar-lhe imensa ternura e que poderia muito bem ser o seu noivo. Mas o conselheiro obrigara-o a partir sem demora.

    As relações entre o conselheiro e Antônia — continuou o professor — estão, até agora, envolvidas em grande mistério. O certo é que Crespel exerce sobre a pobre jovem uma terrível tirania: guarda-a como o Dr. Bartolo guardava sua pupila. A custo lhe permite chegar à janela. Quando, cedendo a insistentes convites, a leva a alguma reunião, segue-a incessantemente com seu olhar de Argos e não admite que cante ou toque uma nota sequer. Ela também não pode cantar em sua casa e as melodias que fez ouvir naquela noite memorável, que toda a cidade recorda, permaneceram para os ouvintes uma espécie de tradição maravilhosa. Mesmo aqueles que não ouviram esse concerto, muitas vezes dizem, quando uma cantora vem exibir-se aqui: "Tudo isso não vale nada... Quem sabe cantar é Antônia!...

    III

    As coisas fantásticas produzem em mim uma grande impressão. Quis conhecer Antônia. Sabia do encanto de sua voz pela admiração popular, mas não pensava que essa jovem estivesse naquela cidade, encerrada sob o domínio do extravagante Crespel. Na noite seguinte, ouvi em meus sonhos o canto de Antônia; parecia-me que ela me exortava num adágio, composto por mim mesmo, a salvá-la. Decidi entrar em casa de Crespel e, como Astolfo, no castelo de Alcides, salvar a rainha do canto.

    Tudo se passou diversamente do que eu imaginava. Apenas vira duas ou três vezes o conselheiro e falara-lhe com entusiasmo sobre a melhor estrutura dos violinos, quando ele próprio convidou-me a visitá-lo. Assim fiz e ele mostrou-me o tesouro que possuía em violinos. Avistei uns trinta violinos pendurados numa parede e, entre eles, distingui um, notável pelos sinais da sua antiguidade e por suas esculturas. Estava suspenso mais alto que os outros e tinha uma coroa de flores, como o rei de todos aqueles instrumentos.

     — Esse violino — contou-me Crespel — é excelente peça de um mestre desconhecido que, provavelmente, viveu na época de Tartini, Estou convencido de que há em sua estrutura interna uma combinação particular e que, quando eu desmontá-lo, encontrarei nele um segredo que há muito tempo procuro. Ria se quiser, mas esse instrumento inanimado, ao qual dou vida e expressão, com minhas mãos, muitas vezes me fala uma linguagem maravilhosa. Quando toquei nele pela primeira vez, pensei encontrar-me na situação do magnetizador que desperta o sonâmbulo e leva-o a revelar, com palavras mágicas, suas sensações mais íntimas. Não pense que sou tão extravagante a ponto de me deixar dominar por tais fantasias; no entanto, é um fato singular que eu nunca tenha tido a coragem de desmontar esse instrumento. Aliás, agora, alegro-me por tê-lo respeitado, porque, desde que Antônia está aqui, toco às vezes neste violino o ela escuta-o com prazer, com muito prazer.

    O conselheiro pronunciou essas palavras com uma emoção que me animou a perguntar-lhe:

    Oh! caro senhor, não quereria tocá-lo em minha presença?

    Seu rosto assumiu imediatamente uma expressão de descontentamento e ele me disse com sua voz morosa e cantante: Não, meu caro estudante.

    A coisa ficou nisso. Com aquela resposta, o caso ficava indefinidamente adiado.

    Depois de me ter mostrado uma quantidade de coisas raras, muitas das quais eram verdadeiras infantilidades, ele apanhou uma caixinha e dela retirou um rolo de papel que me pôs na mão, dizendo com ar solene: O senhor é um amigo da arte, aceite este presente como uma lembrança que lhe deve ser para sempre preciosa. E com estas palavras, empurrou-me suavemente pelos ombros até a porta e abraçou-me no umbral. O fato é que me despedira de um modo amistoso. Quando abri o rolo de papel, nele encontrei um fragmento de corda de meia polegada de comprimento, acompanhado destas palavras: Pedaço da prima que tinha o violino de Stamit quando executou seu último concerto.

