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Crônicas da Bruzundanga: A literatura militante de Lima Barreto
Crônicas da Bruzundanga: A literatura militante de Lima Barreto
Crônicas da Bruzundanga: A literatura militante de Lima Barreto
E-book287 páginas4 horas

Crônicas da Bruzundanga: A literatura militante de Lima Barreto

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Sobre este e-book

Os textos selecionados para esta edição tratam, por um lado, daquilo que Lima Barreto chamava de literatura militante, e, por outro, como essa atuação acontecia nos periódicos. Nesse sentido, o leitor tem aqui uma mistura de ensaios, crônicas, contos e cartas que discutem a inserção do escritor naquele princípio de sociedade de massa no Brasil. Junto com a caricatura, a fotografia e o cinema, a literatura breve era, naquele momento, um dos meios mais eficazes nos esforços de comunicação de massa. Lima Barreto vê nesse novo contexto uma possibilidade de utilizar a arte literária como motor de mudança de mentalidades, focando principalmente o público de trabalhadores de colarinho branco que surgiam naquele momento, muitos deles recém-alfabetizados, e que se espalhavam pelos subúrbios das grandes cidades ou viviam em outras regiões do país.

O conto "A nova Califórnia" inicia a seleção que aqui apresentamos. A versão que trazemos a público pela primeira vez foi publicada originalmente na Revista Americana em março de 1911, e é não só um exemplo da intensa relação que o autor manteve com a imprensa e de sua perspectiva sobre o que significava fazer literatura na emergente sociedade de massas, mas também de sua crescente reputação no meio literário da época.

O ensaio "A literatura militante de Lima Barreto", de autoria do pesquisador e organizador desta obra, Felipe Botelho Corrêa, abre o livro.
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento14 de jul. de 2017
ISBN9788584741687
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    Crônicas da Bruzundanga - Lima Barreto

    Sumário

    A literatura militante de Lima Barreto

    Sobre a seleção de textos e a versão inédita A nova Califórnia

    Crônicas da Bruzundanga

    A nova Califórnia

    Literatura militante

    Artigo inicial (apresentação da revista Floreal)

    Amplius

    Apresentação do projeto da revista Marginália

    O destino da literatura

    As letras na Bruzundanga

    Os samoiedas

    Harakashy e as escolas de Java

    Volto ao Camões

    Esta minha letra

    Histrião ou literato?

    Estética do ferro

    Alta cultura

    A biblioteca

    Pela seção livre

    A universidade

    Continuo

    As reformas e os doutores

    O trem de subúrbios

    Leituras recomendadas

    Sobre o autor

    Créditos

    A LITERATURA MILITANTE

    DE LIMA BARRETO

    Este ensaio e os textos selecionados para esta edição são uma resposta possível, ainda que breve, a uma pergunta provocativa feita a mim por Joselia Aguiar ao longo dos preparativos para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2017: o que significava ser escritor e fazer literatura para Lima Barreto? A extensa fortuna crítica sobre o autor já se encarregou de tratar do assunto por vários ângulos, e não vinha ao caso enfrentar a questão sem o ímpeto de refrescá-la com novidades, como foi o caso de Sátiras e outras subversões, publicado em 2016, e por meio do qual revelei ao público 164 textos do autor que ainda permaneciam desconhecidos e inéditos em livro. A presente edição faz uma contribuição do mesmo gênero, apesar de mais modesta, publicando a versão original do famoso conto A nova Califórnia que ainda era inédita em livro, e que soluciona um mistério que inquietava alguns pesquisadores há décadas. A outra contribuição desta presente edição é ensaiar uma resposta original à pergunta mencionada anteriormente.

    Lima Barreto nasceu em 1881 e morreu em 1922. Portanto, fez parte de uma geração de intelectuais que cresceu no Brasil tendo como pano de fundo os desdobramentos da abolição da escravidão e a instituição da república. São momentos que, ainda que teoricamente, reverberavam ideias de igualdade entre os membros da sociedade. Por um lado, a demanda por igualdade entre os cidadãos independentemente de suas cores; de outro, a manifestação do desejo de uma sociedade por direitos políticos obtidos com a eleição de seus representantes e não de um monarca hereditário.