    Depois da resposta que me dera, quando pronunciei o nome de Antônia, contava jamais ver a jovem; mas assim não aconteceu. Quando visitei o conselheiro pela segunda vez, encontrei Antônia em seu quarto, entretida em ajustar as diferentes partes de um violino. Ao primeiro olhar, sua aparência não produzia grande impressão; mas logo tornava-se difícil deixar de fitar-lhe os olhos azuis, os lábios vermelhos, a suave e doce fisionomia. Era muito pálida, mas assim que a conversação adquiria caráter espiritual ou de animada superioridade, suas faces cobriam-se de um forte rubor, em seus lábios vagava um encantador sorriso.

    Conversei com Antônia à vontade e não notei, absolutamente, em Crespel, aqueles olhos de Argos que o professor se referira. Ele conservou sua atitude costumeira e pareceu aprovar minha conversação com a jovem. Tornei a visitá-lo muitas vezes e entre nós três estabeleceu-se uma natural cordialidade, uma espécie de intimidade, que emprestava grande atrativo às nossas reuniões. O conselheiro muito me divertia com suas excentricidades. Mas era Antônia quem exercia sobre mim um fascínio irresistível e que me fazia suportar muitas coisas, às quais eu não teria podido, em quaisquer outras circunstâncias, submeter meu temperamento impaciente. A conversação do conselheiro era, muitas vezes, fastidiosa e aborrecida, e o que mais me intrigava era vê-lo, sempre que se falava sobre música e, particularmente, sobre canto, volver para mim seu rosto descontente, seu sorriso desagradável e, com sua voz cantante, pronunciar algumas palavras incoerentes para desviar a conversa. Pelo ar de tristeza que dominava a fisionomia de Antônia, eu compreendia perfeitamente que o conselheiro agia assim, apenas para evitar que eu pedisse para a jovem cantar. Não renunciei, contudo, a meus projetos; os obstáculos que o conselheiro opunha a meus desejos só serviam para robustecer minha resolução. Queria ouvir Antônia cantar, a fim de não me perder nos sonhos que a ideia imprecisa desse canto me dava. Uma noite, Crespel estava extraordinariamente bem-humorado. Acabava de desmontar um antigo violino de Cremona e verificara que a tábua da harmonia era, nesse violino, meia linha mais inclinada que nos outros. Que descoberta preciosa para a sua experiência! Consegui animá-lo, ainda mais, falando-lhe sobre a verdadeira arte de tocar o violino. O método dos grandes cantores, dos antigos mestres, de que falava Crespel, levou-me a criticar o novo método, que se baseava nos efeitos artificiais dos instrumentos, estragando, com isso o canto.

    — Que haverá de mais absurdo! — exclamei, saltando de minha cadeira e abrindo rapidamente o piano — que haverá de mais insensato, que essa maneira de esparzir os sons que, cm lugar de música, mais parecem guizos rolando no chão?

    Cantei então algumas composições recentes, acrescentando-lhes, propositadamente, algumas notas desafinadas.

    Crespel soltava gargalhadas, exclamando:

    — Ah! ah! parece-me que estou ouvindo nossos alemães italianizados, cantando árias de Pucitta ou Portogallo, ou qualquer outro maestro di capella noschiavo d’un primo Tumo.

    A ocasião é excelente, pensei. Estou certo, disse para Antônia, voltando-me em sua direção, que não conhece essas horríveis cantarolas... e entoei um cântico delicioso do velho Leonardo Léo. As faces de Antônia cobriram-se de um brilho ardente; seus olhos cintilaram, ela se adiantou vivamente para o piano e entreabriu os lábios...

    Mas no mesmo instante, Crespel tomou-me pelos ombros dizendo com voz agitada: Criança! criança! E prosseguiu em tom baixo, fazendo-me um respeitoso cumprimento:

    Eu faltaria, sem dúvida, meu caro senhor, a todas as regras e a todos os hábitos de polidez, se manifestasse em voz alta o desejo de que o diabo o carregasse, com suas garras de fogo, neste instante, para o fundo do abismo. Mas, sem chegar até aí, o senhor confessará, caríssimo, que a noite é muito escura e que, como as luzes não estão ainda acesas, mesmo que eu não o atirasse pela janela, o senhor teria dificuldade em chegar são e salvo até embaixo da escada. Por isso, tome este castiçal, saia em paz da minha casa e lembre-se de que tem em mim um bom amigo, embora o senhor nunca mais deva voltar a visitar-me! Está compreendendo?

    Com essas palavras, abraçou-me e me arrastou devagar para a porta, agarrando-me de tal modo que não pude encontrar, uma vez sequer, o olhar de Antônia.

    — O senhor concordará que em meu lugar não era possível bater no conselheiro, embora me viessem ganas de fazê-lo.

    O professor riu muito de meu infortúnio e disse-me que minhas relações com o conselheiro estavam definitivamente cortadas. Antônia era para mim uma criatura por demais nobre e sagrada para que me fosse possível proceder como um insípido apaixonado a rondar suas janelas. Deixei a cidade de H... com o coração contristado.

    A imagem de Antônia surgia-me rodeada de uma espécie de aurora e seu canto, que eu jamais ouvira, ressoava em meu coração, como uma consoladora música. Mas, como é natural, as vivas cores daquele quadro fantástico foram, aos poucos, empalidecendo.

    IV

    Eu estava colocado em B... havia dois anos, quando fiz uma viagem ao sul da Alemanha. Uma noite, vi desenharem-se na púrpura do crepúsculo as torres de H... À medida que me aproximava, sentia-me dominado por uma ansiedade inexprimível; era como se pesasse em meu peito um fardo imenso. Sufocava. Fui obrigado a descer do carro a fim de respirar livremente. Essa opressão chegou a produzir dor física.

    Parecia-me ouvir ressoarem no espaço os acordes de um cântico solene. Os sons tornaram-se mais audíveis, distingui vozes masculinas que modulavam um cântico sacro.

    — Mas que está se passando? — exclamei com uma dor inexprimível.

    — O senhor não está vendo? — respondeu o postilhão — estão enterrando alguém lá adiante, no cemitério.

    De fato, estávamo-nos aproximando do cemitério e vi um círculo de homens trajados de preto, ao redor de uma sepultura que iam fechar. Lágrimas escaparam-se de meus olhos; parecia-me que estavam sendo enterradas todas as alegrias da minha vida. Eu descera ao sopé da colina, não podia mais ver o que se passava no cemitério. O canto cessou e notei, na estrada, homens de luto que voltavam do enterro. O professor, com a sobrinha, passou a meu lado, sem reparar em mim. Ela tinha um lenço nos olhos e soluçava fortemente. Não pude entrar na cidade; mandei à hospedaria meu criado com o carro e comecei a percorrer aqueles sítios que tão bem conhecia, tentando refazer-me de uma comoção que talvez proviesse apenas da fadiga da viagem ou de qualquer outra causa física. Ao penetrar numa alameda, que conduzia a um jardim público, presenciei um espetáculo estranho. O conselheiro Crespel era conduzido por dois homens de preto e pulava e saltava para lhes escapar. Trajava, como de costume, sua roupa cinzenta, cortada de maneira extravagante: de seu tricórnio, colocado marcialmente sobre a orelha, caía um longo crepe que ondeava no ar. Trazia na cintura um cinturão preto, onde colocara, em vez de uma espada, um arco de violino. Um frio glacial fez meu corpo estremecer. Está louco, pensei, e segui-o devagar. Aqueles que o conduziam levaram-no para sua casa e ele os abraçou às gargalhadas. Quando ficou sozinho, seu olhar caiu sobre mim. Observou-me fixamente e disse-me com voz surda: Seja bem-vindo, senhor estudante; sem dúvida o senhor compreende ...

    Com estas palavras me agarrou pelo braço e fez-me subir até o quarto onde estavam pendurados os violinos; todos estavam cobertos com um véu negro. Faltava o belo violino de Cremona, que fora substituído por uma coroa de cipreste. Adivinhei o que acontecera: Antônia! Antônia! exclamei com intensa dor. O conselheiro permaneceu em minha frente, imóvel, de braços cruzados; mostrei-lhe a coroa de cipreste.

    — Quando ela morreu — disse-me com ar solene — o arco daquele violino partiu-se ruidosamente e a caixa caiu em pedaços. Esse instrumento fiel só podia viver com ela e para ela;

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