    De ascendência parcialmente africana, sendo neto de uma antiga escrava, Lima Barreto testemunhou em sua infância esses dois momentos decisivos na história do Brasil, vendo seu aniversário de sete anos coincidir com a assinatura da Lei Áurea. Anos depois, ele relembra esse momento no texto Maio, publicado na Gazeta da Tarde (4/5/1911), comentando que nesse dia seu pai o levara ao Largo do Paço, atual Praça Quinze de Novembro, para a celebração: Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente [de] festa e harmonia. No entanto, a possibilidade de reformas sociais que esse período vislumbrou não cumpriu as expectativas de muitos intelectuais que atuaram publicamente naquele contexto da virada do século XIX para o XX, incluindo o próprio Lima Barreto.

    As aparentes ideias progressistas que surgiram nos últimos anos do século XIX acabaram, contudo, abrindo caminho para um período de muitas tensões intelectuais que é frequentemente denominado, por vezes ironicamente, de belle époque.¹ O período é caracterizado pela expansão de uma nova elite republicana e por uma produção literária em grande parte marcada por otimismos frívolos, contemplações, maneirismos e adoções de aspectos do racismo pseudocientífico, como as ideologias de branqueamento racial derivadas do darwinismo social.² Esses aspectos caracterizaram o que se convencionou chamar de cultura de elite da Primeira República: práticas e representações dominadas pelos paradigmas culturais aristocráticos de derivação europeia, e adaptadas aos ímpetos de modernização da vida urbana carioca. Muitos desses ideais foram determinantes no desenvolvimento da geografia da capital do país naquele começo de século, quando as reformas urbanas redesenharam a cidade do Rio de Janeiro como epítome de uma nação moderna.

    De fato, Lima Barreto foi um dos muitos escritores que se esforçaram para discutir essas transformações complexas, mas um dos poucos a criticar abertamente a sua base aristocrática. Frustrado por não testemunhar os valores de igualdade da abolição e da república sendo postos em prática na vida política e social da capital, Lima Barreto embarcou numa cruzada literária contra as ideias e práticas elitistas de mentalidades que ainda reproduziam o regime colonial, formulando sua prosa contra alvos que precisavam ser confrontados.

    [N]um país como o Brasil em que, por suas condições naturais, políticas, sociais e econômicas, se devem debater tantas questões interessantes e profundas, nós nos estamos deixando arrastar por esses maçantes carpidores do passado que bem me parece serem da raça desses velhos decrépitos que levam por aí a choramingar a toda a hora e a todo o tempo: Isto está perdido! No meu tempo as coisas eram muito outras, muito melhores. [...] Que Portugal faça isto, vá! Que lá ele se console em rever a grandeza passada dos lusíadas em um marquês que tem por amante uma fadista, ou que outro nome tenha, da Mouraria, concebe-se; mas que o Brasil o siga em semelhante choradeira não vejo por quê.³

    A cruzada de Barreto, no entanto, não atacou o mesmo problema ao longo de toda a sua carreira. O jovem Lima Barreto tinha inicialmente planos para que sua obra focasse as questões dos negros na sociedade brasileira, com livros de ficção que trabalhassem com a história da escravidão no Brasil e suas consequências. Contudo, a esse compromisso inicial com uma literatura negra, que aparece de maneira explícita em seu primeiro romance publicado em livro, Recordações do escrivão Isaías Caminha, juntaram-se outras preocupações, como a alienação e a fragmentação social. Apesar dessa mudança das metas iniciais, Lima Barreto não deixou de ver a escrita como uma missão, produzindo uma extensa obra que tinha as letras como arma ao longo dos quase vinte anos em que ele esteve envolvido com a sociedade como um escritor público.⁴ O próprio Lima Barreto usava o termo para definir a função de sua escrita: [...] nosso tempo [é] de literatura militante, ativa, em que o palco e o livro são tribunas para as discussões mais amplas de tudo o que interessa o destino da humanidade [...].⁵

    O tema da literatura militante é um tema central na obra de Lima Barreto. Em seu artigo mais explícito sobre o assunto, o escritor carioca menciona alguns dos autores que influenciaram suas ideias sobre o que significava ser escritor e produzir literatura combatente em uma determinada sociedade. Ele chega a dizer que aprendeu a expressão ao ler o ensaio O francesismo, de Eça de Queirós, no qual o escritor português compara a produção literária francesa à portuguesa e argumenta que a literatura da França é [...] social, ativa, militante. A nossa [portuguesa], por tradição e instinto, é idílica e contemplativa.

    Embora a definição sugerida por Queirós seja bastante genérica e não seja a principal influência no pensamento de Lima Barreto, ela sintetiza a definição básica da literatura militante como uma prática de ação social em oposição a outra baseada no idílio e na contemplação. Isso é altamente relevante na medida em que é muito semelhante à própria definição de Barreto do que seria uma produção literária militante. De acordo com Barreto, a literatura militante que Eça de Queirós lia em François Rabelais e Victor Hugo era também a base de escritores franceses como Anatole France, Jean-Marie Guyau e Hippolyte Taine. Em Anatole France, por exemplo, Barreto via uma literatura que tinha um escopo sociológico; em Guyau, uma literatura com o objetivo de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação para o mútuo entendimento dos homens; em Taine, uma literatura militante que visa dizer o que os simples fatos não dizem.⁷ É, no entanto, em Ferdinand Brunetière, o diretor da Revue des Deux Mondes⁸ entre 1893 e 1906, que Lima Barreto encontra a ideia de uma literatura que é produzida com uma função, uma missão social:

    [...] o papel da literatura [...] é fazer entrar no patrimônio comum da mente humana [...] tudo o que interessa ao uso da vida, à direção da conduta e ao problema do destino. Em uma linguagem inteligível para todos, a literatura deve transpor e traduzir aquilo que não está claro para os seres humanos em geral [...]. As obras literárias devem explicar a outros seres humanos a importância das questões de seus interesses, mas das quais eles não estão conscientes; esse é o objetivo da arte de escrever, e isto é o que é propriamente literário.

    Ao selecionar esses autores e seus vários textos sobre o tema do fazer literário, Lima Barreto enfatiza sua ideia de literatura militante como uma prática ancorada num vínculo humanista, de base cristã, de entendimento mútuo numa sociedade. Para ele, a literatura e as artes em geral eram formas de comunicação, pois tinham a capacidade de tornar comuns determinadas ideias que ligassem e unissem as sociedades e seus membros.

    [A arte] sempre fez baixar das altas regiões das abstrações da filosofia e das inacessíveis revelações da fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam a perfeição da nossa sociedade; ela explicou a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender uns aos outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais dispersas épocas, das mais divergentes raças.¹⁰

    Com tais afirmações enfáticas e claras, Barreto permitiu que numerosos estudiosos desenvolvessem linhas de interpretação de sua prosa a partir da década de 1950, quando as Obras de Lima Barreto foram publicadas pela editora Brasiliense. Nesse sentido, Francisco de Assis Barbosa é indubitavelmente o pioneiro e um dos mais importantes e influentes críticos das obras de Barreto. Barbosa não só publicou uma detalhada biografia em 1952 e editou dezessete volumes em 1956, mas também, e em grande medida, ajudou a definir mais detalhadamente a literatura militante do escritor carioca. Para Barbosa,

    a posição de Lima Barreto, quase isolada, contra os puristas, está bem definida no combate ao escapismo decorativo e aristocrático dos que entendiam que a cultura devia ser privilégio de uns poucos eleitos e não um bem comum de todo o povo. E para alcançar esse objetivo é que os intelectuais tinham que lutar.¹¹

    Essa era uma ideia que também dialogava com um contexto internacional, como veremos mais adiante.

    Após a publicação dos trabalhos completos, dois projetos de pesquisa seguiram a mesma linha sugerida por Barbosa. Em 1968, nos EUA, Robert Herron¹² analisou os romances de Barreto, e em 1976 Vincent Duggan¹³ centrou seu estudo nos contos. Ambos os críticos seguem Barbosa quando sugerem que a ficção em prosa de Barreto é um exemplo de literatura socialmente comprometida que tinha como tema principal o papel do intelectual na sociedade. Nesse sentido, Duggan afirma que Barreto publicou obras didáticas que ilustram uma tese social simplificada para a compreensão popular revelando uma dedicação singular à promoção da mudança social radical por meio da sátira.¹⁴

    Ainda em 1976, o ensaio de Antonio Arnoni Prado, Lima Barreto: o crítico e a crise, centrou-se nos textos curtos de Barreto, publicados entre 1904 e 1922, para analisar como esses reagiram contra a literatura oficial de sua época. O crítico sugere que a posição de Barreto contra a literatura dominante e frívola de seu tempo era tanto estética quanto ideológica. Era estética porque a agenda de Barreto visava romper com essa tradição, tentando formular teoricamente uma literatura social e politicamente militante, voltada para a urgência do cotidiano em mudança.¹⁵ Por outro lado, era ideológica porque, como Prado reafirma duas décadas depois, Barreto lutou [uma] luta quase solitária para que [no Brasil] a literatura de algum modo levasse ao homem comum [por meio de uma linguagem acessível] o estímulo para que não deixasse de lutar enquanto todos os seus direitos fundamentais não fossem reconhecidos.¹⁶

    As três dimensões da literatura militante de Barreto – romances, contos e artigos – desenvolvidas nesses trabalhos seminais foram discutidas ainda por outros críticos, como Nicolau Sevcenko, que contribuiu para uma melhor compreensão da literatura militante do autor, sugerindo uma evidente e profunda conexão entre os conteúdos e a linguagem atravessando os textos.

    Por um lado, [Barreto] revestia os personagens populares e as vítimas da abominação social de uma dignidade superior e universal, e de outro, assegurava a mais ampla difusão de sua obra e de seus ideais. Os conteúdos temáticos eram portanto nobilitados pelos recursos de linguagem e esta modelada pela realidade que veiculava o conjunto constituindo uma totalidade harmoniosa e votada à máxima viabilidade comunicativa. Daí a força de penetração e impacto perfeitamente calculado de seus textos, ajustados de forma notável ao papel crítico atuante e inconformista a que o autor os destinava.¹⁷

    Robert Oakley expande precisamente essa relação entre conteúdo e forma sugerida por Sevcenko, desenvolvendo uma interpretação mais detalhada das fontes europeias da ideia de Barreto de literatura militante.¹⁸ O crítico inglês mostra como os pensamentos de Barreto sobre literatura foram também profundamente influenciados por suas leituras de Lev Tolstói e Thomas Carlyle em relação ao papel do intelectual moderno.

    Em sua conferência O herói como homem de letras, escrita em 1840, Carlyle argumentou que os heróis antigos, considerados divinos ou proféticos, já não eram tão relevantes para o mundo moderno. E ele propunha que se considerassem os escritores como os heróis das novas eras, já que a difusão da imprensa havia possibilitado uma nova forma de heroísmo que poderia ser preservado para as futuras gerações. Para ele, o escritor era a figura pública mais importante da sociedade, pois a vida de um escritor permitiria que futuros leitores pudessem conhecer melhor o tempo em que o escritor atuou e no qual viveu. Nesse sentido, o escritor teria a mesma função dos antigos profetas, usando a escrita como forma de revelação, em busca de seguidores, mas permanecendo tranquilo e indiferente ao culto às celebridades.¹⁹ Foi também em Carlyle que Barreto aprendeu a lição de que a sinceridade era a principal característica do homem de letras como herói: um compromisso total com a atividade que desempenha.

    De igual proporção é a influência do ensaio de Tolstói O que é a arte? (1897) no projeto intelectual de Lima Barreto. Como Carlyle, Tolstói define a sinceridade como uma das condições básicas (juntamente com a individualidade e a clareza) de uma arte relevante no mundo moderno. Arte para ele era qualquer ato de comunicação das emoções vividas. Ao propor uma definição de arte que fosse independente da noção de beleza, o escritor russo sugeria uma diferenciação entre literatura verdadeira e falsa. Usando uma metáfora derivada dos estudos de bacteriologia do final do século XIX, Tolstói define o poder de contágio, de infecção como a principal medida do valor artístico. E aqui ele utiliza o sentido de penetração, desenvolvimento e multiplicação de ideias e sentimentos que afetem o receptor. Em outras palavras, uma obra literária deveria expressar sinceridade, individualidade e clareza buscando a maior disseminação social possível.

    Segundo Tolstói, a arte deve ser contagiosa porque as pessoas comuns têm direito à arte, e as ideias e sentimentos devem ser disseminados para os vários âmbitos das sociedades. Na verdade, o ideal tolstoiano era o de obras capazes de unir não só o autor aos seus leitores, mas também os cidadãos uns aos outros, como também afirmava Brunetière. Essa é precisamente a ideia de que Barreto se apropriou e que descreveu em sua palestra O destino da literatura, considerada um resumo de suas convicções artísticas maduras.²⁰ Nesse sentido, é realmente difícil discutir a literatura militante de Barreto sem atentar para o impacto de seu trabalho no público leitor de sua época. Isso se torna ainda mais claro se tivermos em mente o que Tolstói afirma em O que é arte? sobre a arte verdadeira: as grandes obras de arte só são grandes porque são acessíveis e compreensíveis para todos.²¹

    A ideia de acessibilidade está, naturalmente, relacionada com a clareza da mensagem que o escritor está tentando transmitir. No entanto, a acessibilidade era uma questão problemática no contexto brasileiro com um baixo índice de leitores e uma indústria acessível apenas a uma pequena parte da sociedade, como veremos adiante. Livros, jornais e revistas tinham circulações muito diferentes no início do século XX: enquanto alguns periódicos chegavam a ter uma circulação nacional de massa com centenas de milhares de cópias por semana, livros de escritores como Lima Barreto tinham tiragens pequenas que raramente excediam os 2 mil exemplares.²² Esse ponto torna-se ainda mais significativo considerando a definição de Carlyle, que Lima Barreto tanto admirava, do papel do homem de letras na sociedade, que deve trabalhar como um mensageiro para as massas, e não para uma audiência seleta.

    A necessidade de o herói ser lido ou ouvido é, provavelmente, o que fez Lima Barreto expandir o termo literatura, em sua conferência literária, para abarcar a palavra escrita em geral, priorizando não a forma ou o gênero, mas o conteúdo e o impacto social. Nesse sentido, ele não podia se preocupar apenas com a cultura impressa em forma de livro. Mesmo no final de sua carreira, seus livros só conseguiram um pequeno impacto social se comparados com a quantidade de leitores que ele alcançava em periódicos de grande circulação nacional como as revistas Careta e A.B.C. Essa dimensão da literatura militante de Barreto, entretanto, é mais sutil e está intrinsecamente ligada ao contexto da época, o que gerou tensões não somente em sua escrita, como também em boa parte do debate de ideias entre escritores ocidentais na virada do século XIX para o XX.

    Os intelectuais e as massas

    Além do já mencionado contexto nacional da abolição da escravidão e da proclamação da república, intelectualmente Lima Barreto se formou também em meio a um debate que dominou o mundo atlântico em variadas proporções e que tinha como pano de fundo o surgimento da sociedade de massas. Isso fica mais evidente nas leituras do escritor carioca que são mencionadas em seus textos e até mesmo no inventário de sua biblioteca pessoal, que ele mesmo chamava de Limana, cuja listagem Francisco de Assis Barbosa publicou nos anexos de sua célebre biografia.²³

    Entre as principais referências intelectuais de Lima Barreto estão escritores que surgiram na segunda metade do século xix, e que de alguma forma tiveram que enfrentar a questão do papel da literatura e da escrita na emergente sociedade de massas. Esse novo contexto foi gerado não só pelo aumento da concentração das populações nas cidades, como também pela maior oferta do ensino público e a consequente queda nas estatísticas de analfabetismo, assim como o crescimento do número de periódicos publicados e a maior circulação que alcançavam. Essa revolução tecnológica e social da virada do século dividiu os meios intelectuais, notadamente o europeu, na relação do escritor com as multidões. Na ampla gama de abordagens sobre essa questão, os extremos se situavam, por um lado, numa suposta necessidade de os intelectuais declararem guerra contra as massas, que chegou a tomar forma em exclusões do debate de ideias ou até mesmo em vislumbres de extermínio físico das massas. No outro extremo das reações estavam os intelectuais que entendiam a sociedade de massas como um poderoso instrumento que o escritor tinha para acreditar no poder de mudança social que a palavra escrita poderia gerar.

    O desconforto intelectual em relação ao fenômeno das massas foi ganhando mais consistência nas primeiras décadas do século xx, e acabou por receber enfoques monográficos que se tornaram referências sobre o assunto como os ensaios de Ortega y Gasset La deshumanización del arte, publicado em 1925, e La rebelión de las masas, publicado em livro em 1930. O principal ataque do filósofo espanhol é contra a explosão demográfica e a concentração de populações nas cidades. Em sua perspectiva, a multidão causava superlotação de espaços públicos como trens, parques, hospitais, escolas, praias e ruas, invadindo esferas que antes eram exclusivas das classes mais abastadas. Em sua

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